Todos os anos, dezenas de navios de luxo partem do Caribe e da costa sul dos Estados Unidos rumo à foz do rio Amazonas. A bordo estão turistas norte-americanos e europeus interessados em conhecer as belezas da região amazônica sem abrir mão das comodidades de um cruzeiro de alto padrão, como piscina aquecida, restaurante de gastronomia sofisticada e cabines com serviços personalizados. Na serra de Parintins, conhecida como Boca da Valéria, os passageiros visitam comunidades ribeirinhas às margens do Amazonas, onde têm a chance de fazer trilha no mato, adquirir colares de coquinhos produzidos por artesãos e tirar fotos com filhotes de jacarés. Em troca, distribuem alguns dólares. A relação comercial não passa disso – os estrangeiros são instruídos, momentos antes de descerem do navio, a não comprar comida nem bebida no local, para evitar possíveis casos de intoxicação. Retornam à embarcação horas depois, deixando os ribeirinhos à espera do próximo cruzeiro.
Por trás desse estilo de turismo estão empresas de cruzeiros luxuosos que atraem viajantes milionários ao construir uma imagem exótica e pitoresca da Amazônia e seu povo. “Mais do que isso, ocupam parte do território brasileiro, beneficiando-se de recursos ambientais e da infraestrutura portuária, sem gerar benefícios econômicos e sociais para a população local”, afirma a geógrafa e consultora ambiental Thaís Zucheto de Menezes, que se debruçou sobre o assunto durante o mestrado, realizado na Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo (FFLCH-USP). Ao analisar a atuação de seis companhias estrangeiras e de secretarias estaduais e municipais de Turismo da região, ela identificou uma dinâmica no mínimo preocupante.
“De modo geral, as secretarias incentivam a vinda de cruzeiros a fim de promover o turismo, com a possibilidade de gerar renda e melhorar a infraestrutura das cidades”, diz Menezes. Mas o estudo mostrou que não é isso que ocorre. “Há casos de secretarias que ficam subordinadas às empresas.” Em portos fluviais do Amazonas e do Pará, por exemplo, Menezes observou que os visitantes não pagam taxas de desembarque, diferentemente do que acontece em outros lugares do país. As únicas cobranças são feitas por agências de turismo locais, que oferecem pacotes de passeios nos municípios onde os navios aportam, como Santarém e Belém. “Além disso, a estrutura dos terminais hidroviários é desigual. Os barcos regionais atracam em plataformas mais rudimentares do que aquelas montadas exclusivamente para os cruzeiros luxuosos.” Procurada pela reportagem de Pesquisa FAPESP, a Secretaria Estadual de Turismo do Pará informou que os custos do desembarque dos passageiros ficam a cargo das empresas envolvidas, mas confirmou interesse em construir terminais hidroviários exclusivos para os cruzeiros. “O governo encomendou a elaboração de estudos para viabilizar a construção de terminais especiais para receber os navios internacionais em Santarém e Belém. É uma forma de incrementar o turismo na região”, disse André Dias, secretário de Turismo do Pará.
Assim como a arte contemporânea, o luxo é ao mesmo tempo global e restrito, diz Ortiz
Navios que viajam pela Amazônia são apenas uma das facetas do chamado mercado global de bens e serviços de luxo, que alcançou US$ 1,4 trilhão em 2019 – um aumento de 4% em relação ao ano anterior, de acordo com a consultoria Bain & Company. Chama a atenção que o segmento cresce significativamente mesmo diante do ambiente de turbulência econômica global, observa o sociólogo Renato Ortiz, da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp). “O mercado do luxo detém um enorme poder econômico e, talvez por isso, seja pouco fiscalizado e controlado”, afirma. “Há muitas incógnitas relacionadas a esse setor, a começar pela dificuldade de conseguir informações sobre as empresas que atuam nele”, diz Ortiz, que se valeu de dados pontuais divulgados por consultorias privadas, jornais de economia e revistas especializadas para escrever o livro O universo do luxo (Alameda, 2019).
A obra mergulha no universo de marcas como Dior, Louis Vuitton e Rolex para analisar características pouco conhecidas, como a emergência de uma elite transnacional que incorpora novas formas de se distinguir na sociedade. “Assim como a arte contemporânea, o luxo é ao mesmo tempo global e restrito”, observa Ortiz. “Roupas da marca francesa Chanel podem ser encontradas no mundo todo, mas são inacessíveis à maioria das pessoas.” Na avaliação do pesquisador, vinhos raros, jatos privados, joias – e, por que não, cruzeiros luxuosos – são bens que se afastam de suas raízes nacionais para se tornar símbolos de status e “bom gosto”.
Para o sociólogo, o modo de vida dos mais ricos não deve ser ignorado pelas ciências sociais, especialmente por pesquisadores que buscam captar as minúcias das relações de poder da sociedade contemporânea. Contudo, só recentemente áreas como sociologia e antropologia começaram a dar mais atenção aos hábitos de consumo das elites. “O olhar dos cientistas sempre se voltou para as classes mais pobres, que são as que mais sofrem com a falta de emprego e renda. A dominação das elites geralmente é estudada do ponto de vista político, não cultural”, esclarece Ortiz. Investigar de maneira crítica como as classes mais abastadas consomem e vivem pode fornecer pistas importantes para entender por que a desigualdade social e a concentração de renda seguem aumentando. “Uma pessoa que gasta milhares de dólares hospedando-se em um hotel de luxo na Polinésia Francesa revela um comportamento típico dos consumidores de alto poder aquisitivo, que é a busca por tudo aquilo que é exclusivo e feito para poucos”, avalia.
Mesmo apetrechos vendidos em feiras de artesanato no Nordeste tornam-se objeto no mercado de luxo – desde que passem pelas mãos de algum designer conceituado. É o que mostra a dissertação de mestrado da designer Viviane Mattos Nicoletti, desenvolvida na Faculdade de Arquitetura e Urbanismo (FAU-USP). “Os artesãos fornecem, por exemplo, móveis de madeira para que designers famosos adequem as peças ao gosto do mercado de luxo, e que depois são vendidas em lojas especializadas de grandes centros urbanos”, explica Nicoletti, professora no Instituto Europeo di Design e na Universidade São Judas, em São Paulo. Ela analisou essa prática em três comunidades de artesãos. A que constrói móveis e esculturas de madeira, na beira do rio São Francisco, em Alagoas; uma formada por mulheres que confeccionam bonecas de pano em Riacho Fundo, na Paraíba; e, por fim, um grupo que produz cestos de palha em Várzea Queimada, no Piauí.
As bonecas, também conhecidas como bruxinhas, são feitas de retalhos de pano e facilmente encontradas em todo o Nordeste. Em 2002, um escritório de design brasileiro com forte atuação na Europa utilizou as bonecas feitas em Riacho Fundo para compor uma poltrona produzida em série limitada de 35 unidades. “Elas foram vendidas em galerias internacionais de arte e ainda hoje marcam presença em leilões”, conta Nicoletti. “Em pouco tempo, as bonecas se tornaram objetos icônicos para aficionados por artefatos populares, e a comunidade de artesãs passou a receber encomendas de lojistas da Europa e dos Estados Unidos, que negociaram diretamente com as artesãs.” Isso incomodou o escritório e seu representante europeu, que resolveram reformular o contrato de parceria com as artesãs, exigindo exclusividade de venda e direitos autorais sobre a tradicional boneca. Auxiliadas por um advogado, as artesãs recusaram a proposta, e a agência decidiu romper o contrato definitivamente. Com o revés financeiro, elas tiveram dificuldade de retomar suas funções originais. “Por meio de seus agentes mediadores, o mercado de luxo busca monopolizar a venda dos objetos artesanais quando eles passam a portar significados e narrativas embutidos pelo design”, observa Nicoletti. “Ao longo dessa intervenção, percebe-se a ausência de medidas que promovam a autonomia dos artesãos, para que tenham controle sobre a comercialização do que produzem e possam acessar inclusive os consumidores finais. Essa situação revela um cenário de submissão.”
O ímpeto de apropriação, como uma característica central do mercado de luxo, também transparece no movimento de ocupação do espaço urbano por imóveis de alto padrão. Ao analisar esse fenômeno em São Paulo, a urbanista Raquel Rolnik, da FAU-USP, demonstrou como os negócios desse segmento do mercado imobiliário subiram 13% em 2017, enquanto a comercialização de imóveis na capital paulista caiu 4,5% no mesmo período. Assim como ocorre com os cruzeiros de luxo, que atracam em estruturas diferenciadas nos portos da Amazônia, a segregação da espacialidade é um negócio lucrativo nas grandes cidades do Sudeste brasileiro. “O crescimento no volume de vendas e no valor de imóveis luxuosos, também conhecidos como superprime, obviamente tem pouco a ver com aumento da demanda por habitações”, afirma Rolnik. “Esses imóveis caros são uma forma de investimento ou ‘entesouramento’ por parte de capitais financeiros, geralmente globalizados.”
Léo Ramos Chaves
De acordo com a urbanista, imóveis ultracaros representam uma maneira eficaz de absorver capital excedente na perspectiva de médio e longo prazo. “A tendência é que eles se valorizem, permitindo que as classes altas alavanquem mais capital”, explica Rolnik, lembrando, por exemplo, que em bairros nobres de Londres, na Inglaterra, há milhares de casas e apartamentos vazios, mesmo a cidade passando por uma crise habitacional preocupante. De acordo com Rolnik, uma consequência disso em lugares como São Paulo é que os moradores de classes mais baixas precisam concorrer com milionários pelo espaço urbano. “Enormes pedaços da cidade são tomados por imóveis desocupados. E esse não é um fenômeno observado apenas em áreas centrais da cidade. Na periferia, condomínios de luxo já competem com moradias populares na busca por novos terrenos”, analisa.
Em 2011, um anel de 12 quilates de safira e 14 diamantes, avaliado em mais de R$ 1 milhão, foi sensação de vendas na rua 25 de Março, lugar tradicional de comércio popular de São Paulo. Na verdade, tratava-se de uma réplica barata, de pouco mais de R$ 20, do anel utilizado por Kate Middleton no dia de seu casamento com o príncipe William. O artefato veio da tradição real britânica e pertenceu à princesa Diana (1961-1997). Ao aparecer em close na mídia, a joia logo se popularizou. “Trata-se de um exemplo emblemático de como elementos de luxo podem se alastrar pelo cotidiano das camadas mais baixas da sociedade”, comenta o geógrafo Carlos Henrique Costa da Silva, da Universidade Federal de São Carlos (UFSCar), campus de Sorocaba, estudioso do mercado de luxo desde o início dos anos 2000.
Ele explica que uma característica desse segmento é reproduzir-se o tempo todo na sociedade, como forma de ampliar mercados e ditar padrões de consumo, tais como a ideia de que, de vez em quando, a pessoa pode “se dar ao luxo” de comprar algo caro. Tomando emprestado o conceito de democratização do luxo, proposto pelo filósofo francês Giles Lipovetsky, Silva explica que não se trata exatamente de tornar o luxo mais aberto, mas sim reproduzir nas pessoas o sonho do inacessível. “Algumas marcas até lançam produtos um pouco mais acessíveis, que podem ser comprados, não sem algum sacrifício, pela classe média. A pessoa sente o gostinho de ter uma carteira ou um cinto de uma marca famosa, sem necessariamente tornar-se um consumidor fiel dos artigos mais caros da empresa.”
Essa estratégia tem como objetivo, avalia Silva, alavancar o valor da marca, fazendo de seus produtos algo desejado por muitos, mas conquistado por poucos. No entanto, também há nessa técnica publicitária a tarefa de “educar” futuros milionários, tornando-os potenciais compradores de artigos luxuosos. De olho no mercado de luxo brasileiro – e sabendo que o parcelamento no cartão de crédito é uma tradição mesmo entre as classes mais abastadas do país –, a grife francesa Louis Vuitton liberou essa modalidade de pagamento apenas no Brasil. “Aqui é o único país onde se pode parcelar em 10 vezes uma bolsa dessa marca avaliada em alguns milhares de dólares”, conta Silva.
A formação de novos consumidores funcionou especialmente na China, cujo mercado de luxo cresceu cerca de 26% em 2019, atingindo € 30 bilhões, de acordo com pesquisa feita pela consultoria italiana Altagamma. Segundo o estudo, a presença chinesa é cada vez mais expressiva no consumo de carros, artes, alta gastronomia, hotéis de alto padrão e vinhos raros. No geral, os asiáticos constituem a maioria dos consumidores globais de bens pessoais de luxo – aproximadamente 51%. “Nos últimos anos, a imensa ascensão da classe média na China fomentou o contato do país com hábitos de consumo ocidentais. Milhões de chineses viajaram para a Europa e para os Estados Unidos, onde conheceram grifes de luxo. Esse movimento também foi seguido pelos novos ricos do país”, observa Silva.
Nos últimos anos, atraídas pela mão de obra barata e pelo mercado em expansão, muitas marcas abriram fábricas e lojas no país asiático. O surto do novo coronavírus, no entanto, já afeta o setor. Levantamento feito em fevereiro pela revista Forbes mostrou que, em menos de três meses, foram fechadas por tempo indeterminado 150 das 250 lojas que o grupo norte-americano Capri Holdings – detentor de marcas como Versace e Michael Kors – mantém na China. A também norte-americana Ralph Lauren encerrou a atividade de metade de suas 115 lojas no país, enquanto a alemã Adidas relatou ter “fechado temporariamente” um número considerável de seus 12 mil pontos de venda em território chinês.
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