Aves da Nova Zelândia conseguem estimar probabilidades, capacidade até agora detectada apenas em seres humanos e chimpanzés
Kea: treinado para trocar objetos pretos por comida
Amalia Bastos / Universidade de Auckland
De pé sobre uma plataforma, o papagaio kea (pronuncia-se “kia”) contempla dois frascos cheios de pedacinhos de madeira (metades de pregadores de roupa) pintados de laranja ou preto. Ele foi treinado para saber que os pretos podem ser trocados por comida, enquanto os cor de laranja não valem nada. Do outro lado dos frascos, duas jovens pesquisadoras, ao mesmo tempo, retiram algo de dentro do frasco e apresentam mãos fechadas ao papagaio, que deve escolher uma delas. Sem conseguir ver que cor elas pegaram, ele deve adivinhar. De acordo com artigo publicado nesta terça-feira (3/3) na revista Nature Communications, essas aves neozelandesas (Nestor notabilis) são bastante boas no jogo e acertam frequentemente. A surpresa: parecem fazer isso por meio de cálculos estatísticos, algo que só os primatas de cognição mais avançada – seres humanos e chimpanzés – até agora mostraram conseguir.
O estudo é parte do doutorado da bióloga carioca Amalia Bastos na Universidade de Auckland, na Nova Zelândia. Ela passa três meses por ano trabalhando com os papagaios em um zoológico que mantém espécies nativas. “Eles estão bem acostumados: quando um está trabalhando, os outros respeitam e não sobem na plataforma”, conta. O experimento em questão envolveu seis machos, em três etapas de crescente complexidade (ver vídeo disponibilizado pela Nature, em inglês). A primeira envolvia apresentar frascos com diferentes combinações de objetos das duas cores para averiguar se os papagaios estavam avaliando o número de cada um ou sua proporção relativa. Pelo menos metade deles – e cada vez mais, à medida que avançavam no treinamento – escolhia a mão que tinha retirado do frasco com maior proporção do objeto preto, mesmo que o número absoluto fosse igual nos dois potes.
Pelo que se sabe até agora, só bebês humanos e chimpanzés têm essa capacidade. Estudos de outros grupos já mostraram que macacos-prego, que se destacam entre primatas por serem capazes de complexo uso de ferramentas, não passam nesse teste de proficiência estatística: avaliam a quantidade e não a proporção.
Sem ver o que a pesquisadora retirou dos potes, papagaio precisa escolher uma das mãos Amalia Bastos / Universidade de Auckland
“Os kea são únicos, não existe outro papagaio que viva em florestas de altitude”, conta Bastos, ressaltando que, sendo um nome maori (do povo indígena local) que reproduz o chamado principal da ave, não é previsto o plural. “A comida não é facilmente disponível nessas áreas, então eles consomem mais de 200 tipos de alimentos.” De fato, os animais têm uma aparência peculiar, com um bico superior longo e pontudo que permite, entre outras coisas, catar insetos e cavar o solo em busca de raízes.
Com uma complexidade maior, a segunda etapa do experimento apresentava frascos com uma divisória no meio de maneira que a ave via a totalidade do conteúdo, mas era impossível retirar objetos do fundo. Os kea foram bastante rápidos em perceber que já não adiantava levar em conta as proporções de cores do conjunto completo (que tinha o mesmo número de objetos pretos e laranja) e passaram a computar apenas a parte superior, acessível à experimentadora, para tomar suas decisões. Esse tipo de compreensão só foi visto em testes com bebês humanos.
Na terceira etapa do experimento, as aves também precisavam reconhecer as intenções das pesquisadoras, em uma demonstração de habilidade social que vai além da própria espécie. Uma delas retirava um prendedor ao acaso do frasco, ostensivamente olhando para o alto. Outra pesquisadora escolhia, procurando com atenção os prendedores pretos mesmo que fossem escassos. Três dos kea perceberam e passaram a optar pela mão da pesquisadora tendenciosa independentemente do conteúdo do frasco.
O teste pode parecer irreal, mas na verdade tem relação com a vida dessas aves. Além do desafio de encontrar alimento, os kea têm um sistema social que exige capacidade cognitiva adicional. Eles formam grupos inconstantes de até 50 papagaios, em que cada um pode ir embora e voltar sucessivas vezes. A hierarquia também não é linear: cada relacionamento entre duas aves tem suas particularidades que não seguem uma regra geral, de maneira que é preciso lembrar-se de um grande número de indivíduos.
Encantada com os kea, Bastos pretende continuar a investigar suas capacidades. Ela também estuda um tipo de corvo, ave muito pesquisada por sua inteligência, e planeja repetir o mesmo experimento com a espécie. “Tive uma infância incomum, com muitos animais de estimação”, conta. Ela se diverte ao lembrar que levava uma diversidade de bichos para casa, nem sempre com autorização dos pais. “Percebi que a inteligência não é só humana, os animais também são capazes de pensamento complexo.” Decidida a estudar cognição animal, ela foi procurar centros de excelência na área – fez graduação na Universidade de Oxford, no Reino Unido, e foi para a Nova Zelândia no doutorado, sob orientação do biólogo Alexander Taylor, também formado em Oxford.
Sendo as primeiras aves a demonstrar esse tipo de capacidade cognitiva (não foi o caso para papagaios-do-congo, em estudo anterior por outro grupo), os kea podem inspirar mais do que pesquisadores interessados em inteligência animal, segundo a bióloga. “Eles têm o cérebro do tamanho de uma noz, com neurônios pequenos, leves e muito densos”, explica. É uma estrutura muito diferente da encontrada em mamíferos, que dependem da região chamada córtex para a inteligência complexa. As aves não têm córtex, e por isso foi tradicionalmente pressuposto que tenham limitações cognitivas. “Talvez seja possível se inspirar na estrutura mais simples do cérebro delas para desenvolver sistemas de inteligência artificial que consigam fazer esses tipos de julgamento que integrem informações”, propõe Bastos.
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