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Administração

Estudos sobre ameaças a empreendedoras investigam aspectos afetivos dos negócios

Decisões empresariais levam em conta as emoções, dizem pesquisadoras

Janaína Vieira

A Copa do Mundo de 2014 foi encarada como oportunidade única por empreendedores de todo o Brasil interessados em vender seus produtos nos estádios do torneio. Para a psicóloga Vânia Maria Jorge Nassif, do Núcleo de Estudos em Gestão do Esporte e Empreendedorismo da Universidade Nove de Julho (Uninove), em São Paulo, a oportunidade foi de outra ordem: investigar as motivações e os projetos desses donos de pequenos negócios durante o principal campeonato do calendário futebolístico.

Nas 24 entrevistas com os comerciantes, selecionadas após indicação de professores de universidades locais e publicadas no e-book Negócios empreendedores: Ameaças e su-perações no entorno das arenas esportivas (Pixel, 2016), uma resposta recorrente chamou a atenção de Nassif e seus colaboradores. “Todos, sem exceção, manifestavam uma sensação pronunciada de estarem sob ameaça”, relembra. O que mais temiam era perder seus negócios, por inúmeros motivos: desde as condições macroeconômicas do país até uma catástrofe natural. Um dos entrevistados relatou a perda da concessão de um espaço público por causa de corrupção.

“Saltou aos olhos o caráter afetivo-emotivo das preocupações”, conta Nassif. A pesquisadora percebeu que, entre as mulheres, não apenas a sensação de ameaça era mais aguda, como também havia perigos especificamente ligados ao gênero. Nassif passou a desenvolver uma tipologia das ameaças, com foco nas mulheres, buscando entender como as empreendedoras sentem que seu negócio está sob risco e quais comportamentos elas desenvolvem para superar as ameaças.

Entrevista: Vânia Nassif
00:00 / 16:70

O diferencial do conceito de ameaça, destaca a professora da Uninove, em relação a noções próximas, como “desafios”, “barreiras” ou “obstáculos”, é enfatizar aspectos afetivos do empreendedorismo, para além da racionalidade. “Afetividade e cognição são indissociáveis. Não consigo sentir sem pensar nem pensar sem sentir. Mas pesquisas científicas dedicam pouco espaço às questões emocionais, que também pouco são levadas em conta pelas empresas”, observa.

Na literatura internacional, o tema das emoções ganhou tração na última década, segundo o estudo “Emotion in the area of entrepreneurship: An analysis of research hotspots”, publicado na revista Frontiers in Psychology. Entre 1995 e 2010 foram identificados 2,27 artigos por ano tratando de emoções no empreendedorismo. O número saltou para 14,7 entre 2011 e 2016. Em 2017 e 2018, foram 44; em 2019, 66; e só em 2020, 103. Na avaliação de um dos autores, o economista Xingqun Lv, da Universidade Heilongjiang, em Harbin, China, o aumento reflete a constatação de que empreendedores de sucesso frequentemente atribuem seus resultados positivos ao envolvimento emocional com o negócio.

Embora seja um movimento crescente, não se pode dizer que a emoção no empreendedorismo seja um tema consolidado, segundo o administrador Tales Andreassi, vice-diretor da Escola de Administração de Empresas da Fundação Getulio Vargas de São Paulo (Eaesp-FGV). “Durante muito tempo, os estudos de empreendedorismo deixaram de lado essa questão para focar na técnica: planos de negócios, planejamento, relações de causa e efeito. Mais recentemente, percebeu-se que outros aspectos também devem ser levados em conta, e daí entra a questão do afeto e emoção”, explica.

Explicar a discrepância de renda entre homens e mulheres é uma das tarefas dos estudos de empreendedorismo feminino

Nassif distinguiu quatro classes de ameaça enfrentadas pelas empreendedoras. A mais geral, que afeta também os homens, é a das “ameaças do negócio”. Essas se dividem em “risco Brasil”, “ameaças do setor” e “ameaças de gestão” e nelas entram problemas que vão desde mudanças de legislação, crises financeiras e variações cambiais até a relação com a burocracia e a informalidade, passando pelo acesso ao financiamento, dificuldades com recursos humanos e inadimplência. As classes de ameaças ligadas ao gênero são as do patriarcado (assédio, machismo, preconceito), as afetivas (insegurança em relação à competência, ambientes sociais hostis) e o conflito de papéis, que inclui questões sobre matrimônio (filhos, maridos) e a sobrecarga de trabalho (a dupla jornada de quem cuida da casa e do negócio, preconceito ligado à idade).

Uma vez estabelecida a tipologia, a tarefa passou a ser criar uma escala para quantificá-la, relata Nassif. Com ajuda da Rede de Mulheres Empreendedoras e da Rede Mulheres do Brasil, um questionário foi enviado a 1.200 empreendedoras de todo o país. As mulheres foram convidadas a avaliar o preconceito que sofrem, a relação com a família, o ambiente de negócios e as condições de trabalho. Uma seleção dos relatos foi publicada no e-book Mulheres transformadoras: Empreendedoras e seus negócios (ECO, 2018). “As respostas diferem muito entre regiões. O que as mulheres contam em São Paulo não é o mesmo que no Sul ou no Centro-Oeste, por exemplo. Mas uma resposta unânime diz respeito ao patriarcado: todas passam por situações de assédio”, diz Nassif.

Embora hoje tantas mulheres inaugurem novos negócios quanto homens, segundo o estudo Empreendedorismo feminino no Brasil em 2022, do Sebrae, elas ainda são minoria: 10.344.858 de mulheres, para 19.690.601 de homens. Os rendimentos médios também apresentam grande desigualdade: em setembro do ano passado, eram R$ 2.737 para homens e R$ 2.360 para mulheres. Explicar a discrepância é uma das tarefas dos estudos de empreendedorismo feminino, campo de pesquisa em expansão no Brasil. Em 2016, a pesquisadora Jane Mendes Ferreira, do Setor de Ciências Sociais Aplicadas da Universidade Federal do Paraná (UFPR), fez um levantamento das publicações acadêmicas no país dedicadas ao tema entre 2000 e 2015 e encontrou 56 artigos de natureza diversa. Os autores observaram uma tendência de expansão das publicações: entre 2000 e 2005 foram 9 artigos (16,1% do total), mas entre 2011 e 2015 saíram 31, ou 55,3%.

Ferreira defende que uma atualização do estudo mostraria que a expansão continua a se acelerar. “Embora ainda não seja um grupo grande de pesquisadores, há cada vez mais interesse pelo estudo do empreendedorismo feminino. Os congressos sempre têm sessões dedicadas ao tema e artigos são constantemente publicados”, afirma Ferreira. “Esse grupo trabalha para fomentar e melhorar o empreendedorismo feminino, inclusive em parceria com instituições públicas e privadas”, completa.

Nessas duas décadas, os estudos documentaram as barreiras enfrentadas pelas empreendedoras. Na literatura, elas se dividem em três categorias: individuais (ligadas a temas psicológicos e familiares), organizacionais (o funcionamento do negócio) e ambientais (legislação, regulamentação). No plano individual, a necessidade de conciliar a vida familiar com a profissional, por exemplo, aparece de maneira mais aguda entre as mulheres do que entre os homens. Quando abordados pela perspectiva afetivo-emotiva, esses problemas são apresentados como ameaças. Mesmo algumas ameaças universais têm carga maior sobre as mulheres, pontua Nassif. É o caso do acesso ao financiamento: as entrevistadas se queixam de que o mero fato de serem mulheres reduz a probabilidade de receberem a aprovação de um crédito bancário. Nassif acrescenta que a barreira poderia ser contornada por meio de políticas públicas voltadas para as mulheres. “Estamos muito atrasados nesse campo. As políticas para empreendedoras são ínfimas”, lamenta.

A pesquisadora estudou a maneira como as empreendedoras respondem às ameaças, denominando as respostas de “comportamentos de superação”. As entrevistadas manifestaram repetidamente a preocupação em aprender a reagir a situações de pressão, a procura por saídas dialogadas para os conflitos, além da busca de apoio em redes de contato. Nassif encontrou uma correspondência entre os tipos de ameaça e os comportamentos de superação. Um exemplo é o recurso ao apoio de parentes e amigos do sexo masculino, quando é necessária a interlocução com homens, sejam fornecedores, clientes ou financiadores. “Ao vender um produto, elas chamam o irmão ou o marido para acompanhá-las nas negociações. A simples presença do homem muda a atitude do interlocutor. A empreendedora também se sente fortalecida em um ambiente hostil. Muitas se referem ao ‘vigor’ dos homens, o que levou minha equipe a falar em termos da ‘rede de vigor masculino’”, observa.

Janaína Vieira

O ângulo afetivo no empreendedorismo é um campo de pesquisa com muitos caminhos ainda por explorar. “O empreendedor faz escolhas o tempo todo, porque o mundo dos negócios é feito de decisões. Mas a tomada de decisão não é uma atitude plenamente racional, como gostamos de pensar. Está profundamente ligada à memória e às emoções: nossas memórias mais vivas são marcadas pelas emoções”, diz Ferreira. Segundo a pesquisadora, perder a capacidade de se emocionar é perder a capacidade de decidir. “Se uma pessoa sofre uma lesão na região do cérebro responsável pelas emoções, pode elaborar uma lista com as vantagens e desvantagens de qualquer escolha, e mesmo assim se mantém indecisa. Estudar as emoções é imprescindível para compreender as decisões de negócios.”

Andreassi acrescenta que ainda são poucos os cursos de empreendedorismo que exploram as questões emocionais, mas o tema aparece na teoria do effectuation, desenvolvida por Saras Sarasvathy, da Universidade da Virgínia, nos Estados Unidos. “Ela preconiza que, ao iniciar um negócio em áreas desconhecidas, não basta fazer planos e previsões. Mais importante é se conectar com pessoas e conseguir parceiros para a empreitada, estando sempre aberto para explorar as contingências que irão afetar o negócio. Nesse contexto, a carga afetiva se sobressai em relação à técnica racional”, observa.

Ferreira estuda o aspecto afetivo-emotivo da atuação das empreendedoras brasileiras pelo prisma da subjetividade, ou seja, a maneira como elas se enxergam e pensam sobre sua atividade empresarial, a partir da teoria da subjetividade do psicólogo cubano Fernando González Rey (1949-2019). Seu projeto atual investiga o potencial do empreendedorismo feminino na superação da violência doméstica, em parceria com Victor Rodrigo Amaral, mestrando na pós-graduação em Gestão de Organizações, Liderança e Decisão e capitão da Polícia Militar paranaense. O projeto consiste em montar um programa de educação a distância que permita às vítimas abrir um negócio e, com isso, superar a insegurança causada pelo dia a dia de agressões.

A ideia nasceu do espanto do estudante ao constatar que 7,5% de todas as chamadas recebidas pelo telefone de emergência da corporação diziam respeito à agressão de mulheres por seus maridos, índice quase três vezes superior à média brasileira, de acordo com o Fórum Brasileiro de Segurança Pública (FBSP). Amaral observou que, em 2020, na Região Metropolitana de Curitiba e no litoral do Paraná, as 18.630 chamadas (9,1%) colocam a violência doméstica como segunda maior ocorrência, atrás da perturbação do sossego. “Só 19% desses chamados se encerraram como ocorrências de violência doméstica. Depois que a polícia chega ao local, a situação é enquadrada em outra natureza, ou então o delito não é constatado”, informa Amaral.

“Quando perguntadas por que não abandonam os cônjuges, as vítimas respondem que não poderiam se sustentar sozinhas. Perguntadas por que não trabalham por conta própria, manifestam a convicção de que não são capazes. Por trás dessa resposta, não está a falta de qualificação especificamente, mas a perda de confiança na própria capacidade, que se origina nos abusos”, diz Ferreira. “A violência física é só parte da violência doméstica. Essas mulheres sofrem uma agressão psicológica que afeta quem elas pensam que são, o que acham que podem fazer. Assim se constitui a subjetividade delas. Esse medo e essa certeza as impedem de se libertarem.”

Além de fonte de renda, a expectativa com a criação do programa de educação a distância é que a abertura do negócio próprio transforme a visão das mulheres agredidas sobre si próprias. “A subjetividade humana tem grande plasticidade. É possível romper o ciclo da humilhação e fazer com que elas se vejam como pessoas capazes, entendendo que podem se sustentar com o próprio trabalho”, diz a professora da UFPR.

A finalidade prática também é um componente da tipologia das ameaças, segundo Nassif. “Nosso propósito é levar a metodologia, com a escala de ameaças, aos programas de formação de empreendedores. Embora a escala tenha foco nas mulheres, desenvolvemos uma versão que capta as ameaças vivenciadas por homens”, diz. Em paralelo, a tipologia e a quantificação das ameaças também têm como objetivo influenciar políticas públicas focadas no feminino, que a pesquisadora considera insuficientes. “Se temos um Ministério das Mulheres, é imprescindível que existam políticas para fomentar o empreendedorismo delas”, argumenta Nassif.

Projeto
A influência das ameaças de gênero e do comportamento de superação na satisfação do trabalho e na família de empreendedoras (no 19/10009-1); Modalidade Auxílio à Pesquisa – Regular; Pesquisadora responsável Vânia Maria Jorge Nassif (Uninove); Investimento R$ 67.823,34.

Artigos científicos
ALY, M. et alEmotional skills for entrepreneurial success: The promise of entrepreneurship education and policy. The Journal of Technology Transfer. n. 46. 2021.
BANDEIRA, L. L. et alAs dificuldades de percurso das mulheres empreendedorasRevista de Gestão e Secretariado. v. 12, n. 3. 2021.
BUARIDE, A. et alBarreiras ao empreendedorismo por mulheresRevista de Empreendedorismo e Gestão de Micro e Pequenas Empresas. v.7, n. 1. 2022.
CAMARGO, R. A. M. M. et alMulheres empreendedoras no Brasil: Quais os seus medos? Revista Brasileira de Gestão de Negócios, v. 2, n. 20 2020.
LU, X. et alEmotion in the area of entrepreneurship: An analysis of research hotspotsFrontiers in Psychology. v. 13. 2022.
NASSIF, V. et alInfluência das ameaças de gênero e comportamento de superação na satisfação de empreendedorasFuture Studies Research Journal: Trends and Strategies. v. 12, n. 3. 2020.

Livros
NASSIF, V. M. J. Mulheres transformadoras: Empreendedoras e seus negócios. São Paulo: ECO Editorial, 2018.
MAFRA, E. et al. (org.). Comportamento empreendedor. Florianópolis: Pandion, 2021.

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