Começam a surgir estudos sugerindo que algumas das novas variantes (ou cepas) do vírus Sars-CoV-2 podem driblar parte da ação do sistema de defesa de pessoas vacinadas ou que já tiveram Covid-19. Dois trabalhos apresentados na primeira semana de março indicam que os anticorpos produzidos pelo organismo de quem recebeu determinados imunizantes ou sofreu uma infecção prévia pelo vírus (e desenvolveu ou não a doença) têm menos poder de neutralizar as variedades que começaram a circular nos últimos meses e estão se espalhando rapidamente por vários países. Os resultados são iniciais e a confirmação das conclusões a que permitem chegar exige a realização de outros estudos em laboratório, além do acompanhamento das cepas em circulação por meio do sequenciamento de mais exemplares do vírus. Eles, no entanto, servem de alerta para uma consequência importante: por escaparem de parte dos anticorpos, as novas variantes podem infectar de novo quem já teve Covid-19 ou contagiar indivíduos vacinados. Os que receberam o imunizante, ainda que continuem protegidos de desenvolver as formas graves da doença, podem se tornar transmissores do vírus.
Sob a coordenação do virologista José Luiz Proença Módena, da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), um grupo de pesquisadores do Brasil e do exterior avaliou o poder desses anticorpos de deter a variante 20J/501Y.V3 do novo coronavírus, que se tornou mais conhecida como P.1 e surgiu em Manaus no final de 2020. Em laboratório, o biomédico William Marciel de Souza, que atualmente realiza estágio de pós-doutorado na Universidade de São Paulo (USP) em Ribeirão Preto, expôs cópias da variante P.1 de pessoas infectadas na capital do Amazonas a anticorpos neutralizantes obtidos de dois grupos de indivíduos: 19 pessoas que tiveram Covid-19 durante a primeira onda da doença no Amazonas, quando as infecções eram causadas pela variedade B.1 do vírus, e oito participantes imunizados na terceira fase de ensaios clínicos da CoronaVac, a vacina desenvolvida pela farmacêutica chinesa Sinovac que será produzida no Brasil pelo Instituto Butantan.
Os anticorpos de quem já teve a doença foram de seis a 10 vezes menos eficientes para neutralizar a variante P.1, que já se tornou predominante em ao menos seis estados brasileiros, do que a B.1, uma das primeiras descritas durante a primeira onda que atingiu o país. Já a concentração de anticorpos no plasma de que quem havia recebido a segunda dose da CoronaVac até agosto de 2020 foi baixa e insuficiente para permitir a avaliação de seu poder neutralizante diante das variantes P.1 e B.1, indicam os resultados apresentados em um artigo depositado em 1º de março na base de pré-prints da revista The Lancet, ainda não revisado por outros pesquisadores da área.
“A segunda fase dos ensaios clínicos da CoronaVac havia indicado que a concentração de anticorpos diminui com o tempo. Nos testes que fizemos, replicados depois com o plasma de um número maior de vacinados, a concentração de anticorpos neutralizantes nesse grupo foi baixa tanto para a variante P.1 como para a B.1”, conta Módena. “Isso, no entanto, não significa que a vacina não funcione. Os resultados dos ensaios de fase 3 mostraram que ela protege contra o desenvolvimento das formas graves da doença possivelmente porque, além de estimular a produção de anticorpos, também ativa o braço celular da resposta imunológica, fazendo com que células infectadas sejam rapidamente reconhecidas e destruídas.”
Se os anticorpos desses dois grupos de pessoas não bloqueiam de modo eficiente a variante P.1, o que pode ocorrer? “A principal consequência é que quem já teve Covid-19 corre o risco de se reinfectar e quem foi vacinado com a CoronaVac pode ser contagiado pelo vírus. Tanto em um caso como em outro, essas pessoas poderão transmiti-lo”, explica o virologista da Unicamp. Módena lembra que a não produção de anticorpos altamente neutralizantes é um fenômeno comum em vacinas. A vacina contra rotavírus, em uso há cerca de duas décadas, não impede que as crianças se infectem e transmitam o vírus, mas evita que desenvolvam diarreia grave e morram.
Três dias após a divulgação desses resultados, outro estudo internacional apresentou dados ainda mais preocupantes. O grupo liderado pelo imunologista Michael Diamond, da Universidade de Washington em Saint Louis, Estados Unidos, coautor do estudo da Unicamp, testou o poder de três tipos de anticorpos – monoclonais (sintetizados em laboratório); extraídos do plasma de quem já teve Covid-19; e presentes no sangue de pessoas imunizadas com a vacina da Pfizer-BioNTech – contra a P.1 e algumas outras variantes do vírus, entre elas a B.1.1.7, que surgiu no sul do Reino Unido e é predominante em mais de 80 países, e a B.1.351, identificada na África do Sul e encontrada nos Estados Unidos e em países da Europa.
Publicados na edição de 4 de março da revista Nature Medicine, os resultados indicam que muitos dos anticorpos com alto poder neutralizante “mostraram atividade inibitória reduzida” contra as variantes emergentes, em especial aquelas contendo a mutação E484K, presente na cepa que surgiu em Manaus e na originária da África do Sul. Essa mutação altera a estrutura de um trecho da proteína da spike (ou proteína S, que permite ao vírus se ligar às células humanas) ao qual aderem alguns dos anticorpos. Nesse caso, é maior o receio de que as cepas com essa mutação possam escapar de algumas vacinas, como a da Pfizer-BioNTech e da Moderna. Esses imunizantes funcionam principalmente por estimular a produção de anticorpos contra a proteína S, diferentemente da CoronaVac, que utiliza o vírus inteiro e leva à síntese de anticorpos contra outras partes do Sars-CoV-2.
“Ainda não é possível afirmar que essas variantes atrapalham completamente a eficácia das vacinas”, afirma Módena. A literatura científica sobre o tema ainda traz contradições. Outros trabalhos chegaram a conclusões diferentes, possivelmente por terem avaliado conjuntos de mutações um pouco distintas. Em um deles, publicado em sua versão definitiva em 8 de março na revista New England Journal of Medicine, pesquisadores da Universidade do Texas em Galveston, Estados Unidos, e colaboradores da Pfizer e da BioNTech afirmam que a vacina produzida por essa empresa farmacêutica manteria o poder de neutralizar a variante do Reino Unido e a brasileira, embora sua eficácia seja um pouco menor para conter a cepa sul-africana. Em nota oficial divulgada hoje (10/3), o Instituto Butantan afirmou que a CoronaVac foi capaz de proteger contra a variante P.1 e a P.2, identificada originalmente no Rio de Janeiro, em testes iniciais feitos com o plasma de 35 participantes do ensaio clínico de fase 3 da vacina. Os experimentos de neutralização dessas variantes foram realizados em parceria com o Instituto de Ciências Biomédicas (ICB) da USP e, segundo o Butantan, seus resultados devem ser apresentados em breve.
Como o conhecimento na área ainda está em construção, mais estudos clínicos e de acompanhamento da população são necessários para esclarecer se a exposição a uma infecção prévia ou a diferentes imunizantes conferem proteção contra a infecção pelas variantes emergentes. “Esses resultados, no entanto, reforçam a ideia de que mesmo quem já teve a doença ou foi vacinado precisa manter os cuidados e continuar usando máscaras e adotando medidas de higiene e distanciamento social”, conclui o virologista.
Os projetos
1. Patogênese e neurovirulência de vírus emergentes no Brasil (nº 16/00194-8); Modalidade Jovem Pesquisador; Pesquisador responsável José Luiz Proença Módena (Unicamp); Investimento R$ 2.509.395,80
2. Caracterização de fatores de risco intrínsecos e o desenvolvimento de novas alternativas de diagnóstico e tratamento para Covid-19 (nº 20/04558-0); Modalidade Auxílio à Pesquisa Regular; Pesquisador responsável José Luiz Proença Módena (Unicamp); Investimento R$ 184.077,00
3. Centro conjunto Brasil-Reino Unido para descoberta, diagnóstico, genômica e epidemiologia de arbovírus (CADDE) (nº 18/14389-0); Modalidade Projeto Temático; Pesquisador responsável Ester Cerdeira Sabino (USP); Investimento R$ 5.331.725,16
Artigos científicos
SOUZA, W. M. et al. Levels of Sars-CoV-2 lineage P.1 neutralization by antibodies elicited after natural infection and vaccination. Pre-prints with The Lancet. 1º mar. 2021.
CHEN, R. E. et al. Resistance of Sars-CoV-2 variants to neutralization by monoclonal and serum-derived polyclonal antibodies. Nature Medicine. 4 mar. 2021.
LIU, Y. et al. Neutralizing Activity of BNT162b2-Elicited Serum. New England Journal of Medicine. 8 mar. 2021.