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Memória

Os primeiros livros didáticos

A partir de 1821, editoras particulares assumiram a produção de obras para o ensino básico

Dirigidos a professores, os livros enfatizavam o ensino religioso e adotavam o método catequético, de perguntas e respostas

LEMAD /FFLCH /USP

Em 1818, 10 anos depois de ter sido criada para imprimir jornais, livros ou panfletos, a Imprensa Régia produziu a primeira obra para a escola básica: Leitura para os meninos, com “histórias morais, relativas aos defeitos ordinários às idades tenras, e um diálogo sobre a geografia, cronologia, história de Portugal e história natural”, do engenheiro militar e político José Saturnino da Costa Pereira (1771-1852). Nessa época já circulava no Brasil e em Portugal uma tradução de Tesouro dos meninos, “com ensinos de moral e boas maneiras”, impresso no final do século XVIII em Lisboa, escrito pelo padre francês Pierre Louis Blanchard (1758-1829) e traduzido pelo português Mateus José da Rocha (?-1828).

Órgão do governo real, a Imprensa Régia também funcionava como censor. Três autoridades examinavam o que seria publicado para assegurar “que nada se imprimisse contra a religião, o governo e os bons costumes”, observou o jornalista Juarez Bahia (1930-1998) no livro Jornal, história e técnica – História da imprensa brasileira (Ática, 1990). A orientação levou os primeiros livros didáticos nacionais a terem, inicialmente, conteúdo predominantemente religioso e os editores a conviverem com traduções e importações, principalmente de obras francesas.

A situação começou a mudar em 1821, quando o Estado deixou de ser o produtor oficial de livros para a educação básica e as editoras particulares assumiram esse papel, valorizando autores nacionais. O jornalista francês Pierre Plancher (1779-1844) inaugurou essa fase ao publicar dois títulos, ambos em 1827, pela Typographia Plancher-Seignot, do Rio de Janeiro: o Compendio scientifico para a mocidade brasileira, destinado ao uso das escolas dos dous sexos, organizado pelo advogado José Paulo de Figueirôa Nabuco de Araújo (1796-1863), que logo depois se tornaria ministro do Supremo Tribunal de Justiça do Império; e o Escola brasileira, ou Instrução útil a todas as classes, extraída da Sagrada Escritura para uso da mocidade, em dois volumes, escrito pelo senador José da Silva Lisboa (1756-1835), o visconde de Cairu. Os dois livros inauguraram o gênero atualmente mais vendido no país.

Também em 1827 – em 15 de outubro, que depois seria reconhecido como Dia dos Professores –, o governo publicou a Lei das Escolas de Primeiras Letras, que estabeleceu a criação de unidades de ensino em todas as cidades, vilas e lugares mais populosos do Império. “Foi a primeira lei de instrução pública do Brasil e menciona escolas para ambos os sexos, algo inovador para a época, nas quais os estudantes aprendiam a ler, escrever e contar, ainda sem séries e disciplinas”, observa a historiadora Circe Bittencourt, da Faculdade de Educação da Universidade de São Paulo (FE-USP) e fundadora da Biblioteca do Livro Didático e Coleções Especiais e do Banco de Dados de Livros Escolares Brasileiros.

Acervo Histórico da Escola Caetano de Campos /CRE Mario Covas /EFAPE /SEDUC-SP Aula de matemática para turma feminina em 1908 em escola da cidade de São PauloAcervo Histórico da Escola Caetano de Campos /CRE Mario Covas /EFAPE /SEDUC-SP

“Os livros didáticos inicialmente priorizavam a formação dos professores, que os usavam para preparar as aulas”, diz Bittencourt. Segundo ela, era comum que intelectuais e políticos organizassem ou escrevessem os livros escolares. Era uma forma de garantir que o conteúdo saísse ao gosto do Império.

O Compendio trazia nove gravuras feitas por litografia, técnica de impressão a partir de uma matriz de pedra. As imagens ensinavam, por exemplo, a desenhar o corpo humano. Para facilitar a tarefa, um texto complementar observava que as mulheres, em comparação com os homens, “têm a cabeça mais pequena, o pescoço mais alongado, a parte anterior do peito mais elevada, os rins e as coxas mais largas e mais curtas”.

Com 318 páginas e adaptado de obras francesas, tratava das chamadas artes liberais, como gramática, poesia, escrita, pintura, escultura e desenho; das ciências naturais, como física, química e história natural; e as consideradas abstratas, como matemática, e áreas como direito, agricultura e comércio. “Em algumas partes o autor escreve em verbetes, de forma pedagógica, com temas que interessavam para a escola. Era ainda uma ideia inicial de livro didático”, diz Bittencourt. Permeado por um tom religioso, cada assunto é abordado por meio de perguntas e respostas, o chamado método catequético.

O Escola brasileira, por sua vez, apoia-se inteiramente na Bíblia, com conselhos como este: “O coração duro será oprimido de males no fim da vida; e o que ama o perigo perecerá nele. O coração que anda por dois caminhos, não será bem-sucedido; e o depravado de coração neles achará o seu tropeço”. O senador Lisboa argumentava que as classes populares deveriam ler bons livros, com ensinamentos de moral e fé. Isso levaria a se protegerem contra ideias como as que desencadearam a Revolução Francesa (1789-1799), caso lessem o que chamava de maus livros.

LEMAD /FFLCH /USP Entre os livros com diferentes abordagens, O livro do povo, de 1863, destacou-se e foi um best-seller nacionalLEMAD /FFLCH /USP

As editoras privadas cuidaram tanto da produção quanto da divulgação dos manuais escolares. “Os didáticos se tornaram o principal produto do mercado editorial brasileiro”, conta Bittencourt. Em algumas províncias, o governo adquiria e distribuía os livros, mas o mais comum era a compra pelas famílias dos estudantes.

A partir da segunda metade do século XIX, mais editoras chegaram ao Brasil e a produção editorial se intensificou. Em 1885, 318 títulos de obras escolares circulavam no país, geralmente impressas por editoras nacionais. Três delas, Laemmert, Nicolau Alves e Garnier, respondiam por 44,2% da produção dos livros, de acordo com o levantamento de Bittencourt para sua tese de doutorado, defendida em 1993.

Alguns livros se tornaram sucesso de venda. Impresso no Maranhão pela Typographia do Frias, a primeira edição de O livro do povo, de 1863, com cerca de 4 mil exemplares vendidos, rivalizava com romances da época. Em 1865, chegou à quarta edição. Já na capa os interessados descobriam que a obra era “adotada nas escolas primárias das províncias do Amazonas, Pará, Maranhão, Piauí, Ceará, Paraíba e Pernambuco”. Seu autor era o bacharel em direito e poeta Antonio Marques Rodrigues (1826-1873), formado na Faculdade de Direito do Recife.

“O fato de o autor vir de uma faculdade prestigiada e a aprovação eclesiástica davam credibilidade ao livro”, observa a historiadora Rozélia Bezerra, da Universidade Federal Rural de Pernambuco (UFRPE), que analisou a obra em seu doutorado, concluído em 2010. Segundo ela, “a linguagem simples, sem rebuscamento, explica parte do sucesso do livro”.

Biblioteca Digital do Senado Federal Instruções do Compendio scientifico para a mocidade brasileira, de 1827, para desenhar o corpo humanoBiblioteca Digital do Senado Federal

A primeira parte tratava de religião; a segunda, de assuntos diversos como geografia, educação moral, fábulas e saúde. Animais ganhavam características humanas: o burro, por exemplo, “é tão humilde, tão sofredor e sossegado, quanto o cavalo é impetuoso, altivo e ardente”. As lições sobre higiene se apoiavam em ditados populares mesclados com ensinamentos morais, como “deitar cedo e cedo se erguer dá saúde e faz crescer” ou “ao rapaz que muito grita a garganta se lhe irrita”. “A escolha das frases com rima era um apelo à sonoridade, algo importante em uma época em que o conteúdo muitas vezes era lido em voz alta para os estudantes, já que não havia livros para todos”, observa a pesquisadora da UFRPE.

A inclusão de novas disciplinas no currículo escolar, como geografia e história do Brasil, reforçou a necessidade de mais conteúdo nacional, valorizando autores locais. Bittencourt destaca dois: o general José Inácio de Abreu e Lima (1794-1869), autor de Compêndio de história do Brasil, de 1843, e o romancista Joaquim Manuel de Macedo (1820-1882), que também era professor e escreveu Lições de história do Brasil, de 1861.

No final do século XIX, professores de escolas de prestígio como o Imperial Colégio Pedro II, criado em 1838 no Rio de Janeiro, começaram a publicar livros didáticos, que se tornaram referência para outras escolas do país. Um deles foi a Anthologia nacional, publicado em 1895 para ser usado nas aulas de português. Seus autores eram dois professores, o linguista e político Fausto Barreto (1852-1915) e o poeta e político Carlos de Laet (1847-1927). “O livro contém uma seleção de textos de autores brasileiros e portugueses, inova por adotar a ordem cronológica inversa, priorizando os modernos. Os autores argumentavam que era preciso primeiro saber como se fala na atualidade para depois saber como se falava no passado”, explica Marcia Razzini, graduada em letras, que analisou a Anthologia em sua tese de doutorado, concluída em 2000. O livro teve vida longa, com 43 edições, a última em 1969.

“Desde o século XIX até hoje, o livro didático foi um produto caro de produzir e difícil de distribuir”, destaca Bittencourt. “No ensino público, muitos alunos não tinham dinheiro para comprá-los.” A criação do Instituto Nacional do Livro, em 1937, foi um dos primeiros movimentos para transformar a produção e distribuição dessas obras em política pública, mas não obteve sucesso. Outra iniciativa, a Comissão Nacional do Livro Didático (CNLD), criada no ano seguinte, também não avançou.

Em 1966, o Ministério da Educação e Cultura (MEC), em colaboração com o Sindicato Nacional dos Editores de Livros e a Agência Norte-americana para o Desenvolvimento Internacional, assumiu o compromisso de distribuir gratuitamente cerca de 50 milhões de livros didáticos no país em um período de três anos. “Esse é um embrião do que seria o Programa Nacional do Livro Didático [PNLD]”, diz o historiador João Quaresma, consultor de políticas públicas do MEC. O programa só seria criado oficialmente em 1985.

Em 2020, de acordo com dados do portal do Fundo Nacional de Desenvolvimento da Educação, o hoje chamado de Programa Nacional do Livro e do Material Didático comprou 172.571.931 exemplares por cerca de R$ 1,4 bilhão. O material foi distribuído para mais de 32 milhões de estudantes em 123.342 escolas públicas de educação infantil, ensino fundamental e ensino médio.

Também em 2020, segundo o Sindicato Nacional dos Editores de Livros, dos 314.141.024 livros impressos no país, 52,94% eram didáticos. Os livros são produzidos por editoras privadas de acordo com critérios estabelecidos em editais do MEC. Depois de avaliadas por especialistas, as obras aprovadas formam um catálogo no qual os professores selecionam as que desejam usar.

Como parte de sua pesquisa de doutorado em história na Universidade de Brasília, no qual pesquisa sobre o PNLD, Quaresma entrevistou professores que deram aula de forma remota em 2020, por causa da pandemia. “Muitos disseram que o livro didático nunca foi tão importante como apoio para montar aulas e exercícios em um momento de exaustão como o que estamos vivendo”, conta.

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