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Itinerários de Pesquisa

Olhar diverso

Premiado na Bienal de Arquitetura de Veneza deste ano, Paulo Tavares se divide entre a vida acadêmica, o trabalho artístico e a defesa dos direitos humanos

Diego Bresani/Fundação Bienal de São Paulo

Sou da primeira turma de Arquitetura e Urbanismo da Unicamp [Universidade Estadual de Campinas], onde concluí a graduação em 2005. Naquela época, já tinha muito contato com arte, desenhava, tocava instrumentos, trabalhava com marcenaria. A arquitetura foi uma escolha baseada nos meus interesses pessoais. Era um curso novo na Unicamp, ainda em formação, e havia um direcionamento bastante “engenharístico”, mas a turma com a qual me formei, com 30 estudantes, tinha, de alguma maneira, um perfil muito ligado à arte e ao ativismo social. Aproveitei aquele momento e cursei matérias em outras áreas do conhecimento: fiz muitas aulas no Instituto de Artes, no Instituto de Filosofia e Ciências Humanas e no Instituto de Geociências. Isso me permitiu, desde muito cedo, desenvolver uma visão não tradicional da prática da arquitetura.

Quando ainda estava na graduação, integrei um coletivo de rádio livre chamado Rádio Muda. Atribuo a essa experiência grande parte da minha formação intelectual, artística e política, e também como arquiteto, porque convivi com pessoas de formações variadas. Na época, também criamos um coletivo chamado Submídia. Eram tempos de expansão da internet e das mídias independentes no Brasil. Participamos do programa Cultura Viva, do Ministério da Cultura [MinC], quando Gilberto Gil era ministro. Estivemos em diferentes festivais de mídia e ativismo, oferecemos oficinas, montamos rádios por todo o Brasil nos Pontos de Cultura, que eram o cerne desse programa do MinC.

Eu já tinha interesse em pesquisa. Como não havia muitos empregos para arquitetos, fui trabalhar com televisão e fazer mestrado em sociologia na Unicamp. Ao mesmo tempo, comecei, em 2006, um mestrado na FAU-USP [Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da Universidade de São Paulo]. Iniciei os dois simultaneamente, mas nenhum deles me encantou. Achei sociologia um curso muito teórico e o mestrado na FAU-USP me pareceu naquele momento muito desconectado das questões contemporâneas que me interessavam.

Quando participei de um seminário na Bienal de Arte de São Paulo, conheci o trabalho do Centro de Pesquisa em Arquitetura do Goldsmiths’ College – Universidade de Londres. Entendi que estava conectado com o que eles faziam e que ali havia espaço para as questões que eu estava buscando desenvolver, principalmente para o entendimento da arquitetura como instrumento de poder. Fui então, em 2006, fazer o mestrado no Centro do Goldsmiths, muito voltado para questões políticas, culturais e relacionadas à proteção dos direitos humanos. Durante a minha formação, participei da criação de uma agência chamada Forensic Architecture, que utiliza ferramentas da arquitetura para a proteção e o monitoramento de violações dos direitos humanos.

Em 2008, iniciei meu doutorado no próprio Goldsmiths, mas, em determinado momento, quando estava pesquisando a ocupação da Amazônia em diferentes países, entendi que deveria voltar para a América do Sul. Geralmente não falo “voltar”, falo “ir”. Eu tinha que ir para a América do Sul, porque, em certo sentido, não era uma volta e sim uma ida para um lugar novo, com toda aquela bagagem dos meus estudos. Fui morar em Quito, no Equador, onde passei alguns anos. Dei aulas na Pontifícia Universidade Católica do Equador e concluí meu doutorado, a distância, em 2015. Depois disso, fui para os Estados Unidos, onde passei um semestre, também em 2015, como pesquisador visitante na Universidade de Princeton e, no ano seguinte, outro semestre na Universidade Cornell.

Rafa Jacinto/Fundação Bienal de São Paulo Paulo Tavares e a arquiteta Gabriela de Matos no pavilhão brasileiro que integra a Bienal de Arquitetura de Veneza deste ano. O espaço concebido pela dupla de curadores recebeu o Leão de Ouro de melhor participação nacional no eventoRafa Jacinto/Fundação Bienal de São Paulo

Achei então que era hora de retornar ao Brasil e me candidatei ao pós-doutorado na FAU-USP. Naquele momento, em 2017, a bolsa da FAPESP foi muito importante – não só porque me deu condições de reinserção no meio acadêmico brasileiro, mas também porque me permitiu realizar o projeto “Memória da Terra”, que foi fundamental na minha trajetória de pesquisador. É um trabalho relacionado aos direitos humanos e territórios, desenvolvido em parceria com a Associação Xavante Bö’u, que também contou com a colaboração do Ministério Público Federal [MPF]. A partir de informações divulgadas pela Comissão Nacional da Verdade, o projeto investiga remoções forçadas do povo Xavante, em Mato Grosso, durante a ditadura militar.

O trabalho de campo iniciou-se em 2018. Após identificarmos as várias aldeias que haviam sido removidas pelo Estado brasileiro, conseguimos mapear seus sítios arqueológicos e entramos recentemente com uma petição no Iphan [Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional] para que esses locais sejam reconhecidos como patrimônio brasileiro. O projeto também virou livro [Memória da Terra: arqueologias da ancestralidade e da despossessão do povo Xavante de Marãiwatsédé], publicado pelo MPF, em 2020. Como era muito importante que o resultado dessa pesquisa retornasse para as comunidades, fizemos questão que o livro fosse distribuído nas escolas xavantes. Ou seja, aquela pesquisa, que começou a partir da bolsa FAPESP em 2017, teve vários desdobramentos que se estendem até hoje – não só acadêmicos, mas também com impactos sociais e culturais.

Neste ano, “Memória da Terra” integrou a Bienal de Arquitetura de Veneza, da qual participo como autor e arquiteto. Ao mesmo tempo, recebi da bienal o convite para assumir, ao lado da arquiteta Gabriela de Matos, a curadoria do pavilhão brasileiro na mostra. Não nos conhecíamos, mas, muito rapidamente, nos demos conta de que nossas práticas eram completamente alinhadas, mesmo que diferentes.

Escolhemos Terra como mote fundamental do espaço na mostra e nosso projeto recebeu o Leão de Ouro de melhor participação nacional, algo inédito na arquitetura brasileira. O pavilhão trabalhou a questão da memória e dos processos de restituição do patrimônio, das histórias e do território. Uma discussão contemporânea, global e que reflete o processo de reconstrução que o Brasil atravessa atualmente – uma espécie de medida reparatória pela violência colonial e pelo apagamento dos povos originários e afro-brasileiros.

Embora tenha feito e faça trabalhos de curadoria, como para a Bienal de Arquitetura de Chicago de 2019, não me enxergo como profissional dessa área. No caso, a curadoria é um dos campos em que minhas atividades e minha prática de arquiteto se manifestam. Também sou escritor, artista visual e participo da autonoma, agência que criei em 2017 em defesa dos direitos humanos e contra a violência do Estado.

Além disso, hoje alterno minhas atividades como professor entre a Universidade de Brasília [UnB] e a Universidade Columbia, em Nova York, onde sou professor visitante. Depois de crescer em Campinas, morar em lugares como São Paulo, Londres e Quito, vejo que esses deslocamentos geográficos foram muito importantes para eu adquirir não apenas uma visão mais complexa da geopolítica e da cultura mundial. Em alguns desses lugares, eu estava desempenhando minha atividade de professor e pude experimentar o que é ensinar em diferentes contextos, em diferentes instituições para diferentes comunidades. Essa diversidade ajudou a formatar minha visão da arquitetura e da própria atividade de pesquisador e professor.

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