A vida de Oscar Sala confunde-se com a história da FAPESP. Como revela a historiadora Amélia Hambúrguer no livro FAPESP – Fronteira da Prática Científica no Brasil: A Instituição e Memórias (no prelo), Sala participou de todas as instâncias de influência e deliberação desde os anos de implantação da Fundação. Foi conselheiro entre 1967 e 1969 e entre 1983 e 1995; diretor científico de 1969 a 1975 e presidente do Conselho Superior de 1985 a 1995. Foi protagonista de situações de crises e garantiu a continuidade da Diretoria Científica, em 1969, quando Alberto Carvalho da Silva foi afastado do cargo por causa da conjuntura político-militar. Aliando-se a Saad Hossne, Paulo Vanzolini e Alberto Carvalho da Silva – seus pares na sabedoria e visão de futuro – formou um grupo ativo e influente por mais de trinta anos.
Oscar Sala é, também, um físico de produção respeitada, o que sempre conferiu grande respeitabilidade às suas opiniões e avaliações. Nascido na Itália em 26 de março de 1922, foi criado na cidade de Bauru, onde estudou música como seu pai e se preparou para seguir a carreira de engenheiro. Mas encantou-se com a física de raios cósmicos e, desde o início dos anos 40, dedicou-se com afinco à pesquisa experimental. Junto com R.G.Herb, pesquisador da Universidade de Wisconsin, foi um dos autores do projeto do acelerador Van de Graaff, construído na Universidade de São Paulo (USP).Mais tarde, nos primeiros anos da década de setenta, dirigiu a montagem do acelerador Pelletron. Os programas de pesquisa dos quais participou foram determinantes para a formação de pesquisadores em física nuclear de São Paulo e de outros estados do Brasil.
Conhecer as opiniões desse renomado cientista é também conhecer um pouco dos parâmetros que nortearam a atuação da FAPESP em todos esses anos. As idéias desse homem que personifica uma instituição é o que apresentamos a seguir. São trechos de entrevistas concedidas a Shozo Motoyama, Amélia Hambúrguer e Marilda Nagamini, gentilmente cedidos para esta edição especial da revista Pesquisa FAPESP.
Como foi sua primeira gestão na FAPESP?
Em 1969, peguei a FAPESP num período razoavelmente difícil, quando houve problemas políticos no país. A primeira coisa importante a salientar é que, apesar de todas as pressões, a FAPESP sempre teve posição muito clara de não permitir qualquer ingerência política em sua ação. Na decisão das concessões de auxílio ou de bolsas, está o ponto alto, que é o julgamento pelos pares, isto é, o tercista. Felizmente, a FAPESP o pratica desde o primeiro dia – é a única instituição brasileira que adota – essa metodologia que, de certa forma, obriga seus assessores a entenderem como a Fundação funciona e analisarem de forma adequada. Após a análise, os especialistas da área enviam todas as informações ao diretor científico, a quem cabe, se julgá-las suficientes, tomar uma decisão ou obter mais informações.
Essa é a primeira etapa, extremamente importante, porque é o julgamento feito pelos pares. Na ocasião em que fui diretor científico, tínhamos mais ou menos 800 pessoas que consultávamos, assessores no país e fora do país. É assessor da Fundação qualquer pesquisador qualificado, de São Paulo, de fora do estado ou do exterior. O acompanhamento do desenvolvimento da bolsa ou do projeto de pesquisa é o segundo aspecto fundamental. O papel do assessor é no sentido de garantir que a pesquisa seja realizada dentro de padrões de qualidade, que o treinamento do estudante seja feito dentro de padrões elevados, que ele não seja usado como mão-de-obra por um orientador. Não é exercer uma vigilância policial, mas sim mostrar que a FAPESP se preocupa com a formação de novos pesquisadores e com a qualidade da pesquisa.
Na minha gestão, a Fundação não se limitou a ser uma espécie de um balcão de recepção de projetos que estuda e analisa. Tomamos a iniciativa em áreas que precisavam de maior desenvolvimento, maior atenção. Cito dois exemplos. Um é o projeto do radar meteorológico, de fundamental importância para a agricultura e para a economia. Resolvemos patrocinar um grupo que formasse gente usando técnicas avançadas. Outro programa que teve um sucesso enorme, inclusive internacional, foi o chamado BIOQ/FAPESP. Escolhemos a bioquímica, uma área bastante interdisciplinar, de importância, e decidimos desenvolver essa área de uma forma integrada na cidade de São Paulo, com a Universidade de São Paulo, Escola Paulista de Medicina, Instituto Butantan e outras instituições. Foi, então, formado um Comitê Nacional e um Comitê Internacional de pesquisadores de altíssimo nível, o internacional tinha até prêmio Nobel, que se reuniam com freqüência.
Mostrou-se que o problema não é só da competência do pesquisador, mas também que é preciso existir infra-estrutura compatível com a pesquisa científica, coisa que nós, infelizmente, não encontramos nas universidades e nos centros de pesquisa do país. Até recentemente, em viagens ao exterior, encontrei pessoas que se recordavam do exemplo magnífico, até em nível internacional, de como organizar todo um sistema de apoio à pesquisa científica.
Na minha opinião, esse é o verdadeiro sentido de uma política científica. Não acredito que, num país como o nosso, em desenvolvimento, as coisas mudem rapidamente, pois ainda não encontramos infra-estrutura. Enfim, estamos nos programando para um futuro. Assim, a política que executávamos era uma política científica de ano para ano, não acredito em política científica a longo prazo. Verificar, em cada área, quais são as necessidades, quais são os problemas, o que a FAPESP deve atender a fim de melhorar a qualidade, a produção. É problema de recursos humanos? É problema de equipamento? É problema de infra-estrutura? Essa análise freqüente, a curto prazo, é que nos permitiu, de ano para ano, tomar certas decisões de como seria a melhor forma de utilizarmos os recursos da FAPESP. É a minha visão de uma política científica, bastante modesta, mas pragmática.
Seu envolvimento com a FAPESP começou antes de assumir a Diretoria Científica?
Sim, estive na FAPESP desde o começo, como assessor. Acompanhava cada processo, o desenvolvimento de estudantes, reuni um verdadeiro arquivo. E minha interação tinha importância, embora da forma incógnita, como é feita na FAPESP, para maior liberdade dos assessores em seus pareceres. Fui também membro do Conselho Superior quando o presidente era o professor Ulhôa Cintra. O Conselho Superior, na ocasião, encomendou um estudo sobre os problemas da área tecnológica que foi feito por uma ou duas pessoas. Esses estudos foram aproveitados pelo dr. Alberto Pereira de Castro, do Instituto de Pesquisas Tecnológicas (IPT), que realizou alguns dos projetos. A idéia de que a FAPESP não atende à área tecnológica não é verdadeira. Quando fui diretor científico, apoiamos vários projetos tecnológicos, do IPT.Um exemplo é o estudo das vibrações e pressurização do avião Brasília, cuja parte estrutural foi feita pelo Gaspar Ricardo, professor de Estrutura da Escola de Engenharia Mauá. As reuniões do Conselho eram muito agradáveis, as discussões muito interessantes e vivas sobre o problema da tecnologia.
Houve muitas tentativas de pressão política na FAPESP nesse período?
Houve tentativas no começo. Por exemplo, a polícia queria saber endereço do pesquisador, etc., etc., e nós não dávamos. Houve mais uma tentativa dizendo que estávamos dando auxílios para comunistas. Foi na ocasião em que conversei com o Secretário da Segurança, na época, dr. Hely Meirelles, e disse que essa era uma parte que não cabia, a mim, analisar. Se era o caso de um bom pesquisador, não me interessava. Se era branco ou preto, católico, judeu, de esquerda ou direita. Não tinha condições para julgar isso.Daí para diante, começaram a sossegar.
Um aspecto, nem sempre focalizado, é o das avaliações da FAPESP serem muito rigorosas. Pelo menos, era sempre essa intenção. E tinham tanto rigor, que quando se dizia não e se explicava o por quê não, resultavam pouquíssimos problemas. Negamos até auxílios a Secretarias de Estado que acabavam aceitando a coisa. Isso por quê? Porque a FAPESP adquiriu um respeito, inclusive na comunidade. O ponto importante é a FAPESP ter sempre achado válido o diretor científico ser um pesquisador ativo, um pesquisador respeitado, porque é a pessoa que tem que dizer não. Tivemos índice de rejeição muito elevado.Mas o resultado é que, às vezes, se o pesquisador tinha um projeto que não era lá essas coisas, não mandava para a FAPESP, mandava para outra instituição. Ele próprio fazia uma filtragem. É um resultado natural de como a Fundação sempre agiu, que impôs, naturalmente, uma consciência.
Como esteve a situação financeira em sua gestão de diretor científico?
Tivemos, no começo, problemas muito sérios.Mantivemos a Fundação com seus fundos próprios no primeiro e segundo ano da nossa gestão porque o governo não pagava as parcelas que devia. Apesar disso, não atrasamos os pagamentos um dia sequer, fizemos questão disso. Nossa posição era que, na hora que esgotássemos o último níquel dos fundos, se o governo não pagasse, fecharíamos a Fundação.Mas o governo reconheceu, melhorou a situação.O governador Laudo Natel foi um governo excepcional para a Fundação, realmente de uma atenção incomum. Depois de algumas conversas ele compreendeu o que era a Fundação, pode pôr em ordem as finanças e não atrasava absolutamente nada. Naquela ocasião, a FAPESP estava ligada à Casa Civil do Governo.
O custeio administrativo, que é de até 5% do orçamento da Fundação, era tirado dos rendimentos e não do orçamento do Estado, que ia todo para a pesquisa. Essas dificuldades que tivemos mostram como é extremamente importante uma Fundação como a FAPESP ter seus fundos e gerenciá-los bem.
O senhor ficou muitos anos na FAPESP…
Fui presidente do Conselho durante o tempo máximo permitido, ou seja, doze anos. Foram seis anos e fui reeleito por mais seis. E fui também diretor científico. Conheço bem a FAPESP. Passamos momentos difíceis. Olha aqui, deve-se dizer que governo nenhum atrapalhou a FAPESP, o orçamento foi entregue. Era 0,5% e passou para 1%. O governo reconhece o papel e a FAPESP cumpre a sua tarefa. Digo isso baseado nos fatos. Em primeiro lugar, o governo não interfere nas decisões da FAPESP. Segundo, o governo paga os duodécimos corretamente, quer dizer, cumpre a tarefa dele e não mexe… Apesar de a FAPESP ser um órgão governamental, o governo sabe que de ciência é o cientista que entende, e ele respeita isso.
E quanto à política científica e tecnológica, há interação positiva com a Secretaria de Ciência e Tecnologia?
Há. A FAPESP não se submete. A FAPESP vai às reuniões da Secretaria e diz o que pensa e acabou, porque é um porta-voz da comunidade científica do estado de São Paulo. Se estamos de acordo com as propostas da Secretaria, estamos de acordo, se somos contrários, somos contrários, isso é dito com todos os efes e erres.
Como o senhor vê a importância da técnica e da tecnologia nos laboratórios experimentais para a formação de profissionais?
A ciência experimental tem uma importância muito grande porque ela coleta os dados que a natureza nos coloca. Nós não inventamos. Então, a ciência experimental tem uma importância, para mim, muito grande porque ela trabalha com os dados apresentados pela natureza. Hoje a tecnologia está cada vez mais se aproximando da ciência básica. Por quê? De um lado, a ciência básica está se utilizando cada vez mais do que é colocado pela tecnologia a serviço da ciência, que são os instrumentos cada vez mais aperfeiçoados, mais sofisticados e mais abrangentes. De outro lado, a tecnologia se utiliza cada vez mais do conhecimento científico, da interpretação que a ciência dá a fatos da natureza. Sempre me preocupei com a parte experimental, mas também não descuidei de que é importante ter um apoio teórico. Tanto é que eu sempre trouxe vários teóricos para o Departamento (de Física, da USP). Mas a linha mestra, a tônica, a linha principal do Departamento, era experimental, que é defeito de minha formação. Eu acredito que a gente tem que indagar a natureza e quem faz isso é o experimental.
Eu me sinto feliz porque alguns dos meus estudantes continuaram na pesquisa básica, importantíssima, mas outros foram, com sucesso, para as áreas tecnológicas, até mesmo montando suas próprias empresas. Mostrando, portanto, que o cientista não está numa cápsula de vidro, mas ele atua também. O que é importante na Universidade, no Instituto de Física? É dar uma formação sólida e deixar o indivíduo fazer o que ele quer, o que ele gosta, o que ele acha importante. A pesquisa não coloca uma campânula no indivíduo, mas ele se comunica com o meio, com a sociedade, com os laboratórios, com a indústria e com os seus colegas cientistas.
O que o senhor fala em termos de indivíduos vale também para a Universidade?
Claro. Ela tem que atuar assim. A Universidade é um laboratório imenso que pode dar uma ajuda fantástica. Alguns setores fazem, outros não, mas isso o tempo corrige, não adianta forçar. A aproximação do elemento externo com a Universidade depende da mentalidade dele. Assim como a aproximação do universitário com a indústria depende, um pouco, da mentalidade desse universitário. Então, tem que haver um casamento de interesses.
O senhor acha que isso está bem compreendido na Universidade?
Acho que está razoavelmente compreendido. Cito um exemplo muito importante: durante a guerra, quem deu uma contribuição para a defesa nacional? Físicos como Marcello Damy e Paulus Aulus Pompéia. Pararam o que estavam fazendo e foram desenvolver sonares, instrumentação para detecção de ruídos submarinos, quer dizer, deram uma contribuição da maior importância. Esse exemplo mostra que o bom pesquisador, na hora em que é chamado em outra área, tecnológica, sabe o que fazer. E eles deram uma contribuição fantástica para o país, para a defesa de todo o nosso país. Quer coisa mais importante que isso?
O que o senhor diz desses programas especiais da FAPESP, de inovação tecnológica e da relação Universidade-empresa?
Olha, eu vejo que a FAPESP está entendendo e está procurando uma aproximação maior e mais rápida entre o meio produtivo, a indústria e os laboratórios de pesquisa. Eles podem se abraçar, que um não vai atrapalhar o outro.
Mas as formas de produção são diferentes, não é?
São. E é bom que sejam, cada um tem o seu caminho, seu objetivo. É bom serem diferentes, mas há coisas comuns aos dois e que têm de ser buscadas. Nesse patamar comum, nós podemos contribuir, eles podem contribuir, mas é importante que seja localizado, posto em evidência.
E isso seria um papel da FAPESP, pôr em evidência, descobrir primeiro?
Não. Não é ela que tem que fazer isso, é o pesquisador. Quando falo isso, veja bem, não estou me referindo somente ao pesquisador da ciência básica, mas também o da ciência aplicada, da indústria, somos nós que temos que dizer. A FAPESP só dá os meios, as condições, não é ela que tem que dizer como fazer, e eu acho isso muito importante e sábio. Ela não coloca uma camisa de força, simplesmente, ajuda a empurrar, dá os meios.