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Astrofísica

Os novos raios do Sol

Equipe de brasileiros e argentinos detecta a mais intensa radiação das explosões solares

EDUARDO CESAR Pouco depois das 4 da tarde de 4 de novembro do ano passado, um dos telescópios do Complexo Astronômico El Leoncito (Casleo), instalado a 3 mil metros de altitude nos Andes argentinos, captou os sinais emitidos pela mais intensa explosão solar já registrada. Em uma das salas do observatório, protegidos do frio de 10º Celsius do verão andino, o físico brasileiro Pierre Kaufmann e os engenheiros argentinos Adolfo Marun e Pablo Pereyra mantinham os olhos grudados na tela do computador do Telescópio Solar para Ondas Submilimétricas (SST). Naquele momento, observavam com o telescópio de US$ 2,5 milhões, construído com financiamento do Brasil e da Argentina, um novo tipo de radiação solar. Tão logo viu o gráfico que se formava no monitor, Kaufmann imaginou ter encontrado por fim os raios T, a forma de radiação que havia começado a procurar 20 anos antes, assim que notou seus primeiros sinais em 1984, no Rádio-Observatório de Itapetinga, em Atibaia, no interior paulista.

Emitidos nas explosões solares, esses raios destacam-se pela frequência de vibração de suas ondas. Os raios captados pela antena de 1,5 metro do SST ultrapassaram o limite de 100 Gigahertz (GHz), até então a frequência máxima de energia na faixa de rádio observada nas explosões solares. Durante a explosão solar do início de novembro, a equipe de Kaufmann, da Universidade Presbiteriana Mackenzie, de São Paulo, detectou essa radiação em duas frequências: 212 e 405z, GHz ou 0,2 e 0,4 Terahertz (THz), a unidade de medida geralmente adotada, que explica o nome dessa radiação e a situa no espectro eletromagnético entre as ondas de rádio e a luz visível. “A emissão dessa forma de radiação é o fenômeno de mais alta intensidade, comparada com a de outras faixas de energia liberadas nas explosões solares”, afirma Kaufmann, coordenador do estudo que relata a identificação dos raios T em explosão solar na Astrophysical Journal Letters de 10 de março.

A quantidade de energia produzida por essa radiação num determinado intervalo de tempo – ou seja, sua intensidade – é de três a cinco vezes maior que a das emissões em rádio, as formas de radiação com maior comprimento de onda, e de 1 mil a 10 mil vezes maior que a das emissões em raios X e gama, os de menor comprimento de onda. Isso significa que a radiação correspondente aos raios T seria a mais brilhante, caso o olho humano conseguisse captar todas as faixas do espectro eletromagnético com a mesma eficiência que detecta a luz visível. Apesar da sua intensidade, um motivo impedia os físicos de observar os raios T: a produção de equipamentos capazes de captar radiação em Terahertz exige o domínio de tecnologias de acesso restrito. Outra dificuldade era que a maioria dos modelos teóricos não previa a existência de radiação nessa faixa de freqüência do espectro . “Por esses motivos, quase ninguém havia procurado identificar a atividade solar na faixa dos Terahertz”, diz o físico paulista, que propôs em 1985 a existência de radiações solares com frequências superiores a 100 GHz em um artigo na Nature.

Kaufmann notou que seguia a pista certa ao ver, quatro anos atrás, indícios mais consistentes da radiação na faixa dos Terahertz, captados no início dos testes do próprio SST, o único telescópio projetado para observar o Sol nessa faixa de radiação, que emite ondas com comprimento inferior ao milímetro (submilimétricas). Mas faltavam os sinais contínuos, fartos e inequívocos, como os que chegaram em novembro passado, com o telescópio já em atividade regular. Uma hora antes de os sinais surgirem no monitor em El Leoncito, os engenheiros haviam reformulado o programa de computador que converte os sinais captados pela antena porque, até então, não funcionava conforme o esperado.

Melhor que os raios X
Duas propriedades características dos raios T – intensidade alta e frequência baixa – tornam essa radiação candidata a ser utilizada em equipamentos destinados ao diagnóstico de doenças. Como os raios T vibram muito mais lentamente que a radiação do outro extremo do espectro, os raios X e gama, eles possivelmente produzem menos danos ao material genético dos organismos vivos, assim como as ondas de rádio, emitidas pelos aparelhos de ressonância magnética nuclear. Já existem ao menos duas empresas criadas recentemente na Europa com o propósito de explorar as aplicações médicas dos raios T, que, além de mais seguros que os raios X por carregarem muito menos energia e não penetrarem o corpo tão rapidamente, também oferecem um contraste melhor entre as células sadias e as doentes. Os físicos acreditam ainda que a radiação identificada por Kaufmann possa ser útil para detectar drogas e armas ou ainda na pesquisa de fósseis, evitando os danos provocados pela escavação das rochas.

Aplicações práticas à parte, os raios T deverão servir como um novo indicador das possíveis origens das explosões solares, de causas ainda incertas, e poderão contribuir para a previsão do impacto dessas explosões sobre as telecomunicações terrestres. A essas explosões – comuns nos momentos de intensa atividade solar, quando ocorre a inversão de seus pólos magnéticos – está associado o desprendimento de massas próximas à superfície do Sol, gerando gigantescas labaredas – associadas aos abrilhantamentos ou flares -, que lançam ao espaço nuvens com dez vezes o tamanho do próprio Sol, formadas por partículas superaquecidas e eletricamente carregadas, que atingem nosso planeta à velocidade de até 2 mil quilômetros por segundo.

Quando há uma explosão no Sol, pode-se esperar problemas por aqui. As explosões ocorridas no final de outubro e no começo de novembro de 2003 – as mais intensas já observadas desde que os físicos começaram a registrar essas súbitas liberações de energia na década de 1940 – desligaram a rede de transmissão de eletricidade na Suécia, emudeceram os telefones celulares na Argentina, danificaram dois satélites japoneses e afetaram o funcionamento dos sistemas de comunicação e navegação de aviões e navios ao redor do mundo.

Com base na intensidade e em outro traço dos raios T, os pulsos rápidos, que duram de 100 a 300 milissegundos, Kaufmann acredita que a radiação na faixa dos Terahertz seja produzida por partículas atômicas eletricamente carregadas, aceleradas a velocidades próximas à da luz (300 mil quilômetros por segundo). Essas partículas atômicas são os elétrons ultra-relativísticos, assim chamados por apresentarem energia superior a 1 milhão de elétron-volts, unidade de medida de energia das partículas atômicas. Desse modo, os raios T, produzidos por elétrons com centenas de milhões de elétron-volts, representam a energia liberada pelo movimento dessas partículas ultravelozes em interação com os campos magnéticos do Sol. Curiosamente, essa forma de radiação surge também em experimentos feitos em aceleradores de partículas, equipamentos usados em testes de física atômica, capazes de impulsionar elétrons a velocidades próximas à da luz, fazendo essas partículas produzirem emissões eletromagnéticas na faixa dos Terahertz.

Ao mesmo tempo que podem explicar a origem dos raios T, os elétrons ultra-relativísticos continuam a intrigar os físicos, uma vez que não se sabe qual tipo de fenômeno poderia produzir essas partículas no Sol. De qualquer forma, a hipótese de se formarem partículas com velocidade tão alta, seja como causa ou conseqüência das explosões, sugere alguns ajustes na forma de ver essa estrela de 5 bilhões de anos. Acreditava-se que a energia das partículas resultantes das explosões solares não excederia 1 milhão de elétron-volts. Como resultado do movimento desses elétrons, chamados de levemente relativísticos, formam-se as emissões da rádio.

Agora, a descoberta da radiação que indica a existência de partículas com centenas de milhões de elétron-volts cria uma alternativa para explicar a origem dos raios X e gama. Considerados como as formas mais energéticas de radiação eletromagnética produzidas nas explosões solares, os raios X e gama não resultariam apenas da colisão de nuvens dos elétrons de alta energia com regiões mais densas do Sol. Segundo Kaufmann, essas duas radiações também poderiam resultar, como os raios T, do choque das nuvens dos elétrons ultra-relativísticos com a radiação que os próprios elétrons geraram, fenômeno conhecido como efeito Compton Inverso, utilizado para interpretar explosões em escalas bem maiores, como os núcleos ativos de galáxias. “A radiação na faixa dos Terahertz era o elo que faltava para reestudarmos a origem dos raios X e gama”, diz ele. Tanto no Sol como em outras estrelas – existem 100 bilhões delas apenas em nossa galáxia, a Via Láctea – ainda há muito a explorar. “Não me surpreenderia se aparecessem muito mais explosões solares com a observação contínua feita em uma faixa mais alta de raios T, entre 5 e 100 Terahertz”, comenta Kaufmann, cujo trabalho se limitou às frequências de 0,2 e 0,4 Terahertz. Mas, segundo o pesquisador, apenas satélites espaciais podem captar emissões solares em frequências superiores a 1 Terahertz. “E ainda não há nenhum equipado para essa tarefa.”

O Projeto
Aplicações do Telescópio Solar para Ondas Submilimétricas (SST) (nº 99/06126-7); Modalidade Projeto Temático; Coordenador
Pierre Kaufmann – Universidade Presbiteriana Mackenzie; Investimento R$ 137.496,00 e US$ 83.061,06 (FAPESP) R$ 30.000,00 (CNPq) R$ 65.000,00 (MackPesquisa)

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