O risco de um piloto ou copiloto da aviação comercial brasileira falhar de forma grave é cerca de 50% maior quando sua escala de trabalho se prolonga entre a meia-noite e as 6 horas da manhã. A cada 100 horas de voo realizadas durante a madrugada, os comandantes de jato cometem, em média, 9,5 erros de nível 3, o mais perigoso para a segurança da aeronave. Nos demais períodos do dia a probabilidade de haver um sério equívoco operacional se reduz praticamente à metade. De manhã, à tarde e à noite a frequência desse tipo de falha baixa para algo em torno de 6,5 erros a cada 100 horas no ar. Os dados fazem parte de um estudo feito por pesquisadores do Centro de Estudo Multidisciplinar em Sonolência e Acidentes (Cemsa) e Departamento de Psicobiologia da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp), cujas atividades são em grande parte financiadas pelo Instituto do Sono, um dos Centros de Pesquisa, Inovação e Difusão (Cepids) mantidos pela FAPESP. O trabalho foi publicado em dezembro do ano passado na revista científica Brazilian Journal of Medical and Biological Research.
O estudo analisou os erros de nível 3 cometidos por 987 pilotos durante seis meses, entre 1° de abril e 30 de setembro de 2005. Nesse período, os comandantes contabilizaram 155.337 horas de voo e, a despeito das 1.065 falhas constatadas pelos sistemas eletrônicos que gravam as manobras executadas pelos aviões, não houve registro de acidentes com vítimas entre as grandes empresas aéreas do país. Erros de nível 3 são aqueles que ultrapassam os limites operacionais de segurança definidos como padrão internacional, como virar o manche do avião numa angulação superior à recomendada, ou que ignoram os procedimentos especificados como padrão para a utilização do jato (um exemplo clássico é iniciar a descida para pouso com o avião não estabilizado na altura e velocidade recomendadas). Apesar de preocupantes, as conclusões da pesquisa devem ser vistas sem alarmismo, pois a quase totalidade dos erros é neutralizada por manobras corretivas, não redunda em acidentes e simplesmente passa despercebida pelos passageiros.
A maior incidência de procedimentos inadequados durante a madrugada não supreendeu os cientistas. A exemplo dos caminhoneiros, motoristas de ônibus e tantas outras profissões que iniciam seu expediente muito depois de o sol ter se posto ou frequentemente trabalham em turnos alternados, os pilotos de avião são obrigados a labutar horas a fio num momento do dia em que seu organismo, como qualquer organismo, deveria estar descansando. O saldo dessa jornada noite adentro, que desestrutura o chamado ritmo circadiano do corpo, não poderia ser outro: cansaço, sonolência, estresse e mau humor. Enfim, uma sucessão de fatores que elevam o risco de erro humano em qualquer profissão. Na aviação, cujos acidentes graves são em cerca de 80% dos casos imputados a falhas humanas, não é diferente. “O trabalho noturno faz os pilotos desempenharem tarefas num momento em que deveriam estar descansando e o aumento no índice de erros é da mesma ordem que já encontramos em motoristas de ônibus e de caminhão”, afirma Marco Túlio de Mello, coordenador do Cemsa e dos estudos com pilotos de avião. “Não é realista ser contra os voos à noite, mas queremos ter informações para criar estratégias capazes de minimizar possíveis erros.”
Não é só o cansaço físico que predispõe a falhas operacionais. O desgate de trabalhar em turnos alternados, de dormir fora de casa e longe da família com frequência também mina o equilíbrio psicológico dos pilotos, que em sua profissão têm de tomar constantemente decisões delicadas em frações de segundos. Em outro estudo, ainda não publicado, mas apresentado em congressos, os pesquisadores do Cemsa constataram que o humor dos comandantes que iniciam sua jornada de trabalho entre meia-noite e seis horas encontra-se debilitado em relação ao estado de espírito dos que pegam no manche nos outros períodos do dia. A deterioração foi verificada apesar de todos os pilotos dizerem que dormem frequentemente entre seis e oito horas, que seu sono é bom e que não têm um cotidiano estressante. “Sua capacidade cognitiva está abaixo do normal, aumentando a probabilidade de ocorrerem acidentes por falha humana na madrugada”, diz Mello.
O trabalho colheu informações de 91 pilotos de linhas comerciais que operam no Brasil, todos com pelo menos dez anos de profissão e que voam em igual proporção tanto de dia quanto de noite. Eles responderam a um questionário formulado por um instrumento de pesquisa originalmente concebido para medir o estado psicológico de atletas que participam de competições, a Escala de Humor do Brasil (Brams). Essa metodologia, que também pode ser aplicada em não esportistas, abrange 24 itens e mensura seis tópicos relacionados ao humor. Em cinco deles (tensão, depressão, raiva, vigor e fadiga), o desempenho dos comandantes que começam a voar de madrugada é pior do que o dos que iniciam o expediente nos outros três períodos do dia. Apenas num quesito, confusão mental, que mede o controle emocional e o nível de atenção, o índice foi o mesmo para todos os pilotos, independentemente do horário de início da jornada nos céus. De acordo com os pesquisadores, esse último dado sinaliza que, mesmo cansados e eventualmente com sono, os comandantes dos voos corujões conseguem se manter alerta. Isso, no entanto, não anula a principal conclusão do segundo estudo: para um piloto, iniciar a jornada de trabalho no meio da noite é muito mais desconfortável do que acabá-la de madrugada.
Os voos noturnos fazem as pessoas pensar naquelas longas viagens internacionais, que demoram ao menos dez horas e ligam o Brasil à Europa ou aos Estados Unidos. Mas, segundo um dos autores do segundo estudo, um experiente comandante de jato de uma grande companhia nacional que iniciou a prós-graduação na Unifesp e prefere, por ora, ficar no anonimato, essas travessias intercontinentais não são as mais arriscadas. “Nesse tipo de voo há geralmente dois comandantes e dois copilotos e eles se revezam no decorrer da jornada. Assim dá tempo para que todos durmam e descansem”, afirma o comandante. “O cansaço é maior nos voos domésticos da madrugada em que a mesma tripulação trabalha durante horas, fazendo muitos pousos e decolagens.” Nos seis meses de 2005 analisados no primeiro estudo, os voos entre meia-noite e 6 horas da manhã representaram 7% do total das viagens. Pode parecer pouco, mas há uma tendência de os voos corujões aumentarem. “Há dez ou 15 anos, os aviões costumavam pernoitar em alguns aeroportos”, conta o piloto-pesquisador. “Agora eles quase não param mesmo à noite.”
Um piloto dormir no manche do avião é uma cena muito mais rara do que um motorista de ônibus ou caminhão cochilar no volante. Mas pode acontecer. Em fevereiro de 2007, os comandantes de um voo da Go! Airlines que saiu de Honolulu às 21h15 com destino a Hilo, no Havaí, um trajeto que dura normalmente meia hora, dormiram por quase 20 minutos na cabine. A despeito dos insistentes contatos do pessoal da torre de controle e de outros aviões nas redondezas, eles passaram direto pelo aeroporto onde deveriam pousar e só despertaram 50 quilômetros adiante. Para sorte dos 40 passageiros a bordo da aeronave, os pilotos acordaram a tempo de dar meia-volta e aterrar o jato com segurança. Em junho do ano passado, um episódio semelhante aconteceu com um avião da Air India com cem passageiros, que fazia, durante a madrugada, a rota Dubai-Jaipur-Mumbai. Exaustos, os pilotos cerraram os olhos na cabine, ignoraram por completo o aeroporto de Mumbai, seu destino, e foram despertados de seu sono profundo mais de 500 quilômetros adiante por uma espécie de aviso sonoro enviado por rádio pelos controladores de voo. A tripulação recobrou a consciência e, como no caso do avião da Go! Airlines, retomou sua rota e pousou o jato sem problemas. As duas histórias tiveram finais felizes, mas são um alerta de que não levar em conta o relógio biológico dos pilotos aumenta os riscos de acidente.
Estudos feitos com várias profissões que trabalham em turnos mostram que ficar acordado por mais de 19 horas ou ter uma jornada de trabalho superior a 12 horas provoca sintomas semelhantes ao de um porre. Se essas duas condições se sobrepõem numa madrugada, as consequências negativas se potencializam ao extremo. As reações ficam mais lentas e o julgamento da realidade é comprometido. No caso da aviação, há ainda o agravante de que os pilotos trabalham a 10 mil metros do solo, no comando de aeronaves complexas e delicadas, às vezes com mais de uma centena de passageiros a bordo. “Precisamos pensar na possibilidade de individualizar as escalas de trabalho na aviação”, diz Franco Noce, outro autor dos estudos, que faz seu doutorado na Unifesp. “Talvez com a adoção de turnos fixos.” Para que essa estratégia funcione a contento, será necessário estabelecer uma parceria com as companhias aéreas e determinar o período do dia em que cada piloto se sente mais confortável.
Comandantes classificados como vespertinos ou matutinos extremos poderão ter sua escala de trabalho adaptada para os horários em que se sentem mais confortáveis, respectivamente, à noite ou pela manhã, com períodos de folga que não comprometam suas atividades pessoais e sociais. Por meio da adequação de turnos de trabalho, o Cemsa reduziu os índices de acidentes e mortes em empresas de ônibus, de transporte ferroviário, de produção de energia e mineradoras, que desenvolvem atividades ininterruptamente ao longo do ciclo claro-escuro. A atuação do centro redundou também em alterações na legislação de trânsito que recentemente passou a incluir a avaliação dos distúrbios do sono em condutores de veículos.
A equipe de Marco Túlio de Mello também iniciou estudos para medir o humor de outras categorias envolvidas no mundo da aviação, como os controladores que cuidam do tráfego aéreo militar e os pilotos de caça. Os pesquisadores esperam estabelecer uma relação de confiança mútua com a Anac (Agência Nacional de Aviação Civil), o Centro de Investigação e Prevenção de Acidentes Aeronáuticos (Cenipa), o Instituto de Controle do Espaço Aéreo (Icea) e as empresas do setor. “Queremos ajudar a aumentar a segurança dos voos e não criar problemas”, afirma o pesquisador e professor da Unifesp. “Mas, para isso, temos de conhecer as particularidades e as pessoas que trabalham no setor.” No Brasil, os pilotos só podem voar no máximo 85 horas por mês, mas ainda não há uma adoção de princípios científicos para montar a escala dos pilotos. A Organização Internacional da Aviação Civil (Icao), agência das Nações Unidas que promove a segurança no transporte aéreo, soltou uma diretriz que passa a vigorar a partir de 19 de novembro deste ano pedindo a adoção de princípios e do conhecimento científico para regular a jornada de trabalho e descanso da tripulação de aeronaves. Como se vê, o tema está na ordem do dia e a questão ainda está no ar.
Os projetos
1. Monitoramento do processo decisório e dos estados de humor de pilotos de caça e instrução nas situações antes e após missões (nº 07/04623-1); Modalidade Auxílio Regular a Projeto de Pesquisa; Coordenador Marco Túlio de Mello – Unifesp; Investimento R$ 170.586,93 (FAPESP)
2. A influência dos turnos de trabalho e da pausa na tomada de decisão de controladores de voo militares (nº 07/04566-8); Modalidade Auxílio Regular a Projeto de Pesquisa; Coordenador Marco Túlio de Mello – Unifesp; Investimento R$ 79.248,17 (FAPESP)
Artigo científico
DE MELLO, M.T. et al. Relationship between Brazilian airline pilot errors and time of day. Brazilian Journal of Medical and Biological Research. v. 41, n.12, p. 1.129-1.131. dez. 2008.