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Arte

O pintor universal da alma brasileira

Voltam ao Brasil obras de Portinari que revelam seu amor pela paz

reprodução“Mulher com filho morto”, um dos estudos para o dípticoreprodução

“A luta pela paz é uma decisiva e urgente tarefa, unidos os povos do mundo inteiro, não somente com palavras, mas com ações, levarem até a vitória final a grande causa da Paz, da Cultura, do Progresso e da Fraternidade dos Povos”, escreveu Cândido Portinari (1903-1962) em 1949. Convidado a participar, em Nova York, da Conferência Cultural e Científica para a Paz Mundial, o pintor teve seu visto de entrada negado pela Embaixada Americana e enviou o texto como mensagem a ser lida na sua ausência. Dois anos mais tarde, ao ser abordado pelo Itamaraty com a encomenda de uma obra para ser doada ao novo edifício-sede das Nações Unidas, Portinari, entre os três temas oferecidos pelo Ministério das Relações Exteriores, não pensou duas vezes e escolheu a guerra e a paz (os outros eram o Brasil e as Américas e a contribuição do Brasil à paz universal). O resultado foi o díptico Guerra e Paz, que retornará ao país neste mês para ser restaurado por pesquisadores da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) e exposto ao público. Em 2011 ocorrerá o encontro entre o painel e o chamado “quarto Retirante” (hoje no Fonds National d’Art Contemporain, em Paris), Criança morta, obra que compõe o ciclo Retirantes, de 1944 (as três outras telas estão no Museu de Arte de São Paulo), e que permanece inédita no Brasil por ter sido comprada em 1946 pelo governo francês após a mostra do pintor na Galeria Charpentier, na França. Guerra e Paz e Retirantes revelam a grande influência de Guernica, de Picasso, tanto no aspecto formal quanto na temática, sobre a obra de Portinari, que viu o quadro em 1942 nos EUA.

“Foi sob o impacto de Guernica que Portinari desarticula, escava suas figuras até reduzi-las à essencialidade expressiva. Os retirantes que provocam medo no menino de Brodósqui com seus enterros em redes ou lençóis viram para o adulto símbolo de uma sociedade injusta e de uma humanidade dilacerada pela guerra”, explica a historiadora Annateresa Fabris, da Escola de Comunicações e Artes (ECA) da Universidade de São Paulo (USP) e autora do livro Portinari, pintor social (Perspectiva). “No painel Guerra não há armas, tanques ou soldados – há apenas dor, que ele retratou no maior sofrimento conhecido pelo ser humano: a imagem da mãe que perdeu o filho. O painel tem seis a oito dessas figuras, que são autênticas pietàs. Na série Retirantes, da década de 1940, encontramos também a mãe com o filho morto. Sem dúvida, trata-se também de uma pietà, mas inserida em um drama brasileiro. No painel Guerra vemos o drama universal”, analisou João Cândido Portinari na palestra que abriu a exposição na FAPESP, em cartaz até o final do mês, dedicada ao pintor e que traz as 25 obras do artista que ilustram o Relatório de atividades FAPESP 2009.

“Portinari, que tinha a força estética para o monumental, e por isso foi o maior muralista latino-americano, na representação da guerra fixou o sofrimento das populações civis. São figuras maternas com o filho morto e os quase 70 deslocados no mundo que têm as faces dos retirantes nordestinos”, analisa Celso Lafer, presidente da FAPESP. A analogia entre o díptico e o “quarto Retirante” parece evidente. “Em Criança morta o quadro deixa de ser um mero drama do Brasil para se transformar num grito de dor mais universal: o grito da humanidade dilacerada pela guerra”, avalia Annateresa. “Em Guerra e Paz, para escapar de uma interpretação temporalmente localizada, Portinari ‘intemporiza’ a sua representação, se concentrando não na guerra e na paz, mas nas consequências para a humanidade de uma ou outra.” Nas palavras do pintor: “Não são as armas que provocam o horror, e sim os efeitos das guerras: as mães desesperadas, os órfãos, as colheitas destruídas, as crianças aleijadas e tudo o mais”.

reproduçãoGuerrareprodução

As duas obras foram produzidas, sintomaticamente, durante diferentes períodos políticos com Getúlio Vargas no poder e revelam aspectos polêmicos da personalidade do pintor, visto por muitos críticos como “pintor oficial do Estado” em razão do sucesso experimentado nos dois governos varguistas. Em especial, pesava sobre a produção de Portinari, anterior ao Retirantes, a pecha de ser demasiadamente “otimista” na sua representação da temática do trabalho, como que se conformando à ideologia populista do Estado Novo. “Esse ‘otimismo’ pelo trabalho desaparece quando ele pinta Retirantes, cuja segunda série, de 1944, denuncia frontalmente o pacto populista. Para revelar a miséria do homem do campo, esquecido pelas reformas getulistas, ele retrata a realidade do retirante, o gradual morrer pelo caminho, a hostilidade do meio”, observa a pesquisadora. “Esquecido pelas leis sociais, o retirante é repelido pela natureza e de onde deveria brotar vida brota morte. O retirante aparece como a outra face do trabalhador, é a outra face do progresso social, é a verdadeira face da fachada populista.”

Segundo ela, se concebermos a série como um “crescendo” (Criança morta, Menino morto, Família de retirantes, Enterro na rede) perceberemos mesmo uma abertura na resignação: o punho cerrado, as mãos espalmadas da última obra parecem remeter a uma dimensão em que a morte não é mais aceita passivamente. No chamado “quarto Retirante”, aliás, a tragédia, continua Annateresa, está presente não só nos rostos dos retirantes, mas é acentuada pelo próprio tratamento formal da tela, em que uma pincelada densa, vigorosa, aproxima a textura pictórica da escultura. “A tela, mais que pintada, dá a impressão de ter sido cavada na madeira. A figura central, que segura a criança, tem algo de religioso: o desespero do homem mais do que um drama humano parece evocar a dor de Maria diante do corpo inerte de Cristo.”

“A série é a representação mais significativa da tendência expressionista adotada por Portinari, desenvolvida por ele na época da Segunda Guerra. O pintor, sem testemunhar diretamente o conflito, mas conhecendo a miséria e a crueza que experimentou na infância, procurou manifestações paralelas”, avalia a historiadora Elza Ajzenberg, coordenadora do Centro Mário Schenberg de Documentação da Pesquisa em Artes da ECA-USP e autora de Portinari: três tempos, a ser lançado no ano que vem pela Edusp. “A atenção de Portinari está voltada para o homem, não entidade abstrata, mas o homem brasileiro com seus problemas, sonhos e descobertas. Daí sua atenção ao carente, ao miserável. A situação de ‘despejado’ do retirante surge na sua tela com um grito bem alto de protesto, contra uma situação histórico-social e por uma condição humana mais digna.” Na raiz desse movimento está a influência de Guernica, que, como nota Mário de Andrade, forneceu ao pintor uma “solução plástica, sem que isso signifique a incorporação cega de uma influência declarada”. “Ele estava penetrado pelo drama da guerra, em crise diante da sua imagem de ‘artista oficial’ e tentou solucionar, pela aproximação com Picasso, a inquietude que tinha tomado conta de sua vida”, observa Annateresa. “Picasso fulmina-me”, afirmou Portinari. Isso tanto poderia ter produzido a perda de rumo quanto um salto qualitativo. “Portinari acreditava ter dado esse salto com a série dos Retirantes”, nota a pesquisadora. Assim, em outubro de 1946, quando foi aberta em Paris uma mostra de seus trabalhos mais recentes, o artista foi saudado como um “continuador da tradição de Michelangelo com meios atuais, algo que Picasso tentou em vão”, palavras do historiador da arte francês Michel Florisoone na época. Criança morta foi adquirido pelo Museu de Arte Moderna da Cidade de Paris.

reproduçãoPazreprodução

“Ele era um pintor inquieto, capaz de mudar frequentemente o aspecto exterior de sua obra, preocupado em assumir o estilo da sua época, mas mantendo sempre a marca de uma personalidade inconfundível, definida pela permanência do popular”, nota Elza. Assim, três anos após o “salto” dos Retirantes, o pintor voltou-se para uma nova tendência: a arte mural, que ele considerava o melhor instrumento de arte social, uma vez que “o muro pertence, via de regra, à comunidade e conta uma história, interessando grande número de pessoas”. “O artista deveria ser o intérprete do povo, mensageiro de seus sentimentos, desejar a paz, a justiça, a liberdade, a participação de todos nos prazeres do mundo”, afirma Annateresa. “O que estava em jogo eram discussões sobre a monumentalidade da obra de arte, o sentido da arte em espaços públicos e a conscientização política das massas. Segundo ele, a função da pintura mural é a dessacralização da obra de arte, colocá-la fora do circuito (museus, bienais, galerias de arte), ou seja, em ambientes frequentados pelas elites, o que permitiria a fruição da obra de arte sem os rituais exigidos pelo circuito”, analisa a historiadora Maria de Fátima Piazza, da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC), autora do artigo “Arte e política: Portinari e a estética realista”. Assim, em 1952, atendendo a um convite do Itamaraty, no governo “democrático” de Vargas, Portinari iniciou a realização das maquetes de dois imensos painéis (140 metros quadrados cada: no total, o espaço é maior que o do Juízo final, de Michelangelo, na Capela Sistina), Guerra e Paz, para a decoração do edifício-sede da ONU, projetado por Le Corbusier, e em cuja elaboração trabalhara Oscar Niemeyer.

O local original, por ironia da história, quase foi ocupado por uma tapeçaria de Picasso a partir de Guernica. Durante quatro anos, Portinari executou 180 estudos, esboços e maquetes para os murais, entre esses 18 quadros de grande formato, representando detalhes dos murais em tamanho natural. Cada mão, pé, cada rosto era objeto de um estudo detalhado, a ponto de o material merecer uma sala especial na III Bienal de Arte de São Paulo. “Dentro do único armário da sala havia uma pilha de desenhos em diferentes formatos, estudos para cada figura do painel em curso. Lembravam-me de conversas que tive com Portinari, em que ele havia me explicado como construir arapucas para pegar passarinhos e como acertar as proporções de um potrinho (‘É só encurtar um cavalo’, dizia). Nesses estudos, ele também determinava que gestos, posição do corpo e alteração das feições expressavam uma determinada emoção”, conta Maria Luiza Leão, assistente de Portinari na execução do díptico.

“Esses painéis, que sintetizam a vocação brasileira para a paz, carregavam uma mensagem: a imagem da guerra que a ONU tem de vencer e da paz que deve promover”, observa Lafer. “Na guerra, inspirou-se na simbologia dos quatro cavaleiros do Apocalipse. Ele não se ocupou de armas e protagonistas dos conflitos. O clima da guerra emana de um azul-escuro e no canto do painel se encontram três grandes felinos, de beleza repugnante, a nos advertir sobre os perigos do vitalismo da estetização da violência.” A matéria que inspirou a paz foi a memória da inocência da infância. “São os meninos de Brodósqui nas gangorras, um coral de crianças de todas as raças, moças que bailam e que cantam. No centro do painel, duas cabras dançam, porque ‘a paz é um estado natural de dança na face da Terra’, como escreveu Carlos Drummond de Andrade”, analisa Lafer. A reforma da ONU é que possibilitará a vinda do díptico para o Brasil, onde circulará por várias capitais e será restaurado, diante do público, no Palácio Capanema, por especialistas da Universidade Federal do Rio de Janeiro, da Universidade Federal de Minas Gerais e peritos do Centro de Metodologias Científicas Aplicadas à Arte e Arqueologia, da Universidade de Peruggia, na Itália.

reprodução“Mulher chorando”, outro estudo para o painelreprodução

Faz-se necessário um parêntese sobre a tecnologia a serviço da arte de Portinari, um entusiasta da modernidade tecnológica. “Ele adorava o progresso científico e as descobertas mais recentes na ciência. Falava com entusiasmo sobre o progresso de seu filho nos estudos da matemática e afirmava que a ciência iria suplantar a arte, já que a maior parte das pessoas mais brilhantes estava sendo absorvida pela pesquisa científica. Com desânimo acreditava que a pintura, onde tudo já havia sido feito, estava chegando a um fim sem um futuro”, escreveu o crítico de arte italiano Eugenio Luraghi em suas memórias do pintor. Isso se comprova no método científico que permeia o Projeto Portinari (www.portinari.org.br) , da PUC-Rio, coordenado por João Cândido Portinari, cujas técnicas de conservação de imagens e sua divulgação na internet são consideradas pela IBM em pé de igualdade com as do Vaticano quando o assunto é referência cruzada de imagens, texto e conteúdo multimídia.

Entre as grandes conquistas do grupo está o Projeto Pincelada, uma tecnologia desenvolvida para a atribuição de autoria de pinturas sob um enfoque totalmente novo desenvolvido pelo físico George Svetlichny da PUC-Rio. “Ele concebeu submeter amostras de pinceladas a algoritmos de classificação automática, através de técnicas de inteligência artificial, em particular métodos bayesianos, usando o programa Autoclass utilizado pela Nasa. O programa identifica padrões que os olhos humanos não conseguem”, conta João Cândido. Até então, as técnicas para autenticidade de obras de arte se baseavam na expertise de peritos ou em técnicas científicas que eram essencialmente exames físico-químicos do meio e do suporte físico de quadros, na esperança de revelar contradições que pudessem invalidar a pretensão da atribuição (presença de materiais não condizentes com a época, grau de envelhecimento de pigmentos etc.). “Há casos famosos, como os Vermeer falsificados por Van Meegeren, que mostram os limites dessas técnicas.”

A partir disso, os pesquisadores brasileiros resolveram tomar como ponto de partida uma amostra de “pinceladas” de um pintor para determinar a autenticidade de uma obra. “São realizadas macrofotografias de pinceladas em obras reconhecidas como de Portinari. Em seguida foi utilizado um programa de processamento de imagens, obtendo assim o perfil da pincelada. Esses perfis contêm uma ‘característica de autoria’ que, analisada no Autoclass, revela se uma pintura é ou não de Portinari.” Toda essa tecnologia possibilita que se conserve para a posteridade a visão épica de Portinari sobre o homem do povo. “Não uma visão perdida na teatralidade oca dos grandes gestos, mas uma visão épica conseguida por meio do enaltecimento do trabalhador”, observa Annateresa. Segundo a pesquisadora, à exceção da explosão emotiva e “pessimista” dos anos 1940 dos Retirantes, pode-se ver na arte de Portinari um “projeto utópico” que aposta num trabalhador livre, dono do seu destino, e na morte não mais como fatalidade, mas como cumprimento final da trajetória humana. “Sua obra não é a exaltação do modelo getulista, mas desmascarou mitos do poder, integrando os marginalizados, que, vemos em seus quadros, com a força do seu braço são a fonte do desenvolvimento.” Se não pintou apenas figuras feias, numa atmosfera sombria de miséria (exceção dos Retirantes), é porque, continua Annateresa, acreditava na vitalidade do povo, na sua capacidade de gerar um futuro melhor. Daí a irmandade entre as pinturas sociais e o díptico: “Na reflexão madura, vida e morte voltam a se confrontar com ternura e drama, mas é a vida que prevalece com sua luminosidade.” Portinari dizia sobre Guerra e Paz: “Essa é a grande obra de minha vida”. Será um belo encontro.

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