de Bethesda
Em 2009, o Centro Nacional para Recursos de Pesquisa (National Center for Research Resources, NCRR), parte dos Institutos Nacionais de Saúde (NIH), sediado em Bethesda, cidade vizinha a Washington, capital dos Estados Unidos, comunicou que oito grupos de universidades dos Estados Unidos receberão US$ 171 milhões nos próximos cinco anos para levar adiante seus projetos de pesquisa. Seria algo corriqueiro, não fosse pelas pretensões e dificuldades envolvidas: essas instituições terão de fazer com que achados científicos se convertam em novos medicamentos, diagnósticos ou serviços de uso amplo. A dificuldade será mobilizar pesquisadores acadêmicos, médicos e outros profissionais da saúde, empresas e comunidades de usuários, que terão de trabalhar simultaneamente em torno de objetivos comuns.
Esses centros de pesquisa médica, sediados nos estados de Nova York, Illinois, Arkansas, Texas, Carolina do Sul e Flórida, são os mais novos integrantes do programa Clinical and Translational Science Awards (CTSA), que reúne atualmente 11 mil pessoas – especialistas de instituições acadêmicas, hospitais, associações profissionais, empresários e organizações comunitárias locais – em 46 centros de pesquisas médicas em 26 dos 50 estados norte-americanos. O CTSA representa um dos esforços mais recentes dos NIH para promover a chamada pesquisa translacional, definida como o trabalho integrado de todos os interessados – dos inventores aos usuários finais – na passagem, ou translação, de descobertas científicas ao mercado consumidor.
Um dos resultados desse programa iniciado em 2006 é um dispositivo de liberação pressurizada de medicamentos diretamente do nariz para o cérebro, evitando os efeitos colaterais causados pelas altas concentrações de drogas administradas oralmente. Os pós-graduandos que criaram o dispositivo no Centro de Análise de Gene e Sequenciamento de DNA da Universidade de Washington ganharam US$ 50 mil de um fundo de inovação da universidade, licenciaram a tecnologia e abriram uma empresa para desenvolver o aplicador nasal de remédios. Outros resultados são mais sutis, como a redução do tempo de aprovação das propostas de testes clínicos de novos medicamentos de seis meses para 45 ou 30 dias, “desde que todos trabalhem juntos desde o início”, comenta Heng Xie, supervisor médico do NCRR. “O desafio mais difícil é encorajar os cientistas a colaborarem em vez de competirem entre si”, disse Anthony Hayward, diretor da divisão para recursos de pesquisa clínica do NCRR. E como fazer os cientistas colaborarem? “Oferecendo financiamentos elevados, de US$ 4 milhões, às vezes US$ 10 milhões por ano, mostrando que os cientistas podem ir mais longe se trabalharem juntos e apoiando os objetivos deles.”
Definida como a construção conjunta de soluções para problemas que afligem grupos diferentes de pessoas, a pesquisa médica translacional implica o desenvolvimento coletivo, não só a transferência, de tecnologias que facilitem o tratamento ou a prevenção de doenças comuns ou raras. Quanto mais diversificado for o grupo de participantes, melhor, porque os problemas podem ser antecipados e resolvidos conjuntamente, antes de se agravarem. A participação de líderes comunitários e profissionais de saúde de hospitais locais, a que se ligam os grupos acadêmicos, tem sido valorizada como forma de identificar de que cuidados médicos as pessoas necessitam e de levar os avanços das pesquisas de modo mais rápido. “Mais que dizer ‘queremos algo de você’, temos de perguntar ‘o que podemos fazer por você?'”, reconheceu Steven Reis, professor de medicina da Universidade de Pittsburg, em uma edição recente da revista NCRR Reporter. Para levar adiante um levantamento sobre doenças cardíacas, ele procurou um diretor da Liga Urbana da Grande Pittsburg, uma organização não governamental que atende os moradores da região. Decidiram começar com exames médicos simples, de sangue e pressão arterial, que era o que os moradores mais queriam. Esse contato ajudou Reis a atrair os participantes de que precisava para seu estudo.
Os coordenadores do CTSA incentivam a visibilidade dos pesquisadores e dos trabalhos de que participam. “Está vendo a videocâmera no computador do doutor Hayward?”, pergunta Xie, olhando para trás, em um dos momentos da entrevista em que se baseou esta reportagem. “Ele a usa bastante para se conectar com as pessoas”, diz. “Se as pessoas realmente querem trabalhar juntas, a distância não é um grande problema.” Outra forma de vencer as barreiras institucionais, uma das metas do CTSA, é o Building Connections, uma das partes do site do CTSA (www.ctsaweb.org) que promove a interação entre os grupos de pesquisa, escolas de negócios, empresas, comunidades e o público em geral.
Outra peculiaridade do CTSA é que os coordenadores dos projetos de pesquisas podem receber financiamentos, simultaneamente, de empresas farmacêuticas. “Tem havido uma enorme separação entre empresas e centros médicos acadêmicos, mas eles têm de trabalhar mais próximos, por causa das exigências das agências reguladoras, cada vez mais complicadas”, observa Hayward, diretor da divisão para recursos de pesquisa clínica do NCRR. Outra justificativa para essas parcerias são os custos de desenvolvimento de novos medicamentos ou produtos médicos, que têm aumentado e, segundo ele, “os centros acadêmicos não têm condições de bancar”. Os encontros com empresários, tanto quanto com os representantes de comunidades, são constantes. O mais recente, em fevereiro, foi o CTSA Industry Forum, planejado para facilitar as colaborações entre governo, empresas, universidades e organizações não governamentais para acelerar a descoberta e desenvolvimento de medicamentos, dispositivos e diagnósticos médicos e para explorar novas oportunidades de parcerias. “Temos interfaces, obviamente evitando conflitos de interesses entre academia, governo e indústria”, diz Hayward. “As empresas querem produtos bem-sucedidos, mas não vamos descuidar da necessidade de os medicamentos serem seguros, nem queremos que o governo favoreça uma ou outra empresa. Mantemos a independência acadêmica. Os acordos estabelecem padrões éticos elevados.”
O desejo de transformar grandes achados laboratoriais em produtos comerciais mobiliza pesquisadores também no Brasil e inspira cursos como o A.C. Camargo Global Meeting of Translational Science, de 19 e 30 de abril, em São Paulo, sob a coordenação de Ricardo Brentani e Emmanuel Dias. Esper Cavalheiro, professor de neurologia da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp), rememora: “A separação entre o básico e o clínico já me incomodava muito quando instituímos a pós-graduação em neurologia da Unifesp, reservada aos médicos com título de especialista em neurologia”. Transformando a angústia em ação, no final dos anos 1980 ele conseguiu da Coordenadoria de Aperfeiçoamento de Pessoal do Ensino Superior (Capes) a permissão para o curso de pós aceitar também quem não era médico – e receberia o título de doutor em neurociência para diferenciar dos estudantes médicos, que seriam doutores em neurologia. “Muitos nos seguiram e hoje a impossibilidade de agregar profissionais de outras áreas já não é um impedimento na pós-graduação nacional.”
Segundo ele, seu grupo de pesquisa, embora sem usar o termo “translacional”, sempre procurou ver como o conhecimento que obtinha nos experimentos com animais poderia ajudar a melhorar o tratamento da epilepsia em seres humanos. “É um típico caso de caminho de mão dupla. Além de discutirmos tudo em conjunto, os clínicos que olham os pacientes mais de perto trazem novas perguntas”, ele diz. “E fomos mais longe ao criarmos já na década de 1980 a Associação Brasileira de Epilepsia, para as pessoas com epilepsia, seus familiares e profissionais interessados, e em reuniões mensais transferimos para a sociedade os avanços na área que podem lhe interessar diretamente.” Poucos anos atrás, quando o grupo imaginou o Instituto Nacional de Neurociência Translacional, que ele coordena desde o início, “todo o grupo de pesquisadores envolvidos já estava, de uma forma ou de outra, trabalhando com esse aspecto translacional em suas pesquisas”.
“Ciência e tecnologia sempre andaram juntas, mas não realmente integradas”, lembra ele. “Assim como em áreas do conhecimento, as ciências básicas da área biológica, por vários fatores históricos, nunca tiveram muita preocupação com a utilização prática dos resultados de seu trabalho.” Termos como “interdisciplinar” ou “multidisciplinar” tentaram aproximar os dois universos ao longo dos anos 1980 e 90. “Mas também já faz tempo que não adianta só boa vontade, nem termos novos. A própria política de estímulo às pesquisas não ajudava muito. A busca pura de aplicação para os resultados da ciência não dava muito ibope acadêmico. Era preciso ser mais diferenciado, buscar o conhecimento e a verdade, esse era o verdadeiro papel do acadêmico.”
A seu ver, as Iniciativas Nacionais de Inovação, das quais seu instituto faz parte, promove a integração de especialistas de áreas diferentes para que, conjuntamente, produzam e apliquem novos conhecimentos, gerando benefícios sociais e econômicos, além de acadêmicos. “Tínhamos de ir além da associação entre áreas básicas e clínicas da saúde, pois novos equipamentos médicos demandam engenheiros e cientistas de software; para novos medicamentos, precisamos de químicos e físicos; para estudos populacionais de saúde, de matemáticos e estatísticos; para os impactos sociais das chamadas novas doenças, de cientistas humanos e sociais”, comenta Cavalheiro.
Ele conta que participou de algumas reuniões de planejamento de um dos programas de pesquisa translacional dos NIH. “Lá, com mais dinheiro, o projeto era muito claro e se dirigia a todos os grupos acadêmicos em saúde, com ou sem interação com empresas. Foi até criado um braço lateral dos NIH só para cuidar do programa. Tem um gerenciamento muito adequado, de forma que podemos acompanhar as conquistas de maneira muito clara.” Por aqui, segundo ele, predomina a pesquisa inter ou multidisciplinar, em que cada pesquisador tem sua própria ideia e bate à porta de outro pesquisador para pedir ajuda. “Não adianta chamar o outro para ajudar em seu problema”, alerta Cavalheiro, que propõe uma visão convergente, em que todos participantes adotem a mesma pergunta (ver A reconstrução do homem, Pesquisa FAPESP nº 136). “O problema tem de ser de todos.”
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