À primeira luz do dia, as células das folhas de cana-de-açúcar, por meio da fotossíntese, começam a produzir açúcares que serão usados para manter a planta e fazê-la crescer. Uma parte do alimento permanece nas folhas e é guardada na forma de amido. Outra parte segue para os tecidos do colmo – o caule—, que começam a armazená-lo duas horas depois.
Por volta das 10 horas, quando o sol esquenta, as células da folha disparam a reposição de pigmentos usados na fotossíntese. No fim da tarde, fecham as aberturas chamadas estômatos, evitando a perda de água. Quando escurece, as folhas iniciam a desmontagem do amido – as moléculas de glicose que o compõem serão usadas à noite na regeneração das células (ver infográfico).
Um estudo publicado em abril na revista Scientific Reports caracterizou o mecanismo molecular ‒ ou relógio biológico ‒ dessa especialização temporal. “Descobrimos que as células das folhas e do colmo seguem ritmos próprios, que determinam o horário das tarefas a serem executadas”, diz o biólogo Carlos Hotta, do Instituto de Química da Universidade de São Paulo (IQ-USP), coordenador do trabalho.
O ritmo biológico consiste na regulação temporal da expressão de genes e de reações químicas, com início e duração definidos. Segundo Hotta, são reações complexas e encadeadas em ciclos de 24 horas, mais do que um mecanismo isolado que dita o ritmo do metabolismo, como faz parecer a metáfora “relógio biológico”.
Esse é um dos primeiros estudos a identificar diferenças entre ritmos biológicos periféricos – nos órgãos – em uma planta complexa. O ritmo central já havia sido caracterizado em outras plantas, como Arabidopsis thaliana, uma planta que não passa de 15 centímetros de altura e é um modelo amplamente usado para estudos de genética vegetal.
Praticamente todos os seres vivos, incluindo microrganismos como as bactérias, têm relógios biológicos, em geral com um ciclo de cerca de 24 horas. Alguns animais que vivem em ambientes sem ciclos regulares de dia e noite, como a rena do Ártico e os peixes de caverna da espécie Astyanax mexicanus, perderam o relógio biológico ao longo da evolução.
Mesmo assim, pesquisadores da USP identificaram ritmos biológicos em colêmbolos, insetos simples sem olhos nem pigmentação, com menos de 1 milímetro de comprimento, que habitam regiões profundas de cavernas: ciclos de sete dias regulam a reprodução, quando põem ovos, e a cada três dias e meio trocam a cutícula (revestimento).
Em dois artigos publicados em maio na Science, pesquisadores das universidades do Texas e Duke, ambas nos Estados Unidos, mostraram que o plasmódio, protozoário causador da malária, tem relógios internos que regulam sua reprodução nas hemácias e ajudam a entender a febre e os calafrios a cada 24, 48 ou 72 horas.
Especialização temporal
Hotta, com sua equipe, examinou a especialização temporal em três partes da cana – as folhas; o colmo superior, responsável pelo alongamento do caule; e um colmo mais abaixo, que armazena açúcar – por meio da produção da molécula de ácido ribonucleico mensageiro (RNAm).
Coletados de duas em duas horas em plantas cultivadas no campo, os RNAm são produzidos a partir dos genes e carregam as informações necessárias para a produção de proteínas em cada tecido. A identificação das moléculas e as análises dos resultados foram feitas durante as pesquisas de doutorado de Luíza Dantas, sob orientação de Hotta.
De acordo com esse trabalho, cerca de 8,5 mil genes, cerca de dois terços dos 12,5 mil genes medidos, regulam os diferentes ritmos de funcionamento desses tecidos. Ao longo do dia, observaram os pesquisadores, conjuntos de 3 mil a 7 mil genes se expressam em cada órgão com ritmos.
Na folha, quase 7 mil genes, expressando-se em diferentes subconjuntos ao longo do dia, estão relacionados à fotossíntese, à produção de pigmentos e à abertura e fechamento de estômatos, de forma rítmica e coordenada.
“A atividade do oscilador foi mais intensa ao alvorecer e anoitecer, momentos críticos para o metabolismo da planta nos quais ocorre a preparação para a fotossíntese e para o período noturno, quando não há produção de alimento”, diz Hotta. As redes de genes que geram os ritmos circadianos, chamadas de osciladores centrais, estão presentes nos três órgãos com dinâmicas similares, apesar das amplitudes diferentes, “como se, em diferentes relógios, os ponteiros se movessem com a mesma velocidade”, ele compara.
O relógio central das plantas, que marca o dia e a noite em ciclos de 24 horas, envolve apenas de 20 a 30 genes, constituindo um mecanismo mais simples que o dos animais. “Nas plantas, a coordenação do oscilador central não pode ser comparada à do maestro de uma orquestra, como o do cérebro dos mamíferos”, diz Hotta. “Lembra mais as palmas da plateia em um concerto, que começam em ritmos variados e terminam sincronizadas, conforme as pessoas seguem o ritmo das outras.”
Essas constatações poderiam ajudar a aumentar a produtividade da cana-de-açúcar, avalia o botânico Marcos Buckeridge, do Instituto de Biociências da USP, que não participou do trabalho. “Além da oscilação diária, há outros ritmos que regulam o desenvolvimento da cana”, diz o pesquisador.
De acordo com um estudo de seu grupo, publicado em março de 2018 na revista Funcional Plant Biology, a cana armazena amido durante o dia e no final da tarde o degrada, produzindo sacarose, que é distribuída à noite e usada no crescimento da planta nos primeiros 3 meses de vida. Depois, até os 6 meses, a sacarose passa a ser armazenada no colmo e é usada na floração.
“É possível que variações do relógio circadiano ao longo do ano estejam por trás desse relógio anual”, diz Buckeridge. “Adiantando o ritmo do desenvolvimento, será possível fazer duas colheitas por ano, evitando o período ocioso.”
Projetos
1. Relógios biológicos específicos em órgãos e tecidos de gramíneas C4 (nº 15/06260-0); Modalidade Auxílio à Pesquisa – Regular; Programa Bioen; Pesquisador responsável Carlos Takeshi Hotta (USP); Investimento R$ 185.329,40.
2. Caracterização do relógio biológico e seu impacto no metabolismo da cana-de-açúcar (nº 11/08897-4); Modalidade Bolsas no Brasil ‒Doutorado; Pesquisador responsável Carlos Takeshi Hotta (USP); Bolsista Luíza Lane de Barros Dantas; Investimento R$ 282.177,66.
3. Estudo sobre as interações entre o relógio biológico e a dessecação em eucariotos fotossintetizantes (nº 13/05301-9); Modalidade Bolsas no Brasil ‒ Doutorado; Pesquisador responsável Carlos Takeshi Hotta (USP); Bolsista Cícero Alves Lima Júnior; Investimento R$ 221.868,31.
4. Caracterização do relógio biológico em tecidos fotossintéticos de plantas C4 (nº 16/06740-4); Modalidade Bolsas no Brasil – Doutorado; Pesquisador responsável Carlos Takeshi Hotta (USP); Bolsista Natalia Oliveira de Lima; Investimento R$ 16.563,00.
Artigos científicos
DANTAS, L. L. de B. et al. Rhythms of transcription in field-grown sugarcane are highly organ specific. Scientific Reports. v. 10, n. 6565. 16 abr. 2020.
RIJO-FERREIRA, F. et al. The malaria parasite has an intrinsic clock. Science. v. 368, n. 6492, p. 746-53. 15 mai. 2020.
SMITH. L. et al. An intrinsic oscillator drives the blood stage cycle of the malaria parasite Plasmodium falciparum. Science. v. 368, n. 6492, p. 754-9. 15 mai. 2020.
SOUZA, A. P. de. Diurnal variation in gas exchange and nonstructural carbohydrates throughout sugarcane development. Functional Plant Biology. v. 45, p. 865-76. 27 mar. 2018.