Empresários norte-americanos e canadenses criaram uma companhia farmacêutica para produzir e comercializar um invento brasileiro: as partículas LDE (de low density emulsion, ou emulsão de baixa densidade), lipoproteínas artificiais que servirão de veículo para medicamentos usados no combate ao câncer e reduzirão a toxicidade dessas drogas. A criação é do médico Raul Maranhão, professor da Faculdade de Ciências Farmacêuticas da Universidade de São Paulo (USP), diretor do Laboratório de Lípides do Instituto do Coração (Incor) da USP e agora membro do conselho da empresa, a iCell Therapeutics Corp.
O Incor e seu órgão financiador, a Fundação Zerbini, firmaram um acordo com a iCell pelo qual cedem a patente e, em troca, têm participação acionária e representação na diretoria da iCell, que busca recursos para se estabelecer. José Antônio Ramires, diretor do Incor, esclarece que a patente não foi vendida. “Depositamos a patente como nossa parte do capital e estabelecemos um contrato ao fim do qual, caso a empresa não comercialize o produto, podemos retomar sua posse.” O acordo, que resultará na instalação do Centro de Desenvolvimento Tecnológico da iCell dentro do Incor, viabiliza a produção e a comercialização mundial das LDE.
Quando começou a desenvolver as LDE, de comportamento semelhante ao mau colesterol ou LDL (de low density lipoprotein, lipoproteína de baixa densidade), o objetivo era só criar exames preventivos da aterosclerose – deposição de material gorduroso nas artérias.
Os estudos começaram nos anos 80, com alvo no metabolismo do quilomícron (Qm), outra lipoproteína ligada à aterosclerose. Ao contrário das frações de colesterol LDL e HDL (high density lipoprotein, lipoproteína de alta densidade), a metabolização do Qm não se mede no sangue: sua concentração varia com a quantidade e a qualidade da gordura consumida, mais a velocidade de sua absorção pelo intestino. Conclusão: para estudá-la seria preciso acompanhar sua trajetória pelo organismo.
Afinidade com receptores
Então, Maranhão desenvolveu um quilomícron artificial. Injetado com um marcador radioativo, seu acompanhamento permitiu entender melhor a obstrução das artérias e mostrou que os portadores de doença coronariana têm maior dificuldade de metabolizar e retirar da circulação as partículas lipoprotéicas ingeridas na alimentação.
Maranhão diz que já houve tentativas de estudos semelhantes com LDL, mas pouco avançaram: “Não é permitido injetar hemoderivado de uma pessoa em outra para fins de pesquisa, devido ao risco de transmissão de doenças como Aids e hepatite. E a injeção de LDL do próprio paciente, após coleta e preparação do material, exige grande disponibilidade dos voluntários, o que tornaapesquisacomplexa e inviável”. Assim, a partícula artificial poderia ser uma ferramenta para identificar indivíduos com metabolismo mais lento e estimular a prevenção.
As primeiras experiências com LDE, em ratos, trariam um dado novo que mudaria drasticamente o rumo da pesquisa: a partícula artificial era capaz de ligar-se a receptores das células, e até com mais afinidade do que as partículas naturais.
Maranhão explica que a estrutura da LDE é bem semelhante à da LDL natural: um núcleo concentrado de colesterol e éster de colesterol, e uma superfície formada por uma só camada de fosfolipídios. Não tem, contudo, apoproteínas, elo entre a partícula lipídica e os receptores celulares – em especial a ApoB-100, que cobre a LDL natural.
Surpreendentemente, ela não faz falta. É que, já ao entrar na circulação, a LDE começa a atrair e incorporar apoproteínas, especialmente a ApoE que, então, se liga ao receptor. “E, como a ligação é feita de forma cooperativa, no caso da ApoB apenas uma molécula liga a partícula ao receptor, enquanto na LDE entre duas e quatro moléculas de ApoE fazem a ligação.”
Estava descoberta a outra vocação da LDE, que faria o especialista em lipídios e fisiologia enveredar pelo campo da oncologia. Ele já sabia que as células de tumores têm até 100 vezes mais receptores de LDL que as células normais, de modo que essa lipoproteína é removida muito mais rapidamente da circulação sanguínea. É por isso que a maioria dos pacientes de câncer tem uma diminuição significativa nos níveis de colesterol do sangue.
Para Maranhão, isso ocorre provavelmente porque a proliferação acelerada da célula neoplásica (cancerosa) requer maiores quantidades de colesterol e de outros lipídios, necessários à sua multiplicação e à sua sobrevivência.
Cavalo de Tróia
A partir da descoberta de que a LDE se unia tão facilmente a receptores celulares, o pesquisador investiu na hipótese de que ela servisse de veículo para transportar quimioterápicos e atingir seletivamente as células neoplásicas, como um “cavalo de Tróia”. “Esse sempre foi o ideal de todo terapeuta: um mecanismo que selecionasse as células doentes, preservando as sadias.”
Não faltam tentativas. Uma das técnicas mais estudadas é a dos lipossomas, que tendem a concentrar-se em células mais vascularizadas – típicas dos tumores. Preparações com lipossomas já transportam agentes antifúngicos no tratamento de complicações infecciosas, sobretudo da Aids. Mas, em relação aos tumores, para Maranhão, o lipossoma ainda é um “balão pré-dirigível”.
Ele já testou a LDE em pacientes. Seu estudo publicado em 1994 na revista Cancer Research envolveu 14 pessoas com carcinoma de mama e 22 com tumor de ovário (13 malignos e 9 benignos). “Injetamos a emulsão com marcação radioativa antes da cirurgia de extração do tumor. Depois, comparamos o tecido ovariano normal com o tecido neoplásico para medir o nível de radiação.” Enquanto o tumor benigno de ovário captou a mesma quantidade de partículas radioativas que o tecido normal, o tecido neoplásico tinha dez vezes mais partículas que as células sadias. Em carcinoma de mama, a LDE concentrou-se quatro vezes mais.
Já que a emulsão lipídica se unia seletivamente a células cancerígenas, supunha-se que as sadias ficassem protegidas dosquimioterápicos da emulsão. Foram feitos testes em ratos, com o quimioterápico BCNU (carmustina). Depois, avaliaram-se 42 pacientes no Hospital das Clínicas e 20 no Hospital Sírio-Libanês, com ajuda do oncologista Antônio Carlos Buzaid. Os voluntários tinham tumores de mama, rim, cólon, ossos e próstata.
Dose triplicada
Verificou-se que, com a LDE, os pacientes toleraram doses de BCNU três vezes superiores. “A dose máxima que se utiliza normalmente”, diz Maranhão, “é de 150 a 200 miligramas por metro quadrado (mg/m2) de superfície corpórea, com os efeitos colaterais conhecidos – Náuseas, queda de cabelo e outros mais drásticos como depressão da medula óssea, que leva a transtornos da coagulação e do sistema imunológico. Verificamos que até 400 mg/m2 a toxicidade é mínima – ou seja, não foram verificados efeitos colaterais significativos. Aumentamos a dose para até 600 mg/m2 e, ainda assim, houve boa tolerância”. Contudo, ele acha cedo para determinar se a eficácia da droga se altera ou não quando conduzida pela LDE, já que, por exemplo, a maioria dos pacientes estudados passara por outros tratamentos: “É difícil avaliar e documentar as respostas a um tratamento”.
A próxima etapa inclui a incorporação de dois quimioterápicos à LDE: paclitaxel (taxol) e etoposide. Os testes preliminares são promissores: “Por enquanto, as duas drogas foram testadas em ratos. O taxol apresentou-se dez vezes menos tóxico. E com o etoposide a toxicidade foi 16 vezes menor”.
O projeto temático que Maranhão desenvolve até 2003 terá dois grupos: um de transplante cardíaco, outro de lúpus eritematoso sistêmico – doença auto-imune que desregula o sistema de defesa. Já se constatou que transplantados e pacientes de lúpus mostram grande tendência a desenvolver precocemente a aterosclerose. A obstrução das artérias coronárias costuma surgir depois do primeiro ano do transplante e é a maior causa de morte dos transplantados – o que parece ligado às reações imunológicas pós-cirurgia. Nos pacientes de lúpus, o risco de obstrução coronária é 50 vezes maior que o da população geral.
Resultados instigantes
Num projeto encerrado em 1995, Maranhão constatou grave distúrbio metabólico de quilomícron nos pacientes com lúpus eritematoso sistêmico e transplante cardíaco – resultados que relatou no ano passado nas revistas Arthritis and Rheumatism e Transplantation. No atual projeto, pretende ver se há alterações de remoção da LDL, tanto nos pacientes de lúpus (em colaboração com Eloísa Bonfá) como nos de transplante.
Alguns resultados instigantes surgem de outros testes. Com a colaboração de Carmen Cristiano, de sua equipe, e Carlos Eduardo Negrão, do Instituto de Educação Física da USP, Maranhão compara atletas e sedentários com níveis de LDL normais e equivalentes: “Os atletas tiram LDE da circulação duas vezes mais rápido. Verificou-se também que a velocidade de remoção da partícula é proporcional à chamada VO2 máximo – o índice de consumo de oxigênio que avalia a capacidade pulmonar”.
Ele espera que, no futuro, qualquer pessoa se possa beneficiar de um exame preventivo com a LDE, para detectar precocemente distúrbios metabólicos que não aparecem num simples exame de sangue. “Hoje, o exame de colesterol é como uma foto. Ele diz quantos miligramas de colesterol há em 100mililitros de sangue num momento específico.No entanto, o colesterol total é reflexo do que entra na circulação, fabricado pelo fígado, e do que sai, entrandona célula pelos receptores. E é esse processo inteiro que podemos visualizar com a LDE, como num filme.”
Dez anos de luta pela patente
Raul Maranhão não deixou a paciência esgotar-se enquanto percorria os meandros da burocracia para obter a patente de sua invenção, sem a qual não poderia avançar. “Foi uma viacrúcis que começou em 1991, quando fizemos as primeiras consultas ao INPI” (Instituto Nacional da Propriedade Industrial). Na época, o INPI pouco podia fazer: ainda não havia uma lei brasileira sobre patentes que regulamentasse a produção de medicamentos, que só seria aprovada em maio de 1996.
Nos Estados Unidos, também não foi fácil. A patente, solicitada em 1992, demorou quatro anos para sair, após um longo vaivém de documentos. A seu ver, “apesar de competentes e com boa formação na área biomédica”, os funcionários do escritório de patentes em Nova York não tinham muito conhecimento da área em questão. A maior dificuldade foi provar que o invento não era nada parecido com algo já patenteado: “Emulsão pode ser uma infinidade de produtos, até creme para ruga”.
Com a patente no bolso, Maranhão contatou algumas empresas nacionais. As conversas não avançaram. “A indústria nacional ainda precisa de incentivos para criar uma tradição no desenvolvimento de produtos farmacêuticos”, diz.
A parceria com a iCell resolveu o problema, mas Maranhão inicia outras batalhas. Uma delas são os estudos clínicos que ainda terão de ser feitos, desta vez fora do Brasil, para a LDE ser aceita no exterior. Terá também de rever as técnicas de produção. Hoje, no Incor, a quantidade de LDE suficiente para um paciente absorve três a quatro dias de trabalho. “Em mutirão, podemos atender até dez pacientes numa semana”, diz Renato Barboza, técnico do laboratório. É suficiente para a pesquisa, mas não para a produção industrial.
O Projeto
Lipoproteínas Artificiais na Investigação das Dislipidemias e no Tratamento do Câncer (nº 99/01229-2); Modalidade Projeto temático; Coordenador Raul Cavalcante Maranhão – Instituto do Coração (lncor) da USP; Investimento US$ 364,678 e R$ 150.627,00