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Bioquímica

Organismo marinho tem fotoproteína verde desconhecida

Descobertas em águas profundas abrem caminhos biotecnológicos e aprofundam compreensão das formas de bioluminescência

Velamen parallelum produz brilho em resposta a contatos físicos

Museu de História Natural da Flórida

A 600 metros de profundidade, durante uma expedição científica realizada em 2017 perto do arquipélago de Alcatrazes, no litoral de São Paulo, um organismo gelatinoso surpreendeu pesquisadores ao colidir com um veículo submersível e emitir um flash de luz verde, fenômeno incomum entre animais bioluminescentes. Quase uma década se passou até ser descrito um conjunto até agora desconhecido de fotoproteínas verdes naturais descoberto no ser marinho, identificado como Velamen parallelum. O achado foi publicado em abril na revista científica The FEBS Journal e abre caminho para avanços nas áreas biomédica e biotecnológica.

“A descoberta do mecanismo químico partiu do acaso”, conta o biólogo Douglas Soares, da Universidade Estadual Paulista (Unesp), campus de Araraquara, primeiro autor do artigo. Na época, ele era pesquisador em estágio de pós-doutorado no Instituto de Química da Universidade de São Paulo (IQ-USP). “Meu projeto era com fungos, mas, por curiosidade, abri o freezer -80 °C no laboratório e olha no que deu.” Entre os tubos armazenados, ele encontrou uma amostra do organismo coletado anos antes e decidiu analisá-la.

Entrevista: Douglas Soares
00:00 / 06:54

Utilizando métodos de biologia molecular, clonagem e expressão gênica em sistemas bacterianos, Soares descobriu um conjunto de proteínas bioluminescentes (fotoproteínas) sensíveis ao cálcio, nomeadas velaminas, capazes de emitir luz verde naturalmente. A característica não tem precedentes entre proteínas desse tipo, que costumam emitir luz azul. Para estudá-las, o biólogo extraiu RNA do organismo e o converteu em DNA complementar (cDNA), que inseriu em bactérias para produção dessas proteínas em laboratório.

Depois de purificadas, as proteínas foram ativadas com celenterazina, uma molécula que funciona como uma espécie de combustível para bioluminescência, e testadas quanto à sua sensibilidade aos íons de cálcio, confirmando que eram fotoproteínas reguladas por esse elemento. “A reação que provocamos libera energia na forma de luz, não de calor; ter um sistema que emite naturalmente no verde é raro e muito vantajoso para estudos in vivo”, ressalta o químico Cassius Stevani, do IQ-USP, um dos autores do artigo.

Os cientistas também analisaram o espectro da luz emitida e testaram a estabilidade das proteínas em diferentes temperaturas. Com isso, identificaram três tipos principais, chamados alfa, beta e gama, sendo que o último se destacou por resistir melhor ao calor e emitir luz em um comprimento de onda mais longo. Isso aumenta a chance de esse tipo de molécula atravessar os tecidos biológicos sem ser absorvida por pigmentos contidos na hemoglobina, o que pode permitir a visualização de processos fisiológicos em tempo real.

Lucy SmiechuraFlutuando perto do fundo, cinturão-de-vênus é quase invisívelLucy Smiechura

Para o biólogo molecular e bioquímico Vadim Viviani, da Universidade Federal de São Carlos (UFSCar) e ex-presidente da Sociedade Internacional de Bioluminescência e Quimioluminescência (ISBC), essa característica torna as velaminas potencialmente promissoras para aplicações biomédicas, depois de modificadas. “Compreender o funcionamento dessas proteínas pode permitir ajustes estruturais para que emitam luz cada vez mais no espectro do vermelho, o que ampliaria significativamente sua utilidade em modelos animais e, futuramente, em diagnósticos clínicos”, comentou Viviani, que não participou do estudo publicado.

Apenas dois indivíduos de Velamen parallelum, também conhecido como cinturão-de-vênus, foram coletados para a realização do trabalho. O organismo é um tipo de ctenóforo, grupo filogeneticamente distinto das águas-vivas (cnidários), e se destaca por emitir luz em breves flashes quando estimulado por contato físico. Por viver em ambientes marinhos profundos e ter um corpo extremamente gelatinoso, que se desfaz facilmente ao toque, sua coleta representou um desafio técnico.

A oportunidade de capturá-lo surgiu durante a expedição organizada pela OceanX, iniciativa privada voltada à exploração e pesquisa no oceano, que utiliza embarcações equipadas com tecnologia de ponta. A convite da empresa, pesquisadores brasileiros mapearam a costa do país, entre eles o químico Anderson Oliveira, então pesquisador do Instituto Oceanográfico (IO) da USP e um dos autores do artigo da The FEBS Journal. “O submersível era como uma esfera de acrílico, onde passamos cerca de 10 horas no fundo do mar. Quando o organismo bateu no acrílico e emitiu uma luz verde, usamos o aspirador do braço robótico para sugá-lo, armazenamos em uma garrafa com água do mar e o congelamos.”

Atualmente, Oliveira é professor da Universidade Yeshiva, nos Estados Unidos, e segue em colaboração com a equipe brasileira em novas etapas da pesquisa. Uma delas, conduzida por Soares no campus de Araraquara da Unesp, busca ampliar o comprimento de onda da emissão luminosa para o vermelho e aumentar a estabilidade térmica das proteínas, tornando-as mais eficientes para aplicações in vivo.

O grupo também investiga o uso dessas fotoproteínas como sondas moleculares para detecção de cálcio em ambientes com alta concentração iônica, como no interior das hemácias. Nessas condições, sensores fluorescentes tradicionais, que dependem de luz externa para funcionar, costumam perder sensibilidade, pois operam no limite da detecção e não conseguem registrar pequenas variações na concentração de cálcio. Uma das estratégias em desenvolvimento é o uso combinado de fotoproteínas com diferentes comprimentos de emissão luminosa (azul e verde, por exemplo) para criar sistemas duplos de identificação.

Anderson Oliveira / Universidade YeshivaDentro desse veículo submersível, pesquisadores enxergaram brilho quando organismo colidiu contra o acrílicoAnderson Oliveira / Universidade Yeshiva

Essa abordagem permitiria monitorar, de forma simultânea e em tempo real, regiões celulares com diferentes níveis de cálcio, o que pode oferecer uma visualização mais precisa de processos fisiológicos complexos, como o mecanismo pelo qual as células se comunicam e coordenam suas funções, e a homeostase iônica, que é o equilíbrio das concentrações de íons essenciais ao funcionamento celular. Com isso, seria possível avançar no diagnóstico de doenças relacionadas ao metabolismo de cálcio, por exemplo, e no estudo de distúrbios cardíacos, neurológicos e musculares.

Além disso, o estudo dos ctenóforos contribui para o avanço do conhecimento sobre a biodiversidade brasileira, especialmente no ambiente marinho. Viviani, da UFSCar, ressalta que essa foi a primeira clonagem de uma fotoproteína de organismo marinho realizada no país, o que abre novas perspectivas para a pesquisa em bioluminescência aplicada a espécies marinhas da fauna local. Ele lembra ainda que, embora o Brasil seja reconhecido pela grande diversidade de organismos bioluminescentes terrestres, como besouros e fungos, a biodiversidade marinha continua pouco explorada nesse campo.

Fauna de águas profundas
O biólogo marinho português José Paitio, pesquisador de pós-doutorado no IO-USP, também tem ampliado o conhecimento da bioluminescência em organismos marinhos. Em parceria com pesquisadores de instituições japonesas, o grupo descreveu pela primeira vez a estrutura e a função do mecanismo biológico dos fotóforos de peixes do gênero Neoscopelus, habitantes das profundezas do oceano Pacífico, conforme artigos publicados nas revistas científicas Journal of Fish Biology, em abril, e Zoomorphology, em junho.

Os fotóforos são órgãos especializados na emissão de luz, compostos por células fotogênicas, refletores internos, filtros de pigmento e escamas modificadas. Juntos, esses componentes não apenas permitem que os peixes produzam bioluminescência, mas também modulem a direção, a intensidade e o espectro da luz emitida, fatores cruciais para a camuflagem por contrailuminação, uma estratégia que os torna praticamente invisíveis quando observados de baixo.

Chih-Wei ChenPeixes da família Myctophidae vivem em águas profundas e podem emitir luminosidadeChih-Wei Chen

“Nesses peixes, descobrimos que as células fotogênicas são controladas por meio de nervos. E, por mais impressionante que pareça, cada fotóforo está ligado a nervos específicos e o peixe consegue controlá-los individualmente”, destaca Paitio. Isso faz com que o animal ajuste a emissão luminosa conforme a profundidade, um mecanismo sofisticado de adaptação ecológica.

Para Stevani, do IQ-USP, que não participou do estudo, os resultados são importantes por trazerem informações inéditas sobre os fotóforos e por se basearem em uma amostra considerada robusta, algo difícil de obter nesse tipo de pesquisa – foram 28 indivíduos para os dois artigos. Ele também avalia que o trabalho abre margem para investigações semelhantes em outras espécies de águas profundas. “Tem um outro peixe interessante, Malacosteus niger, com dois fotóforos perto dos olhos que emitem luzes de cores diferentes. Queremos estudá-lo porque ainda não se conhece nada sobre esse mecanismo.”

A amostra do trabalho de Paitio e colaboradores foi possível graças a uma parceria com o Ministério da Pesca do Japão, além da compra de exemplares diretamente de pescadores na costa de Shizuoka, província localizada na região central do país. O material coletado garantiu volume e qualidade suficientes para as análises morfológicas e funcionais do estudo.

Os pesquisadores combinaram técnicas de laboratório, incluindo cortes criogênicos e marcações químicas, que permitiram localizar os nervos conectados aos órgãos emissores de luz, e o uso de microscopia eletrônica para analisar a estrutura detalhada das células pigmentares e refletoras.

Outra técnica utilizada foi a microespectrometria, adaptada em laboratório pelo próprio Paitio, que tornou possível medir, em escala micrométrica, o espectro da luz transmitida e absorvida por cada componente dos fotóforos. “Fizemos uma adaptação de um espectrômetro a um microscópio convencional e, com essa estrutura, conseguimos analisar áreas de apenas 40 micrômetros e identificar o que acontece com a luz naquele ponto: qual parte é transmitida, qual é absorvida e qual é refletida. Isso foi fundamental para entender o funcionamento do filtro pigmentado e do refletor interior”, explica.

Atualmente, o pesquisador investiga os aspectos genéticos e evolutivos desses sistemas emissores de luz, com ênfase na comparação entre espécies com estratégias distintas de camuflagem luminosa. O objetivo é rastrear a origem de estruturas como filtros pigmentares e refletores, identificando se surgiram independentemente em diferentes linhagens ou se derivam de um ancestral comum. A expectativa é de que esses estudos contribuam para reconstituir a história evolutiva da bioluminescência em ambientes marinhos profundos e revelem padrões adaptativos ainda pouco compreendidos na fauna de águas profundas.

A reportagem acima foi publicada com o título “Iluminação submarina” na edição impressa nº 354, de agosto de 2025.

Projetos
1.
Bioluminescência de fungos, centopeia e organismos marinhos: Aspectos químicos e biológicos (nº 19/12605-0); Modalidade Bolsa de Pós-doutorado; Pesquisador responsável Cassius Vinicius Stevani (USP); Bolsista Douglas Moraes Mendel Soares; Investimento R$ 618.352,67.
2. Evolução e função biológica de filtros fluorescentes em fotóforos de peixes-dragões (Teleostei: Stomiiformes) (nº 22/01463-3); Modalidade Bolsa de Pós-doutorado; Pesquisador responsável Marcelo Roberto Souto de Melo (USP); Bolsista José Rui Lima Paitio; Investimento R$ 445.348,39.
3. Novas luciferases e fotoproteínas em anelídeos marinhos (Annelida) e sistemas bioluminescentes dependentes de celenterazina (nº 20/07600-7); Modalidade Auxílio à Pesquisa – Regular; Pesquisador responsável Anderson Garbuglio de Oliveira (USP); Investimento R$ 99.676,64.

Artigos científicos
SOARES, D. M. M. et al. Velamins: Green-light-emitting calcium-regulated photoproteins isolated from the ctenophore Velamen parallelum. The FEBS Journal. On-line. 18 abr. 2025.
PAITIO, J. et al. The filter in photophores of the deep-sea fish Neoscopelus (Neoscopelidae: Myctophiformes) and its role in counterillumination spectra. Journal of Fish Biology. 8 abr. 2025.
PAITIO, J. et al. The structure of scale lens and inner reflector in the photophore of the deep-sea fish Neoscopelus microchir (Myctophiformes: Neoscopelidae): Insights into the light projection mechanisms for counterillumination. Zoomorphology. v. 144, 43. 12 jun. 2025.

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