Vocês já ouviram essa história antes. Carlos amava Lena, que amava Bruno, que amava… sei lá quem e espero nunca ficar sabendo. Acho que só o contexto muda, a espécie humana é a mesma, infelizmente.
Lena tinha passagem e passaporte para o nosso vôo rumo ao futuro. Só que ela preferiu não embarcar. Para ela um futuro sem o Bruno não era futuro e o Bruno não fora sorteado. Ela ia ficar na Terra, com todos aqueles infelizes desafortunados que tentariam sobreviver, de algum modo, à fúria esterilizadora de Nova Carina.
Há muito tempo que os geólogos e os paleontólogos vinham falando em extinções em massa. Eventos que acabam com quase toda a vida em nosso planeta, fazendo a evolução começar de novo a partir das criaturas pequenas e insignificantes. Acontecera com os dinossauros, há 75 milhões de anos, permitindo a ascensão da era dos mamíferos. E agora ia acontecer de novo. Os atuais senhores do planeta iam sair de cena, dando lugar a um novo conjunto de atores no velho palco da vida.
Dizem que os dinossauros foram extintos pelo impacto de um cometa. O mundo para eles acabara com um estrondo. Para nós ia acabar com um soluço, como sonhara o poeta. Com a supernova na constelação de Carina transformando nossas noites num crepúsculo azulado e mortal. Inundando o Sistema Solar com raios cósmicos que queimariam o nitrogênio da atmosfera da Terra. Produzindo os óxidos que deixariam o planeta sem a sua camada protetora de ozônio. Transformando o mundo num deserto como Marte.
É claro que a humanidade sempre dá um jeito de trapacear. Somos mais inteligentes do que os dinossauros e não vamos deixar que uma estrela acabe com a nossa espécie, assim sem mais nem menos. Um bocado de gente vai sobreviver ao desastre em nossas colônias no fundo do mar e no subsolo da Lua. Infelizmente não há lugar para todo o mundo nesses postos avançados. Toda a humanidade que ficou na superfície da Terra, aqueles cujos antepassados não emigraram para o espaço ou para o fundo do mar, para estes só há uma chance. A Loteria do Futuro.
Não é um jogo de pura sorte. Os computadores são programados com o nosso perfil psicológico, habilidades profissionais e herança genética. E a partir daí sorteiam os casais que poderão atravessar o Portal, rumo a uma vida nova num mundo 2 milhões de anos no futuro.
Esse mundo é a Terra, totalmente modificada pela tormenta de radiação. Um mundo bizarro e selvagem, cheio de espécies de vegetais e animais exóticos. Já vimos imagens deste mundo, transmitidas pelas sondas que nos precederam através do portão do Tempo. É um mundo incrivelmente belo, a natureza é sábia e só as mutações mais adequadas sobreviveram às mudanças.
Parece uma terra de fadas, com montanhas escarpadas, esculpidas por uma nova era glacial. Há florestas de cogumelos do tamanho de árvores e coisas que parecem pássaros coloridos voando. Mas não são pássaros nem mamíferos ou répteis voadores. Parecem moluscos. Moluscos adaptados ao vôo e à vida no céu. Coloridos feito bandeiras.
Este é o mundo do futuro aonde vamos viver. Nossa nave, a Herbert George, é uma antiga nave de cruzeiros interplanetária, modificada para voar através do Portal do Tempo, ancorado no ponto Lagrange entre a Terra e a Lua. Vamos levar mudas de plantas e um estoque de animais na forma de óvulos fertilizados e congelados. Herbert George é nossa arca de Noé.
Nossa carga inclui todo o equipamento de construção robótica necessário para começar uma colônia, mas uma coisa me preocupa. Em parte alguma, nas imagens que os robôs exploradores enviaram do futuro, aparecem vestígios de seres humanos. Por que será que os colonos espaciais não repovoaram a Terra? Será que tem alguma coisa lá que impede a colonização humana?
Nossos emissários não encontraram nenhum sinal de micróbios patogênicos nem gases venenosos. Os níveis de radiação são compatíveis, por isso vamos arriscar. A Herbert George leva 350 casais escolhidos para recomeçarem a aventura humana no ano 2.000.680. d.C.
Lena foi sorteada e podia estar aqui comigo, mas preferiu ficar com o Bruno. No seu lugar colocaram a Giovana, uma moça bonita e saudável, mas que eu mal conheço. Talvez acabe gostando dela, quem sabe?
Às vezes eu olho para os moluscos voadores do ano 2 milhões 680 e sinto um arrepio. Eles podem ser o resultado das mutações sofridas pelos seres que ficaram na Terra. Aqueles lençóis coloridos, voando entre os cogumelos gigantes, podem ser os descendentes da Lena, do Bruno e… é melhor nem pensar nisso.
O Portal se aproxima e a contagem regressiva chega aos momentos finais. Houve muita discussão na hora de batizar a nave, afinal tantos cientistas do passado contribuíram para que pudéssemos abrir esta porta para o futuro. Albert Einstein mostrando que espaço e tempo são coisas interligadas, Edward Teller, Enrico Fermi e todos aqueles físicos que criaram a bomba atômica. Townes e o seu raio laser.
Basicamente o Portal do Tempo usa bombas de hidrogênio para gerar raios laser de altíssima potência que criam um anel de luz coerente capaz de agitar a curvatura do tempo-espaço ligando o presente ao futuro. Mesmo assim acabamos batizando a nave com o nome de um escritor que sonhara com esse tipo de excursão quando Einstein ainda era um bebê.
E lá vamos nós. O céu do futuro parece estranho, as constelações parecem distorcidas. Olho para a poltrona ao meu lado. Lena, você podia estar aqui…
O meu amor se foi, perdeu-se nas brumas do tempo.
Ah Lena, por que você tinha que amar o Bruno, que amava sei lá quem, que não tinha uma passagem para o futuro?
E nem se importava…
Jorge Luiz Calife é jornalista, tradutor e autor de três romances e uma coletânea de contos (Editora Record) sobre o futuro da colonização espacial
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