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Philip Hanawalt

Philip Hanawalt: “O que não se sabe é o mais importante na ciência”

Descobridor do mecanismo de reparo do DNA, professor de Stanford defende a criatividade na pesquisa

Eduardo CesarPhilip HanawaltEduardo Cesar

Ao aceitar falar para Pesquisa FAPESP, o geneticista Philip Hanawalt avisou: “Não saberei as respostas”. Não é uma recusa à conversa, muito pelo contrário. Para o professor da Universidade Stanford, na Califórnia, o que não se sabe é o que há de mais importante na ciência – foi a curiosidade pelo desconhecido que o conduziu à biologia molecular e é o que o mantém em plena atividade, aos 77 anos. Ele veio ao Brasil em setembro de 2008 a convite da Sociedade Brasileira de Genética para o congresso anual da entidade, realizado em Salvador, Bahia, onde apresentou os mais novos resultados de seu trabalho – sempre pioneiro, há meio século.

Hanawalt começou a trabalhar com o DNA em 1953, o mesmo ano em que foi desvendada a estrutura em forma de escada em espiral dessa molécula que constitui os genes e descobriu, nos anos 1960, como funciona o mecanismo para consertar erros na duplicação do material genético da bactéria Escherichia coli­. O material genético de qualquer organismo tem a propriedade de se autoduplicar, mas não o faz sem erros – origem de boa parte da variação genética que surge ao longo da evolução e também de muitos casos de câncer – que são automaticamente corrigidos por dispositivos internos das células. Ao longo de sua carreira, Hanawalt continuou a estudar esses dispositivos de correção dos erros, conhecidos como mecanismo de reparo. Demonstrou, entre outras coisas, que ele não é homogêneo no material genético de cada organismo. Sua apresentação no congresso em Salvador mostrou que, ao longo da carreira, ele acompanhou os avanços tecnológicos e hoje consegue descrever a ação de moléculas quase como se as enxergasse.

O convite para a visita científica coincidiu quase exatamente com um festejo afetivo. Trinta anos atrás ele se casou com Graciela Spivak, geneticista argentina que conheceu em 1977, durante um curso na Universidade de São Paulo. “O amor da minha vida”, declarou na palestra durante o congresso no qual ela, que é integrante de seu laboratório, também apresentaria os avanços em seu trabalho. “É muito especial que possamos voltar ao mesmo lugar onde nos conhecemos, assim como ter a maravilhosa oportunidade de interagir com o vivo e entusiasmado grupo de estudantes e colegas em seu adorável país”, disse Hanawalt, que tem dois filhos do primeiro casamento e dois do atual.

Para ele, mais importante do que os avanços científicos é estimular os pesquisadores iniciantes a pensar, a ser criativos e a encontrar seus próprios caminhos.

Em 2009 o senhor celebra 50 anos da publicação de seu primeiro artigo. Do que se tratava?
Sim, meu primeiro trabalho foi publicado em 1959. Estava no doutorado em biofísica com Richard Setlow, na Universidade Yale, e precisava fazer um experimento para medir DNA, RNA e proteínas em células expostas à luz ultravioleta. Seria um estudo sobre o que acontece com essas moléculas depois de irradiar bactérias com radiação ultravioleta, e fiz esse teste para encontrar um método mais sensível para detectar síntese de DNA e RNA. Sabíamos que a luz ultravioleta matava as células e que causava mutações, mas não o que acontecia com o DNA, embora já soubéssemos que a radiação ultravioleta interrompia a replicação do DNA.

Há 50 anos não existiam a tecnologia e o conhecimento de hoje. Tenho a impressão de que era preciso certa fé para acreditar que os resultados dos experimentos realmente revelavam algo do material genético. Essa impressão é correta?
Eu não usaria a palavra fé. Diria que utilizamos a tecnologia disponível na época para responder à pergunta que queríamos responder. Hoje me preo­cupo com os pós-graduandos, que simplesmente vão a um catálogo para comprar kits para purificar e sequenciar DNA. Eles acabam não aprendendo detalhes do método, o que faz com que talvez errem na interpretação dos resultados. No início de meu curso sobre replicação de DNA falo de experiências clássicas muito simples que trouxeram respostas muito importantes. Acho preo­cupante que hoje os estudantes fiquem tão encantados com a tecnologia. Certa vez um aluno me procurou e disse, “Posso trabalhar em seu laboratório? Quero clonar alguma coisa”. Perguntei que questão biológica ele queria resolver e ele me disse que não sabia, só queria clonar um gene. Expliquei que há milhares de genes a serem clonados e que seria necessária uma razão para sua pesquisa. Talvez uma clonagem não responda à sua pergunta.

Apesar dos avanços proporcionados pelas técnicas de sequenciamento, em seu discurso de abertura do congresso o geneticista brasileiro Fábio de Melo Sene comentou que a técnica acabou sendo um empecilho para os estudos da evolução. Os pesquisadores teriam deixado de distinguir entre padrões e processos evolutivos. O senhor concorda?
Sim, acho que a tecnologia é importante, mas é apenas uma ferramenta. É possível obter rapidamente informações que não podiam ser obtidas antes. Outra abordagem moderna maravilhosa são os microarranjos, técnica na qual podemos colocar 4 mil genes da bactéria Escherichia coli em uma lâmina e lavá-la com RNA produzido pela bactéria. Sempre que o RNA encontra um fragmento de DNA complementar, eles se ligam. Assim sabemos quais são as moléculas de RNA que a célula fez. Então podemos fazer uma série de experimentos e ver como o fenômeno funciona. Podemos fazer perguntas, como o que acontece quando lançamos luz ultravioleta sobre elas, quando as aquecemos etc. Há empresas que vendem as lâminas pré-fabricadas. O perigo é que isso faz com que o procedimento fique mais fácil e se gaste mais dinheiro com experiências sem pensar sobre seu significado. Minha mensagem para os alunos é que eles devem pensar no processo biológico que responde à sua pergunta, retornar a princípios básicos e procurar a forma mais simples de responder a uma pergunta. Não devem pular etapas para usar técnicas só porque estão na moda. Um estudante meu uma vez me disse que as bactérias de seu experimento haviam morrido. Perguntei como ele podia ter certeza se não havia tido tempo para tentar cultivá-las. Ele me respondeu que tinha cheirado o tubo de ensaio. Eu não tinha pensado nisso! As bactérias E. coli exalam odor quando crescem – quando param de crescer, o cheiro some. Ele encontrou a resposta da forma mais simples, nada mais era necessário.

Quando a estrutura do DNA foi descrita pela primeira vez, sugerindo um mecanismo para sua própria replicação, imaginava-se que o processo envolvesse tantos erros?
Fiz meu primeiro curso de biologia no final da graduação, em 1953, e aprendi que o DNA era um dos compostos químicos encontrados nos cromossomos. Foi no mesmo ano em que Watson e Crick publicaram seu primeiro artigo descrevendo a estrutura da molécula. Quando cheguei à pós-graduação em 1954, todos falavam sobre o DNA e como ele se replicava. Se duas fitas são complementares – vou chamar uma de Watson e a outra de Crick –, basta separar as fitas para fazer um novo Watson e um novo Crick. Ninguém pensava em reparo porque ninguém imaginava que o DNA se alterasse muito. Sabia-se que ele sofria mutações, mas se acreditava que fossem raras. O fato é que, se não houvesse reparo de DNA, a vida não poderia existir. Na verdade o DNA não é tão estável assim, ele passa por consertos constantes. O primeiro mecanismo de reparo devia ter a ver com ultravioleta, porque a vida evoluiu num planeta sem camada de ozônio, onde era preciso consertar os danos feitos ao material genético.

Como surgiu a ideia de que o DNA pode se danificar e cometer erros?
A primeira pista é que existem mutantes. Procurava-se identificar os agentes que danificam o DNA. Havia um interesse sobre o motivo por que algumas células são sensíveis à luz ultravioleta e outras não. Então os pesquisadores começaram a fazer culturas de mutantes mais sensíveis. Era preciso descobrir o que acontecia com o DNA para que ele sofresse esses danos causados pela radiação luminosa. Em nossos estudos usávamos células selvagens para descobrir como era a replicação de DNA depois de expostas à radiação ultravioleta, e descobrimos que a replicação dava origem a fragmentos bem pequenos. Ao fim do doutorado, consegui mostrar que a inibição da síntese de DNA é proporcional à radiação ultravioleta, mas a replicação se recupera. Alguma coisa acontece, as células conseguem lidar com o problema. Também houve um grande impacto do trabalho dos físicos na área. Na física, aprendemos a reduzir as perguntas ao modelo mais simples possível que possamos testar. Max Delbrück sugeriu estudar biologia analisando os vírus, que têm os genomas mais simples que se conhece, e prever o que cada pedaço do genoma faz [trabalho que lhe valeu o Prêmio Nobel em 1969].

Então a perspectiva da física permeou o estudo da biologia?
Havia dois tipos de biofísico. Os que saíram da física e entraram na biologia, fundando o campo da biologia molecular. Eu estudei física na graduação e no mestrado. Tinha a intenção de chegar à biofísica, mas precisava estudar mais física antes. A outra classe de físicos eram os especialistas em cristalografia, que estavam interessados nas estruturas das proteínas. Watson e Crick não tiraram o modelo da dupla-hélice do nada. Essa descoberta dependeu acima de tudo do trabalho de uma cientista muito discreta chamada Rosalind Franklin, que estava estudando cristais de DNA e descobriu um padrão de difração por raios X. Quando Crick passou pelo laboratório e viu as imagens, sendo ele um físico e conhecendo difração por raios X, disse, “Isso é uma hélice!”

Ninguém enxergava uma hélice ali?
Não. A difração por raios X é muito difícil de interpretar. Porém, se uma pessoa sabe como ela é gerada, vê uma configuração básica e sabe que se trata de uma hélice. Rosalind Franklin não recebeu o crédito que merecia. Isso acontece em ciência, infelizmente mais com mulheres do que com homens. As mulheres fazem trabalhos tão importantes quanto os homens nos laboratórios, mas os chefes geralmente são homens. Pelo menos eram até um tempo atrás.

Voltando ao tema do reparo, existe uma estimativa dos danos causados ao nosso DNA todos os dias?
Cada célula sofre ao menos entre 10 mil e 50 mil alterações por dia. Então o reparo deve funcionar constantemente. Durante uma palestra de uma hora, cada pessoa provavelmente terá cerca de 1 trilhão de depurinações, ou seja, 1 trilhão de guaninas [uma das moléculas que compõem o material genético] saem do seu DNA em uma hora.

É assustador.
É curioso e assustador, mas veja: se há perda de guanina no DNA, obviamente deve haver reparo. Não tínhamos tecnologia para fazer essas observações na época em que as pessoas achavam que o DNA era estável. Esses tipos de dano ocorrem espontaneamente porque o DNA é instável. Um trilhão parece muita coisa. Você tem 1014 células em seu corpo. Isso significa que perde 1 guanina a cada 100 células.

A falha no mecanismo de reparo é a principal causa de câncer?
Eu diria que o tema comum do câncer é a instabilidade genômica. A mutagênese é uma das causas do câncer. Estima-se que sejam necessárias ao menos umas 5 ou 6 mutações sucessivas para que se forme um tumor cancerígeno. Mas se trata de um número muito indefinido, podem ser 10 ou 12. Além disso, há várias formas de o câncer surgir. Há milhares de genes que, quando mutados, podem representar um minúsculo passo em direção ao câncer. Mas alguns representam um passo maior. O gene p53 aparece alterado em metade dos tumores humanos. Então é um gene que deve ser observado, é importante para que ocorra a apoptose em células com danos severos. Quando mutado, ele deixa de causar apoptose, de forma que o gene pode sofrer outras mutações e dar origem a um tumor. Adicione a isso substâncias ambientais importantes – no topo da lista estão os cigarros: o risco de um não fumante desenvolver câncer no pulmão é de 1 em 10.000, enquanto o de alguém que fuma três maços por dia é de 1 em 100. Não é um risco que alguém decida correr conscientemente. Há também variações entre as diferentes regiões do mundo. Em alguns países onde não há geladeiras os alimentos são armazenados em buracos no solo e acabam contaminados por um mofo que produz aflatoxina, a substância química mais causadora de câncer no fígado que se conhece. A carcinogênese ambiental tenta entender com quais agentes precisamos nos preocupar. É uma área importante, mas às vezes superestimada. Em testes, geralmente se usam doses imensas de um produto químico para provocar câncer em um rato. Então passa-se a afirmar que ele provoca câncer em humanos. Não necessariamente! Há alguns anos se comprovou que o adoçante sacarina, que adicionamos ao café, causava câncer de bexiga em ratos machos. O mesmo não valeu para ratos fêmeas nem camundongos – machos ou fêmeas – e não havia estudos epidemiológicos comprovando que poderia causar câncer em humanos.

E davam aos ratos em doses incrivelmente elevadas?
Sim, doses elevadíssimas. Depois descobriu-se que, na verdade, o que ocorre é que se formam cristais na bexiga que, em associação com uma proteína encontrada ali, irritam as paredes da bexiga. Considerando-se a altíssima concentração, o câncer se desenvolve devido à irritação contínua, que causa a morte das células, uma proliferação excessiva, e isso é o que causa o câncer. E quanto mais as células proliferam, maior a probabilidade de sofrerem mutações. Quando isso foi descoberto, eu fazia parte de uma comissão na Califórnia para produzir uma lista com todos os carcinógenos, e a sacarina estava nessa lista. Depois que soube desses resultados, sugeri que retirássemos a sacarina da lista. “Não tiramos itens da lista”, me disse o coordenador do grupo. Levou três anos, porque essas coisas se tornam batalhas judiciais, para retirá-la da lista. Nesse meio tempo, descobriu-se que o ácido ascórbico – a vitamina C – produz os mesmos cristais em ratos. Deveríamos parar de tomar suco de laranja? Ficaríamos com escorbuto. Na verdade, é a dose que cria o veneno.

O conhecimento sobre reparo de DNA pode ajudar a desenvolver terapias contra câncer e envelhecimento?
Em princípio diria que sim. Mas a primeira coisa é descobrir as causas e distinguir entre as causas que podemos e as que não podemos controlar. São estudos desse tipo que estamos agora desenvolvendo. Em alguns tipos de câncer trechos do DNA se quebram e são transferidos de um cromossomo para outro. Isso não é causado por agentes químicos, mas por características naturais de nosso DNA. É bastante raro, do contrário todos teríamos problemas. Queremos estudar a contribuição dos aspectos intrínsecos do DNA para o desenvolvimento do câncer em comparação com agentes externos. Com relação aos agentes ambientais, temos de identificar as substâncias potencialmente problemáticas e depois determinarmos as doses com as quais devemos nos preo­cupar. Assim podemos reduzir a um nível razoável a exposição a algumas substâncias, ou não sermos expostos de todo, a começar por cigarros…

… que é algo que se deve evitar.
Exatamente. O café, por exemplo, tem milhares de substâncias. Apenas 30 delas, até onde sei, foram testadas com relação à possibilidade de causarem câncer em ratos, sendo que metade delas teve resultado positivo – cerca de 13 ou 14 causam câncer em ratos, se consumidas em quantidades imensas. Não se deve mais tomar café? Se bebermos 15 mil xícaras de café, alguns elementos químicos podem provocar danos. Por outro lado, só para ilustrar a complexidade, há elementos químicos que têm efeito anticancerígeno. Não sabemos. Talvez haja 5 mil elementos que são anticancerígenos no café e que revertam de longe os efeitos das outras substâncias, mesmo que não se consumam todas as 15 mil xícaras.

Não se fazem listas de substâncias anticancerígenas?
Às vezes sim. Não sistematicamente, mas é algo interessante a ser feito. Com relação ao envelhecimento, não creio que exista muita informação. Não sabemos ainda se o envelhecimento se dá devido ao desgaste ou se está programado no relógio biológico. Certamente podemos acelerá-lo com danos ao DNA, há indícios recentes interessantes sobre como danos oxidativos contribuem para o envelhecimento. Também temos de considerar que se trata de um processo diferente em cada órgão, um único fator não é a causa de tudo. Sabemos, por exemplo, que a pele envelhece menos se a pessoa não toma sol. Então, cada órgão tem sua própria taxa de deterioração e envelhecimento. O verme C. elegans aparentemente tem envelhecimento programado, assim como as leveduras. Parece ser algo muito complexo. Talvez tenhamos um relógio global, que determina o tempo máximo que viveremos e sobre o qual não temos controle.

Em sua palestra, o senhor comentou que algumas vezes os danos são parte integrante de como o DNA funciona. Como é isso?
O sistema imunológico tem de gerar 1 bilhão de tipos diferentes de anticorpos. Então, em um sistema biológico programado para fazer um erro a cada 10 bilhões de moléculas, como será possível projetar algo programado para cometer 1 bilhão de erros?

É dos erros que vem a diversidade?
É isso que a diversidade é: mutagênese. Além disso, trata-se de mutagênese dependente da transcrição. É interessante que se produza o máximo possível de erros no RNA mensageiro de um gene que produz um anticorpo, de modo que se tenha várias cópias diferentes com base em um único trecho de DNA. Não parece impossível? Então, primeiro é preciso mutar o DNA, mas tem que haver uma forma interna de fazer isso, já que não é possível fazer o DNA fumar cigarros. A maneira mais simples é a desaminação de citosina, que quando perde a amina vira uracila, que não existe no DNA – só no RNA. Quando isso acontece, o sistema de reparo remove a uracila, porque quer consertar o erro, mas ele foi projetado para errar quando conserta as coisas.

Ele substitui o erro por qualquer coisa, não só pelo aminoácido original?
Isso. Além disso, para tornar ainda mais eficaz, há uma proteína chamada AID, que aumenta a deaminação cerca de meio milhão de vezes. Isso provocará bastante mutação. Durante a replicação, o DNA se abre para dar acesso à AID, e isso acontece na transcrição que é bem rápida. Se a transcrição for mais lenta, a AID poderá entrar e metralhar o DNA: bangbangbang, ao invés de bang… bang… bang. É como no filme O poderoso chefão, em que os gângsteres usaram um pedágio abandonado para bloquear o carro de Sonny e metralhá-lo à vontade.

O senhor também foi um pioneiro ao mostrar que o reparo não é homogêneo no genoma inteiro.
Bem, isso surgiu a partir de estudos feitos por uma pós-graduanda, Mimi Zolan, que chegou ao meu laboratório por volta de 1978. Estávamos interessados nessa questão de o reparo do DNA ser ou não homogêneo, se havia regiões com melhor reparo do que outras. Ela analisou o DNA-alfa, que é uma sequên­cia de 179 nucleotídeos repetidos várias vezes, e descobriu que ele não era reparado tão bem quanto o resto do DNA. Esse foi o primeiro exemplo de reparo diferencial. Não tem nada a ver com a transcrição, mas com a estrutura da cromatina. Quando Mimi saiu, acho que em 1982, ela disse, “Por que vocês não olham os genes ativos?”. Muitas vezes as pessoas têm a falsa impressão de que os professores têm as ideias e orientam os alunos. Certamente têm, mas muitas ideias importantes vêm de alunos criativos. Um de meus pós-graduandos recentes mais brilhantes, Justin Courcelle, teve a ideia “herege” de que alguns dos chamados genes de recombinação não estão lá para atuar na recombinação. Ele fez alguns experimentos e mostrou que poderia ser verdade, com relação ao bloqueio da replicação de DNA. Isso provocou raiva nos que vinham trabalhando com recombinação, que disseram, “Como ele ousa afirmar isso?”. Justin publicou o artigo na revista PNAS, um trabalho excelente na minha opinião. Mas de alguma maneira fui parar numa lista de discussão por e-mail e as pessoas diziam que o artigo era péssimo. O que era péssimo era ele desafiar as convenções. Você acha que os cientistas estão abertos às novas ideias? Não mais do que as outras pessoas.

Então vocês estudaram os genes ativos?
Na verdade, a oportunidade para estudar alguma coisa também surge por acaso. No outro lado do prédio de biologia, em relação à minha sala, Robert Schimke está estudando a expressão de um gene em células ovarianas de um hamster chinês nas quais esse gene está amplificado 50 vezes. É como o DNA-alfa, há múltiplas cópias da mesma coisa. Se estamos procurando por algo em um gene específico, é mais fácil encontrar em 50 cópias desse gene do que em uma. Medimos o reparo nesse fragmento, mas foi preciso uma combinação de pessoas e ideias para chegar a um experimento que funcionou e mostrou que o gene é reparado de maneira mais eficiente do que o restante do genoma, porque ele é transcrito. Submetemos o trabalho à revista Cell – achei importante enviar para uma publicação com alto fator de impacto – e foi rejeitado. Eu então telefonei ao editor da revista e disse que não teria enviado o artigo para a Cell se não estivesse convencido de que se tratava de uma descoberta importante – era o primeiro relato de reparo seletivo de um gene expresso. Ele ouviu e disse, “OK”! Nem todo mundo pode resolver essas coisas telefonando para o editor da revista, mas eu construí certa credibilidade, suponho. Isso volta àquele fato de que novas ideias, por mais empolgantes que sejam, não são necessariamente aceitas. As pessoas não gostam do que vai contra os seus modelos ou que, de alguma maneira, tira a glória desses modelos. Em minha opinião, é importante proteger os interesses dos estudantes com ideias, para que não sejam atropelados por egos e pessoas mais bem-estabelecidas, que podem suprimir o que eles fazem ou incorporar as ideias sem lhes dar crédito adequado.

Essas atitudes vão contra a ciência?
Vão contra, claro. Outra coisa que me parece idiota é que algumas pessoas se sentem ameaçadas por seus ex-alunos, como se fossem competidores. Se os seus descendentes, os alunos que você formou, não forem bem-sucedidos, isso pega mal para você. Muito do que me entusiasma em ciência é ver pessoas treinadas em meu laboratório serem bem-sucedidas. É uma forma de um cientista atingir a imortalidade, já que não dá para ficar vivo por 50 anos além do normal.

O senhor também tem descendentes acadêmicos no Brasil, de certa maneira, não?
Rogério Meneghini [agora no Centro Latino-Americano e do Caribe de Informação em Ciências da Saúde] foi meu único pós-doutorando brasileiro. Eu sistematicamente tentei ter alunos do maior número possível de países, foram 34 países diferentes. Não só alunos, também teve gente que lavava vidraria no laboratório e secretárias. Enfim, Meneghini chegou ao meu laboratório em 1973, ficou por um ano – talvez um pouco mais – e fez um trabalho excelente. Depois ele voltou ao Brasil e passou a estudar reparo de danos oxidativos ao DNA e continuou a fazer um bom trabalho nessa área. Carlos Menck [agora na Universidade de São Paulo] foi seu aluno. Foi por causa dessa colaboração que, em 1977, Meneghini me convidou para dar palestras em um curso de seis dias. Foi lá que conheci Graciela, hoje minha mulher, que foi de Buenos Aires no lugar do chefe dela.

Então agora vocês estão aqui numa missão tanto pessoal como científica…
Pois é, e foi por acaso. Claro que o Congresso Brasileiro de Genética não foi programado para celebrar nosso aniversário de casamento!

O senhor se manteve em contato com o que acontece aqui no Brasil na sua área?
Na verdade, Menck é uma pessoa fora de série na área. Eu diria que ele é exemplar em sua habilidade de entusiasmar estudantes. Seus alunos escolhem bons problemas para trabalhar, muitas vezes com organismos pouco comuns. Dessa maneira eles conseguem informações importantes que contribuem muito para o conhecimento. É comum que todos trabalhem com a mesma bactéria, E. coli. A maior parte do que se sabe sobre reparo em bactérias foi feito com essa espécie. Mas ao examinar outros organismos, como ele fez, muitas vezes se descobre que nem todas as bactérias funcionam da mesma maneira que E. coli. Há outras maneiras de fazer a mesma coisa, podemos descobrir coisas novas com novos organismos.

É esse o melhor caminho para fazer essas descobertas?
É: sendo criativo, saindo dos caminhos batidos. Menck faz isso bem, e se mantém atualizado em relação à tecnologia moderna. Eu virei cientista porque estava interessado em saber como as coisas funcionavam, e também porque queria ser professor. A biologia molecular se tornou meu foco porque era fascinante e avançava aos saltos. Quando eu fazia pós-doutorado na Dinamarca, meu orientador organizou um encontro internacional chamado Biologia Molecular e 40 pessoas participaram. Hoje, se você organizar um congresso de biologia molecular, terá 50 mil participantes. Eu realmente gostei de ter viajado pelo mundo todo para participar de congressos científicos internacionais. Ao entrar em mutagênese ambiental, acabei indo a países onde se organizavam congressos não porque a ciência fosse evoluída naquele lugar, mas porque há problemas ambientais nacionais. Então acabo viajando para lugares muito interessantes. Não há fronteiras nacionais na ciência, fazemos amigos no mundo todo, em países com culturas diferentes, e estabelecemos ligações e uma comunicação comum, mesmo que as línguas sejam diferentes. Seria ótimo se o modo como a ciência opera pudesse ser usado como modelo para o relacionamento entre as nações, mas vá dizer isso a políticos e advogados.

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