As praias de areia clara mesclada com manchas de areia negra nem sempre moldaram o litoral sul do Rio de Janeiro. Elas foram assumindo a forma atual nos últimos 10 mil anos, em uma lenta troca de carícias entre o oceano e o continente. E apenas parte da areia dessas praias veio do fundo do mar. Um bom tanto dos sedimentos que hoje formam a orla de Angra dos Reis e Parati foi trazido de longe por rios que escavam a serra do Mar.
A equipe do físico Roberto Meigikos dos Anjos chegou a essa conclusão depois de analisar quase 600 amostras de areia de um trecho de 25 quilômetros de praias que se estendem entre os municípios de Angra dos Reis e de Parati, na Costa Verde fluminense. Arrastados por rios como o Mambucaba, que separa os dois municípios, sedimentos de rochas cristalinas muito antigas da serra do Mar chegam continuamente ao oceano, onde vagam ao sabor das ondas antes de se depositarem na orla.
Meigikos e a física Carla Carvalho, sua ex-aluna de doutorado na Universidade Federal Fluminense (UFF), só encontraram a origem desses sedimentos depois de decifrar a história registrada na composição química dos grãos de areia. Usando um aparelho que mede a concentração de elementos radioativos, eles calcularam a proporção de potássio, tório e urânio naturalmente encontrados nos sedimentos.
Esses elementos são instáveis e tendem a se transformar em outros, emitindo raios gama. Por meio de reações químicas e processos físicos, átomos desses elementos se combinam com outros mais estáveis e são incorporados na estrutura molecular dos minerais. Minerais leves (quartzo e feldspato) são de cor clara e ricos em potássio radioativo. Já os pesados, como a monazita e a ilmenita, contêm mais urânio e tório, que lhes conferem, respectivamente, coloração avermelhada ou negra.
Meigikos e Carla notaram que os sedimentos mais escuros se acumulavam ao norte da foz do Mambucaba – em especial nas praias Histórica e das Goiabeiras, além da face da ilha do Algodão voltada para o continente –, ao passo que os mais claros eram mais comuns nas demais praias. O mesmo padrão foi encontrado a 10 quilômetros ao sul dali, na praia de Tarituba, onde os sedimentos ricos em tório e urânio se concentravam nas faixas de areia a norte de onde deságua o rio São Gonçalo.
Nas praias claras e nas escuras o teor de tório e urânio varia com a distância da linha-d’água. Há uma explicação. “O oceano funciona como um filtro, que carrega os sedimentos mais leves e deixa os mais pesados na orla”, conta Meigikos, coordenador de um projeto que recria a história geológica dos 2 mil quilômetros de praias do sudeste brasileiro (ver Pesquisa FAPESP nº 138).
Enquanto trabalhavam em Angra e Parati, os pesquisadores não se limitaram a investigar a composição da areia das praias e traçaram o caminho inverso ao dos grãos: coletaram sedimentos do Mambucaba até próximo à nascente, em Arapeí, no alto da serra do Mar, já no estado de São Paulo. Comparando a composição dos sedimentos, eles concluíram em artigo publicado este ano no Journal of Environmental Radioactivity que a areia da orla sul fluminense só poderia ter vindo das rochas cristalinas da serra do Mar, formadas há 500 milhões de anos. “Os rios Mambucaba e São Gonçalo são importantes meios de transporte dos minerais pesados que compõem a areia dessas praias”, diz Meigikos.
A análise dos níveis de sódio, tório e urânio radioativos, proposta em 2006 por Meigikos como estratégia para rastrear a origem de sedimentos, vem sendo útil não só à geologia. Ela também tem ajudado os arqueó-logos a recontar a história da ocupação humana da costa brasileira. Bem antes da chegada dos europeus em 1500, descendentes dos primeiros habitantes da América do Sul já haviam atravessado savanas e florestas e se instalado no litoral do que viria a ser o Brasil. A prova disso são os sambaquis: montes de até 30 metros de altura e 200 de extensão formados pelo acúmulo de pedras, areia, conchas e restos de crustáceos, que, se imagina, só podem ter sido construídos por seres humanos.
Em 1981 a arqueóloga Lina Kneip, do Museu Nacional da Universidade Federal do Rio de Janeiro, datou em 7.950 anos a idade do sambaqui da praia de Camboinhas, em Niterói. Outra arqueóloga do Museu Nacional, Tania Lima, estimou em 2002, também a partir da análise do carbono radioativo, que o sambaqui da ilha do Algodão, em Angra, teria 7.860 anos. Se os dados estivessem corretos, esses seriam dois dos sambaquis mais antigos do país.
Mas muitos duvidavam. Dados geológicos sugeriam que naquele período o mar estaria cinco metros acima do nível atual – e assim teria permanecido por 3 mil anos, impossibilitando a ocupação da área. Depois de percorrer 200 quilômetros do litoral fluminense e coletar areia de 16 praias, Meigikos e sua equipe no Laboratório de Radioecologia da UFF conseguiram novas evidências de que Lina e Tania estavam certas.
A análise radiométrica indicou que tanto em Camboinhas como na ilha do Algodão o mar esteve mais alto, sim, mas não a ponto de encobrir as terras onde estavam os sambaquis. “A comparação dos níveis de tório e urânio permite ter uma ideia do tempo que os sedimentos ficaram sob a água”, explica Meigikos. “Naquela época essas áreas foram no máximo alagadiças, criando um ambiente propício à ocupação.”
Mas o que sobreviveu às águas não resistiu aos seres humanos. O sambaqui de Niterói foi destruído pelo avanço da cidade. O da ilha do Algodão, protegida pelo Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional, ganhou a companhia de um hotel que jamais poderia ter sido construído ali.
Artigos científicos
CARVALHO, C. et al. Application of radiometric analysis in the study of provenance and transport processes of Brazilian coastal sediments. Journal of Environmental Radioactivity. v. 102, p. 185-92. fev. 2011.
ANJOS, R.M. et al. Correlations between radiometric analysis of Quaternary deposits and the chronology of prehistoric settlements from the southeastern Brazilian coast. Journal of Environmental Radioactivity. v. 101, p. 75-81. jan. 2010.