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Genética

Os saltos da inteligência

Trechos móveis do DNA regulam a diferenciação de células nervosas

Surgiram algumas pistas biológicas para entender por que uma mesma pintura ou uma situação idêntica faz uma pessoa rir, leva outra às lágrimas e deixa uma terceira completamente indiferente. As diferenças de percepção, a habilidade de reagir com maior ou menor rapidez a uma fechada no trânsito ou mesmo a inteligência mais ou menos apurada enraízam-se na genética – especificamente, nas conseqüências dos movimentos de seqüências de DNA capazes de saltar de um ponto a outro do genoma, chamadas retrotransposons.

Dependendo de onde estacionarem, esses elementos móveis podem ativar ou silenciar genes responsáveis pela diferenciação de células neuronais, precursoras dos neurônios. Forma-se assim um mosaico de neurônios, que se traduz na maior ou na menor habilidade de emocionar-se por um quadro ou de resolver um problema de física. Realizado por uma equipe do Instituto Salk, Estados Unidos, esse estudo contou com dois biólogos brasileiros, Alysson Muotri e Maria Carolina Marchetto, e abre perspectivas para aprofundar a pesquisa de doenças como autismo e esquizofrenia, que poderiam resultar, à primeira vista, das posições em que se assentam os retrotransposons. “Nossa hipótese é que os pulos de retrotransposons em células nervosas adultas podem estar contribuindo para gerar diversidade de neurônios do cérebro, conferindo adaptabilidade e contribuindo para cada indivíduo ter um cérebro único”, comenta Maria Carolina.

Publicado na edição de 16 de maio da revista Nature, o trabalho tem outros méritos. Em primeiro lugar confirma o valor dos genes saltadores como elementos controladores do genoma. A geneticista norte-americana Barbara McClintock descobrira há 60 anos os genes saltadores e lançara essa ideia estudando as origens da variação de cores do milho, mas foi esquecida por quase 40 anos até ganhar o Prêmio Nobel de Medicina em 1983. Mesmo que outros estudos tenham mostrado essa habilidade de interferir nas características de um ser vivo, os retrotransposons permaneciam um tanto malvistos: suspeitava-se que poderiam ser genes egoístas e parasitas, assim chamados porque se movimentariam com o objetivo exclusivo da auto-replicação, sem nenhuma contribuição ao organismo – uma hipótese sustentada pelo fato de seus movimentos já terem sido testemunhados em células germinativas (óvulos e espermatozóides) e em tumores, mas nunca, até agora, em células somáticas, em especial no cérebro.

Além disso, esse estudo apresenta indicações de como funciona um dos tipos de retrotransposons, os Line-1 ou  L1, que ocupam cerca de 20% do genoma dos mamíferos. Outras ideias ganham novos ajustes. “Pensava-se que as regiões gênicas que contêm os genes ligados ao sistema nervoso estivessem protegidas contra esses elementos móveis do DNA”, comenta Marie-Anne van Sluys, especialista em elementos móveis que trabalha no Instituto de Biociências da Universidade de São Paulo (USP). Mas os L-1 criam cópias de si mesmos e se encaixam exatamente nas regiões do DNA mais ricas em genes responsáveis pela formação das células nervosas, favorecidos por um momento em que os genes estão sendo copiados e o DNA se encontra pouco enovelado.

Específicos
Mas por que os L1 procuram exatamente os genes cuja atividade determina o futuro das células nervosas? “Aparentemente”, comenta Carlos Menck, professor do Instituto de Ciências Biomédicas da USP que orientou o doutoramento de Muotri e de Maria Carolina, “os L1 parecem específicos ao modularem a expressão de genes de células diferenciadas”. Não seriam os primeiros: outros estudos já haviam mostrado que outros tipos de elementos móveis regulam a expressão de genes durante a formação do embrião. Segundo Menck, esses estudos poderiam constituir indícios de um processo não necessariamente aleatório, mas de algum mecanismo que ativa os retrotransposons em um momento específico.

O trabalho dos dois brasileiros no laboratório de Fred Gage no Instituto Salk mostrou que os L1 atuam mais livremente quanto menor a atividade de genes conhecidos como Sox2. Os Sox2 poderiam ser, assim, não apenas bloqueadores casuais desses retrotransposons, mas atores intermediários desse mecanismo de ativação ou bloqueio de genes dos neurônios, que resultariam em neurônios que fariam mais ou menos conexões entre si, levando, num plano mais amplo, animais ou seres humanos com comportamentos distintos – mais agressivos ou mais pacíficos ou, de modo geral, capazes de responder de modo diferente a um estímulo.

Tais conclusões resultam de testes feitos em camundongos transgênicos, que carregavam cópias de um L1 ativo humano, marcadas com uma proteína verde fluorescente. Assim, as células em cujo DNA elas se implantassem ficariam verdes. Feito o experimento, “só ficaram verdes as células do cérebro e as células germinativas”, conta Muotri. Nenhum dos animais tinha as mesmas células verdes – indicação de que a interação com o ambiente e uma boa dose de acaso ainda são decisivos para determinar o futuro dos neurônios. É um jogo de resultados incertos: “Mesmo animais geneticamente idênticos”, diz ele, “têm cérebros diferentes”.

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