As manchas amorfas que o astrofísico Oli Dors, da Universidade de Vale do Paraíba (Univap), em São José dos Campos, interior paulista, vem se dedicando a analisar desde o ano passado são, na verdade, as melhores imagens que os telescópios mais poderosos da atualidade conseguem obter de algumas das primeiras galáxias do Universo. A luz dessas formações demorou 13 bilhões de anos para chegar à Terra. As imagens borradas são vultos de como eram as galáxias 700 milhões de anos depois da explosão que teria originado o Universo, o Big Bang. “São imagens de baixa qualidade porque, apesar de serem muito luminosas, essas galáxias estão longe demais”, lamenta Dors.
Ainda assim, foi por meio da análise desse tipo de material, obtido por vários telescópios espaciais e situados na Terra, que ele, o astrofísico Bhaskar Agarwal, da Universidade de Heidelberg, na Alemanha, e mais seis colegas identificaram três galáxias distantes com uma particularidade: elas parecem abrigar buracos negros primordiais, com massa entre centenas de milhares e 1 bilhão de vezes maior do que a do Sol, algo não previsto pela teoria clássica sobre esses objetos celestes. Entre as galáxias está uma das mais distantes e brilhantes já descoberta, a Cosmos Redshift 7 (CR7), que fica na constelação de Sextante e se formou há 12,9 bilhões de anos. Seu nome é uma homenagem ao astro do futebol conhecido pela mesma sigla, o jogador português Cristiano Ronaldo.
Em vez de se formarem em razão da implosão final de estrelas, como diz a teoria clássica sobre esses corpos, os buracos negros primordiais teriam surgido diretamente do colapso (sobre seu próprio peso) de um acúmulo de imensas nuvens de gás do nascente Universo. Nesse cenário alternativo, não teria sido preciso o surgimento das primeiras estrelas para que se formassem os primeiros buracos negros. “Os demais buracos negros descenderiam, de alguma forma, desses primordiais”, comenta Dors. O trabalho da equipe sobre as galáxias gerou um artigo científico, publicado em 26 de junho de 2018 no periódico Monthly Notices of the Royal Astronomical Society.
A parceria de Dors e Agarwal começou em julho do ano passado, quando o brasileiro passou uma temporada em Heidelberg. Agarwal vem há alguns anos comparando as previsões da teoria dos buracos negros de colapso direto – como são chamados – com dados de observações de galáxias distantes de um tipo muito especial. São galáxias que emitem quantidades enormes de uma radiação ultravioleta, em uma frequência de onda específica, muito bem conhecida pelos astrônomos. A fonte emissora dessa radiação é o gás hidrogênio ionizado do meio interestelar, aquecido em duas situações extremas: na vizinhança de muitas estrelas jovens ou próximo da matéria incandescente prestes a ser engolida por um buraco negro supermassivo.
O astrônomo da Univap já havia desenvolvido com sucesso um método para analisar o espectro de emissão de galáxias próximas à Via Láctea e distinguir se a fonte predominante da radiação ultravioleta era o aquecimento do hidrogênio por estrelas massivas ou por um buraco negro supermassivo. A dupla então adaptou essa técnica para ser usada na análise de galáxias distantes, que poderiam apresentar sinais da presença de um buraco negro de colapso direto. Das dezenas de galáxias distantes já observadas por grandes telescópios, apenas cinco tinham sido observadas com detalhe e precisão suficiente para serem analisadas pelo método. Dessas cinco, três apresentaram indícios de que abrigam buracos negros supermassivos formados por colapso direto. “A formação de buracos negros supermassivos quando o Universo era jovem é um mistério”, opina João Steiner, astrofísico da Universidade de São Paulo (USP), que não participou do estudo.
Steiner se refere ao conflito entre os resultados encontrados por estudos recentes, como os obtidos por Dors e Agarwal, e a ideia mais aceita sobre como os buracos negros supermassivos se formaram. Até recentemente, a maioria dos astrofísicos concordava que todos os buracos negros do Universo nasciam do mesmo jeito: pelo colapso de estrelas de massa superior a 20 vezes a do Sol. Ao esgotar seu combustível no fim de suas vidas, essas estrelas implodem sobre o próprio peso, criando uma região no espaço com força gravitacional tão intensa que nada consegue escapar de sua superfície, nem a luz: um buraco negro. Surgindo com uma massa de valor próximo à da estrela que lhe deu origem, um buraco negro pode engordar engolindo gás do meio interestelar ou mesmo estrelas inteiras que encontre em seu caminho. Também pode aumentar sua massa ao colidir e se fundir com outros buracos negros.
Implosão de estrelas
De acordo com esse antigo paradigma, os primeiros buracos negros do Universo deveriam ter sido criados a partir da implosão final das estrelas primordiais, formadas do gás de átomos de hidrogênio e hélio que constituía todo o Universo cerca de 400 mil anos depois do Big Bang. Já se chegou a especular que essas primeiras estrelas poderiam ser gigantes com mil massas solares. Mas observações e cálculos recentes indicam que teriam, no máximo, 100 massas solares. Simulações também sugerem que, mesmo se pudesse se alimentar continuamente com gás, nenhum buraco negro formado a partir das primeiras estrelas conseguiria alcançar uma massa de centenas de milhares de sóis em menos de 1 bilhão de anos. “Buracos negros que se formaram por colapso de estrelas individuais não tiveram tempo de se tornar supermassivos”, explica Steiner.
Diante desse problema, os astrofísicos Volker Bromm, da Universidade do Texas em Austin, e Avi Loeb, da Universidade Harvard, ambas nos Estados Unidos, propuseram em 2003 uma teoria alternativa para explicar o surgimento dos buracos negros primordiais supermassivos. De acordo com ela, mais ou menos na mesma época em que as primeiras estrelas estariam se formando em algumas regiões do Universo, em outras haveria condições especiais para que imensas nuvens de gás primordial se acumulassem, se colapsassem sobre o próprio peso e formassem buracos negros gigantes diretamente. Os chamados buracos negros de colapso direto já nasceriam com massas entre 100 mil e um milhão de sóis, particularidade que poderia explicar as medições feitas agora em algumas galáxias do Universo logo após o Big Bang.
“O novo estudo sobre buracos negros primordiais ajuda a estabelecer conexões entre a teoria e as observações”, afirma Aaron Smith, astrofísico do Instituto de Tecnologia de Massachusetts, Estados Unidos. Em 2016, Smith, Volker e Loeb afirmaram ter encontrado evidências de buracos negros de colapso direto na galáxia CR7. “Tanto o nosso resultado como o deles deve ser considerado como evidência baseada em dados limitados”, pondera. O descobridor da CR7, o astrofísico português David Sobral, da Universidade de Lancaster, no Reino Unido, conhece bem a dificuldade de observar essas galáxias distantes. As primeiras imagens da CR7 obtidas pelo telescópio terrestre VLT, em 2015, sugeriam que a fonte da emissão de ultravioleta da galáxia eram três grandes aglomerados de estrelas primordiais. A hipótese foi descartada, porém, por observações subsequentes feitas em 2017 com o telescópio espacial Hubble e com o radiotelescópio Alma, no Chile. Agora, como a equipe de Dors e Agarwal, Sobral também sustenta que a CR7 pode conter um buraco negro supermassivo. “Mas não é possível saber ao certo, em parte porque as assinaturas espectrais observadas desse tipo de objeto são bastante fracas”, explica Sobral.
Projeto
Chemical abundance determinations is SFr and AGN (nº 16/50488-8); Modalidade Auxílio à Pesquisa – Regular; Acordo Conicet; Pesquisador responsável Oli Dors (Univap); Investimento R$ 19.930,00.
Artigo científico
DORS, O. L et al. Nature and chemical abundances of a sample of Lyman-α emitter objects at high redshift. Monthly Notices of the Royal Astronomical Society. v. 479, n. 2, p. 2294-307. 26 jun. 2018.