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ECOLOGIA

Orquídea albina depende totalmente de fungos

Com um DNA muito pequeno, espécie subterrânea da Mata Atlântica não tem folhas nem faz fotossíntese

A orquídea Pogoniopsis schenckii obtém seus nutrientes dos fungos que a invadem

Juliana Mayer / Unicamp

Ao germinarem, as plantas absorvem nutrientes do solo, liberados por fungos e bactérias. À medida que crescem, começam a fazer fotossíntese e produzem parte de seus nutrientes. Uma espécie de orquídea endêmica da Mata Atlântica estendeu esse processo e se tornou dependente dos fungos: mesmo as células do caule, das flores e dos frutos das plantas adultas extraem carbono e nitrogênio das hifas (ramificações) de fungos ao longo de toda a vida.

Estudada por botânicos da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), a orquídea albina Pogoniopsis schenckii revela estratégias de sobrevivência pouco conhecidas. Por ter folhas pequenas e sem clorofila, essa orquídea de 10 centímetros (cm) de altura é incapaz de fazer fotossíntese, mecanismo pelo qual a maioria dos vegetais usa a luz solar ao converter a água e o gás carbônico do ar em moléculas simples, aproveitadas como fonte de energia.

“Os fungos sobrevivem sem essa espécie de orquídea, mas ela não sobrevive sem eles”, comenta a botânica Juliana Mayer, da Unicamp. “Em regiões tropicais, úmidas e com serapilheira [camada de folhas sobre o solo] abundante, é comum os fungos decomporem folhas e madeira e passarem os nutrientes para essas plantas.”

Juliana e Marcelo Mayer / UnicampA orquídea albina Pogoniopsis schenckii entre folhas mortas de uma floresta úmidaJuliana e Marcelo Mayer / Unicamp

P. schenckii foi descrita em 1893 no Flora Brasiliensis, tratado coordenado pelo naturalista alemão Carl Friedrich Philipp von Martius (1794-1868), e desde 1940 é reconhecida como aclorofilada — incapaz de produzir clorofila, pigmento que absorve luz, participa da fotossíntese e confere a cor verde às folhas.

Em janeiro de 2014, para entender como essa planta poderia viver sem fazer fotossíntese, Mayer percorreu trilhas do Parque Estadual da Serra do Mar no município paulista de São Luiz do Paraitinga, acompanhada pelo colega da Unicamp Carlos Eduardo Nunes, especialista em polinização de orquídeas, que havia visto um exemplar na região. A orquídea albina que procuravam vive nove meses embaixo da terra e emerge apenas entre dezembro e fevereiro, quando floresce.

Com amostras coletadas perto de trilhas repletas de poças de água de chuvas recentes, Mayer, com sua equipe, começou um estudo profundo – provavelmente o primeiro nesse tipo de planta no Brasil – sobre sua reprodução, anatomia e genoma. As análises indicaram que as hifas infiltram-se por toda a planta e servem de alimento para as células embrionárias, como descrito em um artigo de julho de 2021 na BMC Plant Biology.

Outro estudo do grupo da Unicamp, de novembro de 2019 na Frontiers in Plant Science, mostrou que os componentes das hifas de fungos dos gêneros Trichoderma, Fusarium e Clonostachys favorecem a germinação das sementes. “Outros fungos podem ter um efeito protetor, por inibirem a ação de patógenos”, diz Mayer. Sua equipe isolou 68 espécies de sete gêneros de fungos em P. schenckii e outros 100 em outra espécie de orquídea albina, Wullschlaegelia aphylla, comum no sudeste e sul do país, também com frutos recheados de hifas.

Pesquisadores da Academia Chinesa de Ciências Médicas haviam levantado esse efeito sobre a germinação em 2016, ao relatar na Botanical Studies que as sementes de duas orquídeas totalmente dependentes de fungos, Gastrodia elata e G. nantoensis, amadureciam em três semanas, bem menos que os habituais meses das espécies capazes de fazer fotossíntese. Em abril deste ano, na revista BMC Microbiology, botânicos do Nepal e da Índia apresentaram uma possível explicação: os fungos isolados de Dendrobium longicornu, uma orquídea do sul da China, produzem um hormônio que promove o crescimento das plantas.

A novidade mais recente sobre a orquídea albina da Mata Atlântica é o tamanho do genoma do compartimento celular responsável pela produção de energia, a mitocôndria. Essa espécie tem 14 mil pares de bases, com apenas 12 genes com instruções para a produção de proteínas. É o menor genoma circular já encontrado entre as orquídeas, com um tamanho equivalente a 10% do de espécies capazes de fazer fotossíntese, como descrito em um estudo do grupo da Unicamp, publicado em outubro na American Journal of Botany.

Juliana Mayer e Ramom Nunes Ferreira / UnicampSemente e hifas dentro de fruto de P. schenckii (microscopia eletrônica, 100 micrômetros)Juliana Mayer e Ramom Nunes Ferreira / Unicamp

Relações duvidosas
“Como as hifas formam uma teia no solo e entram nas plantas, até mesmo em árvores, podemos pensar os organismos como um dos elos de uma rede de interações”, comenta o botânico da Unicamp Fábio Pinheiro, coautor desses trabalhos.

Como está claro o que a planta ganha, mas ainda não o que o fungo poderia obter, a interação entre a orquídea e os fungos, até evidências em contrário, é de parasitismo.

Entrevista: Juliana Mayer
00:00 / 11:39

Para a ecóloga Pamela Cristina Santana, da Universidade de São Paulo (USP), que não participou dos estudos sobre P. schenckii, as orquídeas poderiam adotar um parasitismo indireto de outras plantas se aproveitarem os nutrientes produzidos por ela e absorvidos por uma rede subterrânea de fungos. “As redes de fungos podem conectar plantas que fazem ou não fotossíntese e permitir a troca de nutrientes entre árvores e plântulas [embrião em crescimento] ou mesmo entre árvores”, diz ela.

Outra possibilidade é que seja uma relação com ganhos recíprocos. “O fato de os fungos sobreviverem dentro da planta indica que ela poderia oferecer algo para eles”, comenta a bióloga Maria Letícia Bonatelli, em estágio de pós-doutorado no Centro de Pesquisa Ambiental Helmholtz, em Leipzig, Alemanha, que participou desses trabalhos. O engenheiro-agrônomo Diego Ismael Rocha, da Universidade Federal de Viçosa (UFV), em Minas Gerais, que não participou do estudo, concorda: “Apenas o fato de conseguir abrigo já seria um ganho para o fungo”.

Laís Soêmis Sisti / UnicampFungo extraído de orquídea aclorofilada e cultivado em meio de culturaLaís Soêmis Sisti / Unicamp

Rocha estuda outro grupo de plantas albinas, sem folhas e totalmente dependentes de fungos, do gênero Thismia, formadas por ervas com até 8 cm de altura, com 13 espécies endêmicas em áreas úmidas da Mata Atlântica e Amazônia. Ele integrou uma equipe da Universidade Federal de Jataí (UFJ), em Goiás, que encontrou pela primeira vez no Brasil uma das espécies desse gênero, a lanterna-de-fada (T. panamensis), em uma reserva de Cerrado na cidade goiana de Jataí, conforme artigo publicado em março de 2021 na revista científica Plant Biology.

“Essa relação poderia ocorrer em outros grupos, completamente dependentes de fungos”, comenta Bonatelli. Entre as plantas em geral, cerca de 500 espécies – o equivalente a 23% das plantas com flores, chamadas angiospermas – conseguem viver sem fotossíntese. As orquídeas representam 45% desse grupo, já que 235 das 22 mil espécies sobrevivem sem luz.

Delicadas e pequenas, despontando com suas folhas amarelas, brancas ou azuis entre a camada de folhas mortas que cobre o solo das matas, as plantas que vivem sem precisar de luz correm o risco de ser pisoteadas por animais ou soterradas pelas folhas que caem das árvores. “As albinas são extremamente vulneráveis”, observa Rocha.

Pesquisadores da Unicamp procuraram P. schenckii em lugares indicados por coletas de outros botânicos que deixaram amostras dessa espécie em herbários no Rio de Janeiro, Espírito Santo e Santa Catarina. Não encontraram mais nenhuma. “Os ambientes em que viviam haviam se transformado muito”, diz Mayer.

Projetos
1.
O papel da seleção por habitats distintos na manutenção da integridade de espécies em zonas de hibridação natural (no 16/22785-8); Modalidade Programa Biota; Pesquisador responsável Fábio Pinheiro (Unicamp); Investimento R$ 214.818,01.
2. Estrutura vegetativa de Pogoniopsis schenckii (Orchidaceae: Vanilloideae) e interação desta orquídea aclorofilada com fungos micorrízicos (no 15/26479-6); Modalidade Auxílio à Pesquisa – Regular; Pesquisadora responsável Juliana Lischka Sampaio Mayer (Unicamp); Investimento R$ 123.967,70.

Artigos científicos
ALVES, M. F. et al. Reproductive development and genetic structure of the mycoheterotrophic orchid Pogoniopsis schenckii Cogn. BMC Plant Biology. v. 21, n. 1, 332, p. 1-12. 12 jul. 2021.
COELHO, C. P. et al. Ombrohydrochory in Thismia panamensis (Standley) Jonk: A mycoheterotrophic species in Brazilian Cerrado forests. Plant Biology. v. 23, n. 4, p. 630-5. 7 mar. 2021.
KLIMPERT, N. J. et al. Phylogenomics and plastome evolution of a Brazilian mycoheterotrophic orchid, Pogoniopsis schenckii (Orchidaceae). American Journal of Botany. On-line. 18 out. 2022.
LI, Y.-Y. et al. Embryology of two mycoheterotrophic orchid species, Gastrodia elata and Gastrodia nantoensis: Ovule and embryo development. Botanical Studies. v. 57, 18, p. 1-10. dez. 2016.
SHAH, S. et al. Colonization with non-mycorrhizal culturable endophytic fungi enhances orchid growth and indole acetic acid production. BMC Microbiology. v. 22, n. 1, 101, p. 1-13. 13 abr. 2022.
SISTI, L. S. et al. The role of non-mycorrhizal fungi in germination of the mycoheterotrophic orchid Pogoniopsis schenckii Cogn. Frontiers in Plant Science. v. 10, 1589, p. 1-13. 29 nov. 2019.

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