MIGUEL BOYAYAN, HÉLIO DE ALMEIDA E JOSÉ ROBERTO MEDDANada melhor do que a música para as orelhas. Em especial para, de vez em quando, dar uma puxada nelas. “Ô pacato cidadão, te chamei a atenção, não foi à toa, não. C’est fini la utopia, mas a guerra todo dia, dia a dia, não”, canta o grupo Skank. Essa é a trilha sonora ideal para se ler a recém-publicada pesquisa Cidadania, participação e instituições políticas: o que pensa o brasileiro?, realizada pelo Centro de Pesquisa e Documentação da Fundação Getúlio Vargas, que mostra como o brasileiro ainda se conforma com a tese de que o Brasil é, e sempre será, um eterno “mar de lama”, contra o qual pouco se pode fazer.
Para 79% dos entrevistados, a corrupção é a marca do serviço público; a única instituição democrática que funciona é a Igreja Católica; 72% dos pesquisados acham que os políticos só existem para se dar bem na vida. Esses resultados reforçam o “conformismo” expresso no último Latinobarómetro, pesquisa feita por uma ONG chilena, que mostra como anda a satisfação latino-americana com a democracia.
Cerca de 43% dos brasileiros entrevistados crêem que uma “mão dura” do governo não faria mal ao país; 48% não se importariam de o país ficar à mercê de empresas privadas se a vida deles melhorasse; e 26% pensam que ter um regime democrático ou não-democrático dá no mesmo. A cidadania, entendida como a participação do indivíduo na criação da sua sociedade, parece pouco desenvolvida entre nós. Uma pesquisa de 1993 (CESOP/Unicamp) já mostrava a indiferença nacional sobre a presença dos órgãos de representação como necessária para o funcionamento democrático: 30% dos brasileiros acreditavam então que o Brasil poderia passar bem sem o Congresso Nacional. A descrença de hoje, retomada na crise em curso, portanto, não é uma novidade. Daí a pergunta: que cidadãos somos nós, tão ágeis em identificar as deficiências institucionais e tão lentos em mudar esse estado de coisas? Somos, efetivamente, pacatos cidadãos ou será que nos fizeram acreditar nisso?
Esse é o questionamento da pesquisa mais recente do cientista político Wanderley Guilherme dos Santos, Horizonte do desejo: instabilidade, fracasso coletivo e inércia social (FGV Editora, 200 págs., R$ 26,00), que tenta entender por que, num país de tantas desigualdades e insatisfações, nunca houve um movimento popular capaz de promover uma reforma na vida nacional. “O Brasil encontra-se muito aquém do limiar da sensibilidade social e assim tem convivido, pacificamente, com a miséria cotidiana, material e cívica, sem gerar grandes ameaças. Aqui, o horizonte do desejo ainda é puro desejo, sem horizonte”, avisa o autor.
O paradoxo, apontado por Santos, é que, desde os anos 1930, o país experimentou um grande salto econômico e o que ele chama de uma “megaconversão” eleitoral (“partimos de um eleitorado reduzido em 1945-1950 para outro que, em 2002, correspondia a 68% da população”, nota), sem que a cidadania dos votos se fizesse acompanhar por uma cidadania de fruição dos direitos sociais. “Com o fim da ditadura militar e da construção da democracia, a partir de 1985, a palavra cidadania caiu na boca do povo.
Havia a crença de que a democratização das instituições traria rapidamente a felicidade nacional. Isso funcionou com o voto, mas não em tudo. As grandes desigualdades sociais e econômicas continuam e, em conseqüência, os mecanismos e agentes da democracia, como eleições, partidos, Congresso, políticos, se desgastam e perdem a confiança do público”, analisa José Murilo de Carvalho, professor da UFRJ e autor de Cidadania no Brasil, o longo caminho.
“Há, ao mesmo tempo, uma recusa histórica do país em configurar um espaço público de enunciação autônoma de direitos ao lado da novidade espantosa de os direitos humanos e sociais e sua regulação pública terem se transformado em obstáculos à cidadania, que, dramaticamente transformada, habita agora os espaços do mundo privado e da realização individual sob governos que se apresentam apenas como gestores de crise e da mudança”, avalia a socióloga da USP, Maria Célia Paoli, coordenadora do projeto temático Cidadania e democracia: o pensamento nas rupturas da política, financiado pela FAPESP, que pretende dar conta do “desmanche, o largo processo de desregulamentação e internacionalização do mundo, que se faz destruindo mediações”, influindo diretamente nos direitos de cidadania e gerando a “privatização do público, destituição da fala e anulação da política”, para usar palavras do sociólogo Francisco de Oliveira, da USP, parte da equipe do projeto.
Oliveira questiona, em especial, como todo esse processo pôde ocorrer com tão pouca resistência da sociedade, “um domínio de classe consentido, ativa e passivamente, em que finalmente os dominados partilham os mesmos valores dos dominantes”. Talvez a perene desilusão com a política nacional tenha razões que a razão comum desconhece. “Onde iremos com todo esse frenesi ético-moralizante que parece querer, com seu afã regenerador, bombardear todas as práticas da vida parlamentar democrática?”, pergunta o cientista político Marco Aurélio Nogueira, da Unesp.
“Se cabe presumir que dificilmente criaremos uma sociedade genuinamente democrática, cívica e infensa à corrupção com a preservação do legado de desigualdade e elitismo, será razoável esperar que possamos superar esse legado sem agir com determinação no sentido de criar ‘artificialmente’ os mecanismos legais que possam pretender eficácia em barrar a corrupção e implantar uma cultura nova e politicamente mais propícia?”, observa o professor da UFMG, Fábio Wanderley Reis. É um ciclo “viciado”: a falta de cidadania real impede uma ação efetiva para mudar o Estado; isso, aliado a um “dar as costas” à política e a uma descrença nos políticos, gera um mecanismo nocivo que, por sua vez, impede a criação de formas efetivas de controlar a corrupção e de resolver as desigualdades sociais.
“O difundido desapreço da população pelos direitos civis, com certeza, não é irrelevante do ponto de vista da corrupção e seus correlatos”, observa Reis. “A insegurança ‘hobbesiana’ (Hobbes preconizava a necessidade de um Estado que refreasse a busca por poder, ilimitada, que cada cidadão teria num ‘estado natural’) e o anseio por um poder autoritário e forte talvez ajudem a explicar as enormes proporções de apoio a hipotéticas lideranças pessoais que pudessem unificar e guiar a nação alheia aos partidos”. E, adverte o professor Marcello Baquero (UFRGS), quanto maior a deslegitimação institucional, maior o apelo de líderes carismáticos, que, por sua vez, contribuem para neutralizar e desacreditar essas mesmas instituições.
Direitos
A história tortuosa da cidadania brasileira é um componente fundamental no estado político e social do presente. “No Brasil experimentamos uma inversão. Aqui, primeiro vieram os direitos sociais, implantados em períodos de supressão de direitos políticos e de redução dos direitos civis por um ditador, Vargas, que se tornou popular”, explica Murilo de Carvalho. “Depois vieram os direitos políticos, de maneira algo bizarra, pois a maior expansão do voto deu-se em outro período ditatorial, o militar, em que os órgãos de representação política foram transformados em peça decorativa do regime”. Numa gangorra, sempre que o país incrementou os direitos políticos deixou de lado os sociais, e vice-versa.
Essa lógica perversa deixou seqüelas: a excessiva valorização do Executivo, pois, se os direitos sociais foram implementados em períodos ditatoriais, criou-se a imagem, para o grosso da população, da centralidade do Estado. As melhorias sociais sempre vieram embaladas em clientelismo. “Os benefícios sociais não eram tratados como direito de todos, mas como fruto da negociação de cada categoria com o governo. Assim, a sociedade passou a se organizar para garantir os direitos e os privilégios distribuídos pelo Estado”, nota Murilo de Carvalho. Ou, nas palavras de Baquero, estabeleceram-se no Brasil “relações sociais terciárias”, a saber, um laço direto entre Estado e indivíduo, o qual se sente devedor do Executivo, em detrimento dos partidos. A representação se fragiliza.
O modelo neoliberal, adotado em escala global, ao chegar ao país, afetou ainda mais esse quadro, invertendo-o sem, no entanto, resolver suas mazelas. “O pensamento liberal insistiu na importância do mercado e na redução do papel do Estado. Nessa visão, o cidadão se torna cada vez mais um consumidor, afastado de preocupações com a política e os problemas coletivos”, diz Murilo de Carvalho.
“Hoje as pessoas não querem ser cidadãos, mas consumidores. Ou melhor, a cidadania que reivindicam é a do direito ao consumo, a cidadania pregada pelos novos liberais. A cultura do consumo dificulta o desatamento do nó que torna tão lenta a marcha da cidadania entre nós, qual seja, a capacidade do sistema representativo de produzir resultados que impliquem a redução das desigualdades de todo o tipo”. Oliveira vai ainda mais longe. “Todo esforço de democratização, de criação de uma esfera pública no Brasil, decorreu da ação das classes dominadas”.
Daí, defende, os vários momentos em que o Estado “silenciou” essas vozes em nome da “harmonia social”, da anulação política, do consenso, na contramão do “desentendimento social”, construtivo à medida que permite que a sociedade participe ativamente da construção de seu universo sociopolítico-econômico. “É um deslocamento que tenta subaltenizar a presença política dos atores e de suas demandas e significa uma descapacitação da representação e da participação social nas esferas de decisão política”, analisa Célia Paoli.
Se antes era o Estado poderoso que dificultava a efetivação da cidadania, a partir da década de 1990 será a propagação do ideal de um Estado “falido” o responsável pela desmobilização dos cidadãos. “Se o Estado, por longo tempo, subsidiou a formação do capital, com a chegada da crise da dívida externa dos anos 1980, convertida depois em dívida interna pública, esgotou-se o papel de condottiere do Executivo na expansão capitalista”, avalia Oliveira. Criou-se a imagem do Estado esgotado.
“Essa crise interna do governo colocou os holofotes sobre a despesa pública e converteu as despesas sociais públicas no bode expiatório da falência do Estado, quando na verdade isso se deveu à dívida interna pública e ao serviço da dívida externa”. Estabeleceu-se, segue o sociólogo, a ilusão de que o Estado apenas sobreviveria como extensão do universo privado, que “sustentaria” o governo, quando, afirma, o caminho é o inverso. Segundo Oliveira, nasceu a falsa consciência da desnecessidade do setor público, que deveria funcionar com a mesma rationale da empresa privada. Logo, nada mais natural que o cidadão troque sua cidadania pelo consumo de mercadorias.
Essa permuta, porém, traz implicações: o indivíduo é obrigado a resolver sozinho seus problemas enquanto a massa demanda cada vez mais do Estado. O primeiro se verifica nas páginas policiais. “No híbrido constitucional que se associa o confinamento regulatório da cidadania a um hobbesianismo social, imperam a violência como modo rotineiro de resolução de conflitos intersubjetivos e o comportamento predatório, que, nesses tempos, vêm se generalizando na sociedade brasileira”, analisa Vera Telles, socióloga da USP.
Do lado da massa, observa Santos, a insatisfação decorre do aumento do volume de demandas de uma arena política superpovoada, pedidos que não são fáceis de serem atendidos pelo Estado no seu momento atual. “A insatisfação da população não é tanto com a democracia em si, mas com o subdesenvolvimento das instituições democráticas. Nos últimos 10, 15 anos, o país ingressou num processo de subdesenvolvimento institucional, à medida que a expansão e o amadurecimento da sociedade política, sua crescente heterogeneidade de grupos de interesse, não se vêem adequadamente expressos nas instituições”, acredita.
Apatia
Afinal, como lembra Nogueira, o Estado foi apropriado por interesses particulares, que foi obrigado a intermediar. “Ele foi fragmentado, aprisionado pelos vários privatismos e incapacitado de responder às multiplicadas demandas sociais, dar condições aos setores estratégicos (educação, saúde) e continuar coordenando o desenvolvimento”. Diante disso, o sistema, obsoleto, derrapou. A população, porém, queria mais.
“Ao passado ditatorial recente se atribuiu a maior parcela de responsabilidade pelo precário status quo, concluindo, com lógica certeira, caber à democracia que o sucedeu a tarefa de providenciar o desaparecimento até do mais minúsculo vestígio das mazelas herdadas”, nota Santos. Era, porém, tarde demais e o futuro trouxe mais frustração do que contentamento com a revelação do peso da inércia do estado de coisas. Ainda assim, a população mantinha-se apática. Como se conseguiu isso?
Uma hipótese, adotada por Santos, é a chamada “privação relativa”, o hiato entre a condição de vida percebida pelo indivíduo e aquela que ele considera que deveria ter, por mérito ou compensação social. Quanto mais modesto o consumo real, maior o gap entre o que alguém possui e o horizonte do seu desejo. Esse componente, num país marcado pela instabilidade, gera uma elevada taxa de incerteza, estimulando nas pessoas uma “aversão ao risco”, em especial nos mais pobres, temerosos do desemprego, da violência policial e da marginalização.
Acrescente uma falta crônica de organização (com sindicatos enfraquecidos etc.) e você terá uma sociedade inerte. “Os partidos não são procurados, nem os políticos. Há evidente descompasso entre a magnitude das carências sociais e o empenho da sociedade em resolvê-las. Não sobra tempo para isso, ante a alocação prioritária do tempo e recursos dos indivíduos na solução de problemas pessoais e familiares”. Melhor deixar como está. Esse raciocínio, em nada destituído de sentido, faz com que falta de cidadania e desigualdades tenham, segundo Santos, “o amparo da indiferença”.
O cálculo que se faz é quanto se pode perder, agindo, ou ganhar, calando. O resultado é óbvio e se revela na convivência quase pacífica com miséria cívica, moral e material. “O ‘custo do fracasso’ das ações coletivas pode ser elevado, levando-se em conta a deterioração do status quo dos participantes, circunstância ameaçadora o suficiente para deprimir o ânimo reivindicante dos mais necessitados”.
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