Podcast: Marco Aurelio Nogueira
O ciclo de elaboração e implementação de políticas públicas em contextos complexos como os das democracias atuais, contudo, ultrapassa as definições mínimas. Envolve interesses de diversos setores da sociedade, às vezes conflitivos, que implicam escolhas, gastos, conhecimento especializado, e tudo isso pede discussão ampla e formulação de estratégias. A ausência de conceituação teórica adequada para orientar estudos e ações nesse campo foi o que motivou a criação do Dicionário de políticas públicas, organizado por Nogueira e pelo sociólogo Geraldo Di Giovanni, professor do Instituto de Economia e pesquisador do Núcleo de Estudos de Políticas Públicas (Nepp) da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp). O volume saiu recentemente, em segunda edição revista e ampliada, pela Editora Unesp, com apoio da Fundação do Desenvolvimento Administrativo (Fundap), órgão do governo de São Paulo que se destinava a formar quadros para a administração pública.
Foi um curso de gestão pública na Fundap, valendo pontos na seleção de funcionários para o governo paulista, que levou os dois pesquisadores a pensar no dicionário. “Percebemos que faltava um universo compartilhado de comunicação, acessível para qualquer pessoa, sobre um assunto que exige formação muito especializada”, conta Di Giovanni. “Nossa primeira ideia foi um glossário, mas concluímos que um dicionário poderia ser um instrumento mais duradouro como obra de referência.” Em parte sob inspiração do trabalho do filósofo político italiano Norberto Bobbio em seu Dicionário de política (Editora UnB, 2010), foram chamados especialistas de todo o Brasil, chegando a 197 verbetes escritos por 181 autores, entre eles os dois organizadores.
A seleção dos verbetes de início se orientou para temas diretamente ligados a políticas públicas e depois se ampliou para áreas e conceitos correlatos. Entre estes últimos, foram incluídos democracia – verbete a cargo de José Álvaro Moisés, diretor do Núcleo de Pesquisas de Políticas Públicas da Universidade de São Paulo (Nupps-USP) – e burocracia – do próprio Marco Aurélio Nogueira. “Tivemos a preocupação de garantir uma grande cobertura geográfica nas regiões de atuação dos colaboradores, do Rio Grande do Sul até o Maranhão, e de abrir a seleção para especialistas jovens”, conta Di Giovanni. Uma orientação na escolha dos colaboradores foi a inclusão de analistas de grupos paralelos ao mundo acadêmico, como o tradutor e ensaísta Luiz Sérgio Henriques, da revista eletrônica Gramsci e o Brasil. Procurou-se uma perspectiva de interesse para o país, com verbetes como clientelismo, fidelidade partidária e transferência de renda condicionada.
Constituição
Nogueira define o conceito de políticas públicas como “filho teórico” do Estado de bem-estar social, sistema que, no período do pós-guerra, prevaleceu, com feições diversas, nas democracias europeias como modelo de atendimento amplo às demandas da sociedade por boas condições de vida. Não haveria o conceito de política pública sem que, previamente, tivesse sido construído um consenso mínimo quanto aos direitos individuais e sociais que os cidadãos podem reivindicar. São esses direitos estabelecidos que fazem com que as políticas públicas se diferenciem do assistencialismo, segundo Aldaíza Sposati, professora do Programa de Estudos Pós-graduados em Serviço Social da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP) e autora do verbete assistencialismo. As ações desse tipo, de acordo com a pesquisadora, são aquelas praticadas com a expectativa de serem vistas como gestos de bondade a serem “retribuídos” pelos beneficiados na forma de voto.
Para Di Giovanni, o período de intensas reivindicações de direitos sociais ocorrido na Europa no pós-guerra teve seu correspondente no Brasil durante os anos de redemocratização, e sua manifestação mais clara seria a Constituição de 1988. Exemplo disso seria a figura dos conselhos participativos municipais, praticamente inexistentes na época da criação da Carta, mas que, segundo dados do Instituto Brasileiro de Geografia Estatística (IBGE), chegavam, em 2010, a 38.875 no Brasil todo. “As políticas públicas ficaram em evidência na redemocratização porque tínhamos que reconstruir um país, e o assunto entrou na agenda dos meios de comunicação”, explica Di Giovanni. “Era necessária uma intervenção planejada, como havia acontecido no mundo.”
No Brasil, ganhou força no período da redemocratização o conceito de cidadania, um desenvolvimento, segundo o cientista político José Álvaro Moisés, das declarações de direitos do homem elaboradas pelas revoluções americana e francesa, no século XVIII. “A cidadania pressupõe direitos civis, políticos e sociais e depende de liberdade e igualdade política para se efetivar”, diz Moisés. “Mas eleições e direito a voto não são suficientes para garantir a ligação entre interesses dos cidadãos e as políticas públicas adotadas pelo Estado.” O pesquisador propõe o conceito de qualidade da democracia, pelo qual a conexão entre direitos e políticas públicas se sustenta na efetiva representatividade do Parlamento, na independência e acessibilidade da Justiça e pela necessidade de que os partidos políticos, “além de disputar o poder, criem oportunidades reais para que militantes, simpatizantes ou simples votantes influenciem seus rumos”.
Para Moisés, foi a falta de qualidade da democracia que levou os manifestantes às ruas das cidades brasileiras em junho de 2013. De um lado, a presença maciça de bandeiras como educação e saúde mostraram, na análise de Di Giovanni, a incorporação dos direitos de cidadania no vocabulário político geral, incluindo “reivindicações antes relativamente marginais como a democratização do transporte público”. De outro, as instâncias de poder público, que proveem serviços em geral pouco eficientes, não demonstraram, segundo Moisés, entender as razões dos manifestantes e não souberam comunicar suas tentativas de atendê-los. Ao mesmo tempo, a multiplicidade de demandas levadas às ruas, que iam de serviços básicos a direitos civis de minorias, demonstrou um grau de complexidade para o campo das políticas públicas que provavelmente não havia sido previsto pelos governantes. “A organização da sociedade em grupos de reivindicações e pressões é característica das democracias modernas, mas nossos representantes têm demonstrado dificuldade em equacioná-la”, conclui Di Giovanni.
Livro
DI GIOVANNI, G.; NOGUEIRA, M. A. Dicionário de políticas públicas. 2. ed. São Paulo: Unesp/Fundap. 2015, 1.012 p.