Não apenas a largura dos rios da Amazônia – que podem chegar a 20 quilômetros (km) de margem a margem e formam uma barreira respeitável para muitos grupos de animais e plantas – mas também suas margens alagáveis favoreceram o isolamento de populações de animais e plantas e, desse modo, a formação de novas espécies. De acordo com estudos recentes de pesquisadores do Brasil, dos Estados Unidos, da Finlândia e do Reino Unido, a Amazônia emerge como a fonte – ou, em uma linguagem mais informal, a mãe – das espécies de animais e plantas hoje típicas dos outros ambientes naturais da América do Sul, desde as matas encorpadas do cerradão, na região central do Brasil, até as terras áridas do norte da Argentina.
Um artigo publicado na revista Science Advances em março deste ano apresentou as planícies alagáveis às margens dos rios – as várzeas – como um mecanismo gerador de biodiversidade na região amazônica. Formados com sedimentos que vieram dos Andes, do Planalto Central, na região central do Brasil, e do planalto das Guianas, ao norte, esses tapetes de areia fina coberta por lama ocupam uma área de cerca de 300 mil km2, com 10 mil km de extensão – boa parte conectada.
“O nível do oceano ficou mais de 100 metros abaixo do atual no ápice da última glaciação, entre 25 mil e 15 mil anos atrás, e as chuvas mais intensas durante milhares de anos aumentou a força de drenagem do rio Amazonas, que carregava os sedimentos para o mar em vez de depositá-los no vale do rio”, diz o geólogo André Oliveira Sawakuchi, do Instituto de Geociências da Universidade de São Paulo (USP), coautor do artigo na Science Advances em colaboração com pesquisadores do Instituto Nacional de Pesquisas da Amazônia (Inpa) e Museu Paraense Emílio Goeldi (MPEG). “Nessas condições as várzeas provavelmente desapareciam de alguns trechos, formando barreiras que isolavam as populações de várzeas rio acima e rio abaixo.”
O isolamento geográfico de populações de animais ou plantas pode gerar novas espécies por causa do acúmulo de mudanças genéticas aleatórias – as mutações. Com o tempo, elas podem ser eliminadas ou preservadas por meio da seleção natural, originando organismos diferentes o suficiente para se comportarem como espécies diferentes.
Os efeitos da chuva
Durante a estação seca, Sawakuchi explica, os sedimentos que formam as várzeas permanecem fora da água e são ocupados pela vegetação. Ao crescerem, as plantas podem formar uma floresta alagável, coberta pelo rio durante a estação chuvosa. “As florestas alagáveis podem se expandir ou encolher, porque os rios podem acumular sedimentos nos vales ou levá-los para o oceano”, diz o geólogo. “Se a vazão aumenta com a chuva, o rio transporta o sedimento para o oceano e as florestas alagáveis podem encolher ou até desaparecer de alguns trechos do rio. Elas também ficarão fragmentadas, impedindo o contato entre populações de animais e plantas que ficaram rio acima e as que ficaram rio abaixo do trecho onde a floresta alagável foi destruída.” Segundo ele, se permanecerem isoladas durante dezenas a centenas de milhares de anos, as populações isoladas poderão evoluir para novas espécies, que entrarão em contato quando a floresta alagável se expandir novamente, aumentado a diversidade biológica.
As florestas alagáveis também podem originar espécies nas florestas de terra firme, que não são inundadas durante a estação chuvosa. Nesse caso, de acordo com o pesquisador, rios com áreas alagáveis muito largas podem ser barreiras para populações de animais que vivem em margens opostas e favorecer a formação de novas espécies. Quando as florestas alagáveis diminuem, o rio deixa de ser uma barreira e as espécies de um lado do rio podem se misturar com as do outro lado, aumentando a diversidade do ambiente de terra firme.
“Tanto a expansão quanto a retração das florestas alagáveis podem gerar novas espécies, adaptadas a florestas alagáveis ou de terra firme”, comenta Sawakuchi. “No tempo milenar, o grande motor da expansão ou diminuição das florestas alagáveis é a chuva, que escoa e carrega sedimentos para os vales dos rios, principalmente a que cai em áreas montanhosas como os Andes, onde a produção de sedimento é maior.”
O desaparecimento e posterior reaparecimento das várzeas sustenta as descobertas do ornitólogo brasileiro Gregory Thom e Silva, pesquisador do Museu de História Natural de Nova York e principal autor do artigo. “As populações atuais de choca-selada [Thamnophilus cryptoleucus], um pássaro com 18 centímetros e plumagem negra, e outras aves apresentam um padrão genético distinto, como se ainda houvesse uma barreira geográfica separando as populações dos rios Solimões, Madeira, Tapajós, Negro e Amazonas.”
Nas últimas centenas de milhares de anos essa barreira teria se formado e se desfeito diversas vezes, fazendo com que surgissem populações diferenciadas geneticamente, que seguiram caminhos evolutivos próprios. “As populações do rio Solimões ficaram isoladas e se diferenciaram das outras em três momentos diferentes: há 108 mil, 190 mil e 226 mil anos”, comenta Silva. O isolamento geográfico originou a choca-selada, que habita as ilhas fluviais do rio Solimões, e sua espécie irmã no rio Negro, a choca-preta-e-cinza (T. nigrocinereus).
Realizado com apoio do apoio do programa Partnerships for Enhanced Engagement in Research (Peer), dos Estados Unidos, esse trabalho complementa o de outro coautor, o ornitólogo brasileiro Alexandre Aleixo, da Universidade de Helsinki, na Finlândia, em colaboração com colegas do MPEG. Uma das espécies que ele estudou, o cantador-estriado (Hypocnemis striata), com 12 centímetros e cabeça preta com estrias brancas ou beges, habita a terra firme das regiões sul e sudeste da Amazônia, nos estados do Amazonas, Mato Grosso e Pará. Essa espécie deve ter se originado de um ancestral por volta de 2 milhões de anos atrás cerca de 2 mil km dali, no lado norte da bacia amazônica, no planalto das Guianas ou na serra do Imeri, na fronteira do Brasil com a Venezuela.
“Os ancestrais de H. striata se originaram primeiro no oeste, na região delimitada pelos rios Madeira e Negro, atravessaram o rio Tapajós e ocuparam o sul e o sudeste da Amazônia, dando origem à espécie atual há cerca de 500 mil anos”, diz Aleixo, um dos autores de um artigo na Science Advances de julho de 2019 que detalha esses resultados.
Os ancestrais dessas aves aos poucos colonizaram ambientes diversos e contornaram as cabeceiras dos grandes afluentes da margem sul do rio Amazonas. Nesse processo, deixaram populações pelo caminho. De acordo com os pesquisadores, a marcha da diversificação acompanhou a expansão da floresta tropical úmida rumo ao sul e sudeste, que começou a vicejar com o clima quente e o aumento da umidade. Nessa floresta, os rios serpenteavam no terreno geologicamente instável e formavam uma barreira móvel que promovia o surgimento de novas espécies. Ao norte, assentados sobre terrenos geologicamente mais estáveis, os rios se moviam pouco, o que pode explicar por que nessa região as espécies de plantas e animais não se diversificaram tanto quanto no sul.
As plantas viveram histórias de separação semelhantes. Durante um estágio de pós-doutorado na USP, o engenheiro florestal Alison Nazareno identificou populações altamente diferenciadas do arbusto Amphirrhox longifolia e da árvore Buchenavia oxycarpa em margens opostas de grandes rios da Amazônia, como detalhado em um artigo de dezembro de 2019 na Scientific Reports.
A floresta-mãe
“Essas histórias evolutivas fizeram da Amazônia uma grande exportadora de espécies e um palco de grandes inovações, como plantas comestíveis e medicinais e grupos de animais totalmente novos”, diz o botânico brasileiro Alexandre Antonelli, diretor científico do Kew Gardens, em Londres. Sob sua coordenação, uma análise evolutiva de 4.450 espécies de plantas e animais, publicada na revista PNAS em junho de 2018, identificou 2.855 que saíram da Amazônia para outros biomas e 494 que foram para lá (ver infográfico).
Embora tenha havido trocas de espécies entre os ambientes, “a Amazônia foi a mais generosa doadora de espécies desde a extinção dos dinossauros”, avalia Antonelli. “Os biomas brasileiros seriam menos ricos em biodiversidade sem a floresta amazônica”, afirma ele.
Biólogos da USP e do Museu de História Natural do Instituto Smithsonian chegaram à mesma conclusão examinando outros seres alados, as vespas. Com base na análise comparativa de trechos de DNA de 109 das 249 espécies desse grupo, concluíram que a Amazônia foi a maior fonte de diversidade de vespas – um processo iniciado há 44,9 milhões de anos, como detalhado em um artigo publicado este mês na revista Proceedings of the Royal Society B.
Conexões entre a Mata Atlântica e a Amazônia
A história evolutiva dos cipós do gênero Amphilophium exemplifica o fluxo de espécies entre biomas. “Hoje, as espécies do gênero se dividem entre a Amazônia e a Mata Atlântica, mas a genealogia mostra que a população ancestral provavelmente ocupava ambos os biomas e deve ter sido separada por florestas secas do Brasil Central, formando uma barreira natural”, diz a botânica Lúcia Garcez Lohmann, do Instituto de Biociências da Universidade de São Paulo (IB-USP).
Na Mata Atlântica, esses cipós começaram a se diversificar 2 milhões de anos depois da separação, impelidos pela geografia montanhosa que recortava as populações originais e promovia a origem de novas espécies, levando à formação de 27 espécies de Amphilophium. Como detalhado em um trabalho coordenado pelo grupo da USP e publicado na Molecular Phylogenetics and Evolution em dezembro de 2018, algumas espécies saíram da Mata Atlântica e colonizaram o Cerrado, os Andes, a América Central, o Caribe e a própria Amazônia.
Na Amazônia, a proliferação de espécies foi mais recente. Na região, o gênero Amphilophium não se diversificou durante 20 milhões de anos, período no qual a rede de drenagens era diferente da atual: havia uma área mais alta – um divisor de águas – na região central da Amazônia brasileira e os rios corriam do leste para o oeste, no sentido contrário ao rio Solimões de hoje.
Com a água dos rios correndo para uma depressão no oeste da Amazônia, paralela aos Andes, formou-se uma imensa área alagada chamada Pebas. Segundo Sawakuchi, quando os sedimentos ocuparam a depressão e a erosão corroeu o divisor de águas na Amazônia central, a planície alagada se transformou em terra firme e formou a atual rede de rios que correm do oeste para o leste, conectando os Andes com o Atlântico.
Em consequência dessas mudanças na paisagem, o número de espécies amazônicas de Amphilophium saltou de uma para 20, a maioria das quais permanece na região. Uma única espécie vive nos Andes, originada de um ancestral comum cujas sementes foram levadas pelo vento e lá encontraram espécies aparentadas que vieram da Mata Atlântica. Ao longo do tempo, o clima da Amazônia variou, mas se manteve com umidade suficiente para sustentar florestas, mesmo em períodos glaciais. “A continuidade dos climas mais úmidos e a extensão da área favoreceram a biodiversidade, assim como as perturbações geológicas, que formaram refúgios ou barreiras que isolaram as populações, originando novas espécies”, explica Lohmann.
Na Mata Atlântica
Sete espécies de pássaros montanos adaptados ao frio, como a catraca (Hemitriccus obsoletus), com 11 centímetros e cor marrom oliva, viveram na Mata Atlântica um processo semelhante ao das espécies de cipós. A maior parte das catracas habita hoje as regiões elevadas, acima de 800 metros, da serra Geral, que vai do estado de Santa Catarina até o Uruguai, e a porção sul da serra do Mar, de São Paulo até o norte do Rio Grande do Norte. Elas não são encontradas nas regiões mais baixas na cidade de São Paulo e em seus arredores, mas há uma população reduzida na porção norte da serra do Mar e na serra da Mantiqueira, nos estados de São Paulo, Rio de Janeiro e Minas Gerais.
“As populações do norte e do sul de três das espécies de pássaros que estudamos têm identidades genéticas próprias, indicando que estão divergindo e talvez sejam ou se tornem novas espécies”, diz o biólogo Fabio Raposo do Amaral, do campus de Diadema da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp) e coordenador do estudo, publicado na revista Molecular Phylogenetics and Evolution em abril de 2020. “As outras são dois pares de espécies irmãs, já bem diferenciadas.” Durante as glaciações, as aves ocuparam as altitudes mais baixas, formando uma população contínua. “Esse histórico de encontros e separações pode gerar novas espécies”, afirma ele.