HÉLIO DE ALMEIDAO cálcio presente na circulação sangüínea tem um papel primordial num evento que se repete, com vigor variado, centenas de milhares de vezes ao dia. A capacidade de contração do músculo cardíaco é regulada pela quantidade de cálcio no interior de suas células, cujo fornecimento depende dos canais de cálcio situados na membrana celular. Um exemplo: conforme se eleva o número de batimentos cardíacos, os canais nas membranas abrem-se e deixam mais cálcio entrar. O estiramento do músculo também deflagra uma cadeia de eventos que aumenta a capacidade de contração. São liberadas substâncias que ampliam a entrada de sódio nas células – e uma proteína na membrana promove a troca do excesso de sódio por cálcio.
O cardiologista Paulo José Ferreira Tucci, professor do Departamento de Fisiologia da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp), começou a estudar há três décadas as origens da complexa cadeia de mecanismos que regula a passagem do cálcio. Um deles, mostrou Tucci nos anos 1980, tem a ver com o aumento da sensibilidade ao cálcio das proteínas contráteis do coração sempre que o músculo é estirado.
Recentemente, o grupo liderado por Tucci voltou a debruçar-se sobre os fenômenos bioquímicos que fazem o miocárdio contrair e pulsar. Utilizando um coração isolado de cachorro, abastecido pelo sangue arterial de outro cão, foi possível avaliar a interação entre dois desses eventos mediados pelo cálcio, o estiramento do músculo e o aumento da freqüência cardíaca. Concluiu-se que a freqüência cardíaca elevada intensifica a resposta do órgão ao estiramento. A preparação da experiência leva algumas horas e demanda cirurgias nos dois cães. Primeiro, retira-se o coração de um dos cachorros. Dentro deste coração isolado é instalado um balão que avalia sua capacidade contrátil e a pressão gerada no seu interior durante a contração cardíaca. Do outro lado, há o segundo cachorro, cuja função é fornecer o sangue arterial para o coração isolado e recebê-lo de volta. “Um dos méritos do trabalho foi avaliar numa condição fisiológica – o coração integrado a um organismo intacto – a interação entre fatores que antes haviam sido estudados isoladamente e em condições experimentais muito artificiais”, diz Tucci.
Em outro estudo, o grupo da Unifesp analisou o funcionamento desses mecanismos quando o fluxo sangüíneo do coração diminui – num quadro de isquemia equivalente ao da angina do peito, a dor aguda causada pelo estreitamento da artéria. Quando o fluxo é restabelecido, a função do coração demora algumas horas a voltar ao normal. Nessa fase crítica há o risco de intercorrências sérias, como o acúmulo de líquidos no pulmão. O estudo concluiu que, no período de atordoamento, a resposta do coração ao estiramento e ao aumento de freqüência não é afetada.
Velocista
A importância desses estudos não se mede só pelos achados individuais. O estiramento do músculo e o aumento dos batimentos são mecanismos que permitem ao coração ajustar-se rapidamente às demandas do organismo. Um velocista consegue quintuplicar o desempenho do coração numa corrida de 100 metros rasos. “Em vítimas de cardiopatias crônicas, o funcionamento de tais mecanismos é comprometido e os médicos não têm meios de interferir terapeuticamente neles”, diz Tucci. A pesquisa busca ampliar a compreensão de tais fatores nas doenças cardíacas.
Numa outra linha de investigação, Paulo Tucci corrobora uma tese que soa paradoxal – corações pequenos batem melhor. Estudos realizados com ratos infartados revelaram que o miocárdio dos roedores ganhou capacidade de bombeamento depois que o pedaço do ventrículo esquerdo necrosado pelo infarto foi removido e a câmara ficou com um tamanho menor. “Matematicamente, isso é fácil de provar: a força a ser gerada pelo miocárdio é diretamente proporcional à relação raio da cavidade dividido pela espessura da parede. Quanto maior a cavidade, mais difícil de gerar pressão”, diz Tucci. Na década de 1990, esse princípio foi aplicado em seres humanos. A retirada de até 30% do coração hipertrofiado, estratégia desenvolvida pelo cirurgião paranaense Randas Batista, devolveu qualidade de vida a centenas de pacientes com insuficiência cardíaca grave, que os impedia de andar ou de fazer qualquer esforço.
Médicos de todo mundo a testaram. A cavidade menor conferia ao miocárdio, mesmo debilitado, uma função mais adequada. Apesar do benefício imediato e do entusiasmo inicial, a técnica, conhecida como ventriculoplastia redutora, foi praticamente abandonada. Em médio e longo prazos, seus efeitos na mortalidade mostraram-se frustrantes.
Um benefício da redução da cavidade é observado em outra situação da prática médica: a retirada de grandes cicatrizes produzidas pelo infarto do miocárdio, quadro conhecido como aneurisma do ventrículo esquerdo. A remoção da cicatriz é unanimemente aceita como vantajosa para a evolução dos doentes. Por isso, na avaliação de Tucci, o problema pode não estar na técnica de Randas Batista, mas em sua aplicação em pacientes num estágio muito grave de insuficiência cardíaca. “Os resultados possivelmente seriam diferentes se a redução fosse aplicada em pacientes com coração dilatado mas ainda com suas funções preservadas”, afirma. O trabalho de operar os minúsculos corações dos ratos infartados coube à pesquisadora Rosemeire Kanashiro, que hoje faz pós-doutorado num hospital em Baltimore, Estados Unidos.
A resistência do coração é maior do que se imagina, como atesta uma pesquisa feita com ratos infartados submetidos à desnutrição. A conclusão foi a seguinte: embora tenham sido submetidos a um esquema de restrição de proteínas e calorias seis semanas antes do infarto e três semanas depois, não sofreram depressão da capacidade de contração miocárdica. No período de cicatrização há uma sobrecarga cardíaca causada pelo infarto. Além disso, a síntese de proteínas no coração aumenta bastante. Apesar disso, não houve comprometimento da função do músculo cardíaco. Esse estudo corroborou o conceito da existência de uma hierarquia de importância de alguns sistemas do organismo. O coração e o cérebro são poupados em situação de privação de alimentos.
O Projeto
Fisiologia e fisiopatologia em cardiologia (99/04533-4); Modalidade Projeto Temático Coordenador Paulo José Ferreira Tucci – Departamento de Fisiologia, Unifesp Investimento R$ 1.006.278,24