Mais de 97% das estrelas da Via Láctea, inclusive o Sol, vão se transformar, em seu estágio evolutivo final, em uma anã branca, uma estrela degenerada e moribunda, extremamente densa e compacta. Um grupo de astrofísicos de instituições brasileiras, com a colaboração de um colega radicado nos Estados Unidos, encontrou um caso superlativo desse tipo de corpo celeste: uma anã branca, situada em um sistema estelar denominado CTCV J2056-3014, que dá uma volta em torno de si mais rapidamente do que qualquer outra anã branca conhecida, em apenas 29,6 segundos (s). Entre as anãs brancas, capazes de concentrar uma massa similar à do Sol espremida em um volume equivalente ao da Terra, o recorde anterior era de uma estrela que completa seu giro em 33 s.
A maioria dessas estrelas – sem reações de fusão nuclear em seu interior e, por isso, em processo de resfriamento – apresenta períodos de rotação da ordem de minutos a horas em sistemas binários, compostos de duas estrelas, ou de dias quando estão sozinhas. De tão densas, as anãs brancas conseguem abrigar 25 toneladas de matéria em um volume equivalente ao de uma caixa de fósforo. O sistema CTCV J2056-3014 se encontra a 850 anos-luz da Terra, em uma região mais ou menos vizinha ao sistema solar (a estrela mais perto da Terra, depois do Sol, é Proxima Centauri, a 4,2 anos-luz).
O dia na Terra tem cerca de 24 horas porque esse é o tempo necessário para o planeta executar uma volta em torno de si. “Na anã branca que estudamos, é como se o ‘dia’ durasse menos de meio minuto”, comenta o astrofísico Raimundo Lopes de Oliveira, da Universidade Federal de Sergipe (UFS) e do Observatório Nacional (ON), principal autor do estudo, publicado em 30 de julho na revista The Astrophysical Journal Letters (ApJL). “Em sua linha equatorial, a estrela gira a aproximadamente 1.350 quilômetros por segundo [km/s].” A título de comparação, a velocidade de rotação da Terra no Equador é de cerca de 0,46 km/s, quase três mil vezes menor. Apenas estrelas de nêutrons, ainda mais densas e compactas do que as anãs brancas, apresentam períodos de rotação menores do que a do sistema CTCV J2056-3014.
A celeridade do giro da anã branca em questão está associada às peculiaridades desse sistema. Ela se encontra muito perto de uma estrela similar ao Sol e ambas orbitam em torno de um centro de gravidade comum. Formam, no jargão dos astrônomos, um sistema binário. A distância entre as estrelas é mais ou menos a mesma que separa a Terra da Lua, por volta de 380 mil km, pouco em termos astronômicos. Elas estão tão próximas que a gravidade da anã branca consegue atrair matéria fluida das camadas externas da estrela companheira. “Onde a matéria cai ocorre emissão de raios X e também em menor intensidade de luz visível”, comenta a astrofísica Cláudia Rodrigues, do Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (Inpe), coautora do trabalho. “É a captura de matéria que faz a anã branca girar tão rapidamente.” Essas emissões apresentam uma periodicidade, que foi observada e possibilitou o cálculo do tempo necessário para a estrela dar uma volta em torno de si.
O sistema de estrelas estudado pertence à classe das chamadas variáveis cataclísmicas, mais especificamente as de tipo polar intermediária. Tal designação deriva da premissa de que a matéria que deixa a estrela similar ao Sol percorre o disco de acreção (uma estrutura circular difusa) em torno da anã branca e segue as linhas do campo magnético da estrela compacta até se depositar em sua superfície. Além de girar extremamente rápido, a anã branca analisada no artigo apresenta duas características físicas raras entre as variáveis cataclísmicas: sua luminosidade é baixa em raios X, o que dificulta sua identificação, e seu campo magnético parece menos intenso do que o padrão exibido por essa classe de estrelas. “É surpreendente termos encontrado um objeto tão peculiar no quintal da Terra, que havia passado despercebido. Deve haver outros semelhantes que ainda não foram identificados”, diz Lopes de Oliveira, especialista em observações de raios X, que fora responsável por projeto do Programa Jovem Pesquisador da FAPESP no Instituto de Física de São Carlos da Universidade de São Paulo (IFSC-USP) antes de se transferir para a UFS.
O interesse em estudar o sistema formado pela anã branca e sua estrela companheira surgiu a partir da colaboração de grupos de pesquisa nacionais que usaram diferentes telescópios em fases distintas de observação. Em 2012 e 2018, Rodrigues e o astrofísico Alexandre Soares de Oliveira, da Universidade do Vale do Paraíba (Univap), observaram cerca de 100 sistemas com potencial para abrigar variáveis cataclísmicas, se possível magnéticas. Fizeram observações na luz visível com o telescópio Soar, no Chile, e também no Observatório Pico dos Dias (OPD), em Brazópolis, Minas Gerais. Selecionaram cerca de 30 que lhes pareceram os mais promissores. “As estrelas desse tipo de sistema estão tão próximas que vemos só um pontinho luminoso, o brilho conjunto das duas”, explica Soares de Oliveira. “Não é possível distingui-las visualmente.”
A melhor forma de encontrar variáveis cataclísmicas é observar no comprimento de onda dos raios X. Rodrigues e Soares de Oliveira procuraram Raimundo Lopes de Oliveira e lhe propuseram o estudo de alguns sistemas candidatos a abrigar variáveis cataclísmicas. Os pesquisadores conseguiram tempo de observação no satélite XMM-Newton, da Agência Espacial Europeia (ESA), e identificaram o pulso de 29,6 segundos e peculiaridades na emissão em raios X no sistema CTCV J2056-3014.
Com esse dado em mãos, os astrofísicos se lembraram de que um colega, Albert Bruch, do Laboratório Nacional de Astrofísica (LNA), em Itajubá, Minas Gerais, havia estudado esse sistema na luz visível e publicado um artigo em 2018. “Mas eu não havia visto o pulso, pois então não estava procurando por esse tipo de dado”, conta Bruch. A pedido dos outros pesquisadores, ele analisou novamente os dados da observação e identificou uma variação cíclica de emissão da luz visível da dupla de estrelas a cada 29,6 s, exatamente igual à verificada nos raios X. Era mais uma evidência de que o período de rotação do sistema era inferior a meio minuto. O interessante é que as medidas de Bruch foram obtidas com um pequeno e antigo telescópio, o Zeiss, que tem um espelho de 60 centímetros, situado no OPD. “Isso mostra que um equipamento modesto pode produzir boa ciência e participar de projetos que envolvam grandes telescópios”, comenta Bruch, coautor do paper no ApJL, do qual participou também o astrofísico Koji Mukai, da Nasa, agência espacial norte-americana e da Universidade de Maryland em Baltimore County.
Artigo científico
OLIVEIRA, R.L. et al. CTCV J2056-3014: An X-Ray-faint intermediate polar harboring an extremely fast-spinning white dwarf. The Astrophysical Journal Letters. 30 jul. 2020