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Resenha

Para além da mera vaidade

A biopolítica da beleza: Cidadania cosmética e capital afetivo no Brasil | Carmen Alvaro Jarrín | Tradução: Vera Ribeiro | Editora Unifesp e Editora Fiocruz | 384 páginas | 99,90

A beleza não se limita apenas aos corpos. Como um conjunto de imperativos, práticas, sinais, símbolos e status, ela concretiza e atualiza posições e lugares sociais. Comunica algo ao mesmo tempo que se configura como uma propriedade a ser adquirida e exibida na vida social. Em outras palavras, é um recurso social fundamental e uma suposta garantia de mobilidade social em um país marcado por fortes hierarquias de gênero, raça e classe. Essa é a principal tese do livro da antropóloga Carmen Alvaro Jarrín (EUA), que investiga detalhadamente a construção e a disseminação do que chama de “biopolítica da beleza”. Ou seja, os modos como, no Brasil, critérios e procedimentos estéticos foram mobilizados em táticas de governamentalidade (conceito do filósofo Michel Foucault sobre técnicas de poder centradas na gerência e no disciplinamento de populações) que reforçam essas hierarquias.

Ao combinar pesquisa nos acervos da Biblioteca Nacional e etnografias com pacientes que realizaram ou planejam realizar cirurgias plásticas no Rio de Janeiro, o livro explora a estética corporal para além da mera vaidade e da imediata corporalidade dos atores. A disseminação de diversos procedimentos estéticos, como harmonização facial e lipoaspiração, não é apenas resultado de uma espécie de “ditadura simbólica da beleza”. Para Jarrín, o regime biopolítico estético se produz como uma resposta a um intrincado arranjo entre médicos, pacientes e o Estado brasileiro, no qual a cosmética atua como um recurso que ora reforça, ora oferece oportunidades para desestabilizar as hierarquias sociais.

O primeiro capítulo demonstra como a eugenia, a higiene e a beleza representavam uma estratégia única de controle e “contenção de danos” causados pela “miscigenação excessiva” no território brasileiro nas primeiras décadas do século XX. Naquela época, médicos, sanitaristas e governantes tinham a intenção de purificar a raça, eliminando sujeitos negros e indígenas da constituição física brasileira. Portanto, o Estado deveria facilitar a “produção” de homens fortes, vigorosos e brancos, assim como mulheres delicadas, companheiras e igualmente brancas. O embelezamento e o fortalecimento da raça passavam pelo embranquecimento, e, sem essas iniciativas, o destino da nação estaria em risco.

Já o foco do segundo capítulo está em entender de que forma o cirurgião plástico Ivo Pitanguy (1923-2016) estabeleceu um modelo de atuação profissional e institucional para a prática de intervenções plásticas no Brasil. Com a criação de uma espécie de “filantropia estética”, surgiu a visão de que os pobres também teriam direito às vantagens de uma vida bela e plena. Na visão popularizada por Pitanguy e outros cirurgiões, a beleza abriria portas, e um projeto de mobilidade social estaria ancorado no direito das populações mais pobres de ascenderem socialmente por meio da beleza. O que fica implícito aqui é a clara conexão entre feiura e pobreza, entre beleza e riqueza.

Do terceiro ao sexto capítulo, Jarrín investiga como esses procedimentos estéticos ocupam um lugar ambíguo na sociedade brasileira. Eles reforçam uma governamentalidade racializada que valoriza certos corpos em detrimento de outros, ao mesmo tempo que os sujeitos, conscientes desse caráter racializado, injusto e desigual, procuram navegar nas hierarquias simbólicas brasileiras em busca de oportunidades para si mesmos. Assim, na cosmologia estética nacional, afinar o nariz, manter mãos sem calos e desfrutar de cabelos lisos e vibrantes marcam, em tese, o pertencimento àqueles que têm o direito de ascender socialmente no Brasil, ou seja, todos aqueles que não sejam negros e não carreguem as marcas de um passado de trabalhador.

Repleto de episódios, além de um apuro teórico exemplar, o livro abre possibilidades para novas e futuras investigações. Destaco duas delas. A primeira diz respeito ao impacto que as redes sociais e a cultura midiática podem ter na manutenção ou desestabilização dessas hierarquias. Um segundo ponto é a atuação dos movimentos sociais de body positivity em conjunto com novos movimentos políticos que visam repensar raça, gênero e outras desigualdades no Brasil. Como esses fenômenos operam ou desestabilizam a biopolítica da estética? Embora Jarrín não explore essas questões, o livro nos desperta para refletir sobre esses temas.

Rafael de Souza é sociólogo, professor da Universidade Federal Fluminense (UFF) e pesquisador do Cebrap.

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