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Antropologia

Pátria, substantivo feminino

Pesquisa coloca em xeque motivação real e resultados de políticas contra tráfico de mulheres

LASAR SEGALL, 1891 VILNA – 1957 SÃO PAULO Interior no mangue, 1949, óleo sobre tela, 71×58 cm, coleção particular, São PauloLASAR SEGALL, 1891 VILNA – 1957 SÃO PAULO

Numa sintomática analogia com as relações cotidianas de gênero, milhares de homens se armam até os dentes e entram em guerra para defender a pátria, curiosamente um substantivo feminino, não apenas em português, tantas vezes retratada em vários países como uma mulher. Infelizmente, o mesmo entusiasmo dos campos de batalha é repetido em casa quando a guerra termina, num registro análogo das divisões sexuais do dia-a-dia. Basta lembrar como, após a Segunda Guerra Mundial, na Fran­ça (para citar apenas um exemplo), milhares de mulheres que haviam se relacionado com soldados alemães foram humilhadas em praça pública pelo simples fato de terem amado o inimigo. No entanto a maioria dos homens sérios que fizeram negócios lucrativos com os invasores escaparam ilesos. Era mais fácil e “lógico” jogar a ira pela pátria ofendida sobre as mulheres que haviam “maculado” a honra do Estado.

Hoje esse padrão parece estar se repetindo em outras searas, dessa vez sob o manto de preocupações humanitárias. De novelas globais até manchetes contínuas na mídia, o tráfico de mulheres está provocando um pânico moral e real. Mas qual será a dimensão desse fenômeno e qual o interesse subjacente a essa questão? Longe de negar a existência do tráfico, um casal de pesquisadores, um americano e uma brasileira, Ana Paula da Silva e Thaddeus Blanchette, ambos doutores pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), foram a campo para trazer novos pontos de vista à discussão, com resultados inovadores. “A mulher solteira, em especial a jovem, ocupa um espaço privilegiado nos discursos sobre os perigos da imigração. Ela costuma ser apresentada como alguém que seria exposta aos perigos da escravidão sexual, uma vez esteja fora da rede protetora da família e longe do olhar do governo de seu país de nascimento”, observam os autores, mais conhecidos pelo seu artigo “Nossa Senhora da Help: sexo, turismo e deslocamento transnacional em Copacabana” e que, agora, estão com dois novos artigos, ainda inéditos, fruto de novas pesquisas que problematizam ainda mais a trama que reúne temas como turismo sexual, prostituição e tráfico de mulheres. Segundo eles, é preciso cautela e rigor científico para tratar do assunto, e não sensacionalismo ou paixão sem bases no real, sob pena de transformar luta por direitos humanos em preconceito e repressão.

“Muitas vezes, os projetos imigratórios dessas mulheres é tido como algo que representa um perigo a sua pureza e liberdade. Além disso, a jovem imigrante também é entendida como um perigo à nação”, avisam. “Seu deslocamento internacional representa uma ameaça tanto para o país de recepção quanto para o país de origem, em que ela é vista ora como fonte de possíveis ‘maus costumes’ e/ou ameaças biológicas, ora como amea­ça em potencial ao status de seu país de origem, alguém cujo comportamento pode macular a reputação de sua terra natal. Com destaque nesse quadro encontra-se a prostituta”, analisam. Proibida de deslocar-se, ela atrai todo tipo de vigilância e re­­pressão, afirmam. “Mas em suas tentativas de controlar as fronteiras, proteger seus cidadãos e salvaguardar a nação, como é que o Estado pode determinar quem é prostituta e quem não é. Assim, ao que parece, em vez de descobrir prostitutas em trajetórias de imigração, o Estado as inventa, aplicando um conceito moral e político, previamente formado, a uma grande gama de mulheres que podem ou não estar se prostituindo.”

Para os pesquisadores, a discussão perdeu o rumo e se transformou em pânico moral semelhante àquele que tomou conta dos EUA no início do século XX sobre a escravidão branca, por sua vez calcado numa fantasia racial vitoriana que se horrorizava em imaginar mulheres brancas do Império em mãos e camas de colonizados “inferiores”. “Esses discursos têm renascido porque provêm de uma maneira relativamente não contestada de construir filtros adicionais contra o movimento indesejado de imigrantes aos países da Europa Ocidental e América do Norte.” Assim, avisam, a narrativa brasileira do tráfico de mulheres parece estar mais calcada em mitos e estereótipos do que em realidades, já que não existem estatísticas confiáveis ou nenhuma indicação de que uma quantidade assustadora de brasileiras está sendo ludibriada. “Os principais estudos do tráfico no Brasil indicam que a participação de estrangeiros no aliciamento é relativamente baixa. Os mesmos números revelam que se confunde esse problema com a imigração de prostitutas, em que se computam casos de imigração voluntária dessas profissionais como casos de tráficos de mulheres, mesmo quando estes não envolvem violações de direitos humanos.”

Os autores advertem que existe uma tendência nesse debate a utilizar termos de denúncia ou acusação como se fossem categorias de análise, uma visão que, ressaltam, está longe de considerar essas mulheres como agentes ativas na construção de seus destinos. “Essa procura de vítimas e vilões oculta o funcionamento das relações que constituem os nexos entre turismo internacional, migração e sexo operando na maioria das grandes cidades brasileiras.” A nota triste nessa possível visão enganadora e enganosa é que “o grosso dos esforços do governo brasileiro, na luta contra o tráfico, parece ser concentrado em impedir ou desincentivar as viagens de pessoas consideradas como ‘vulneráveis’ ao tráfico e não habilitar essas pessoas a viajar com segurança”. Nesse contexto é possível que “a preocupação com a escravidão sexual feminina esteja sendo mobilizada não para proteger as mulheres em questão, mas para reprimir seus movimentos e proteger a reputação da nação”.

LASAR SEGALL, 1891 VILNA – 1957 SÃO PAULO Grupo do mangue na escada,1928, ponta-seca, 24×18 cm, Museu Lasar Segall, São PauloLASAR SEGALL, 1891 VILNA – 1957 SÃO PAULO

Essa visão pode tanto prejudicar a leitura efetiva do tráfico como das supostas conseqüências sempre daninhas do turismo sexual. Para os pesquisadores, nos discursos produzidos por órgãos do governo sobre o fenômeno, é comum observar o conceito de turismo sexual como se fosse sinônimo de abuso de menores sempre ligado à extradição de mulheres para trabalhos forçados como prostitutas, cuja solução seria a repressão das mulheres e a expulsão dos homens. O lócus de pesquisa inicial para os autores foi a boate Help, em Copacabana, no Rio de Janeiro, ponto de encontro entre garotas de programa e “gringos”. A casa, aliás, acaba de fechar suas portas e será “purificada” com sua transformação, pelo governo do estado carioca, em sede de um novo Museu da Imagem e do Som. O casal de pesquisadores observou e conversou com clientes e garotas da Help para fazer um retrato mais realista do turista sexual e suas razões, descobrindo as motivações que fazem estrangeiros, diante da oferta atual de tantos países, procurar o Brasil. Primeiro, afirmam, há a idealização de que as brasileiras seriam dotadas de uma sexualidade natural acentuada, com um detalhe notável e que faria Gilberto Freyre rir-se de gosto, já que, para os turistas, a mistura racial do país seria a razão para essa sexualidade supostamente “à flor da pele”. “Vir ao Rio é como ir a uma daquelas lojas de sorvetes dos mil e um sabores, sabia? É muito mais excitante vir para cá do que ir para o México ou Cuba, onde vou encontrar uma mistura mais restrita das mulheres”, disse um dos entrevistados.

Outra “quimera” dos turistas é a idéia de que as relações expostas na cidade, em especial sobre o papel da mulher na família e na sociedade, são típicas de um outro tempo, o passado dos países de origem dos gringos. “Aqui as mulheres sabem tratar um homem e são como eram na Europa anos atrás”, afirmou outro turista. Por fim, uma visão da cidade do Rio e do Brasil como “perdedores”, espaços socioeconômicos incapazes de prover adequadamente a maioria de seus habitantes, particularmente as mulheres, enquanto os estrangeiros teriam dinheiro e status, tendo portanto a capacidade, por meio do noivado e do casamento, de conseguir vistos permanentes para seus pares, tornando-se muito atraentes para as mulheres brasileiras, prostitutas ou não. A partir disso, os pesquisadores foram observar a outra ponta dessa relação, a fim de problematizar o discurso estereotipado sobre turismo sexual e tráfico de mulheres e descobriram que “as mulheres são ativas na manutenção de uma visão de Brasil como campo para as realizações de fantasias sexuais e afetivas”, já que (para dar um exemplo apenas) as prostitutas que fazem o gênero “namoradas” são mais bem-sucedidas que suas contrapartidas imediatistas de satisfação sexual. “Longe de serem simples vítimas, elas detêm controle notável sobre suas ações e representações, lançando mão de artifícios para construírem uma almejada ascensão social por meio do forjamento de ligações com estrangeiros itinerantes, sem que isso se configure uma visão simplista dessas mulheres como mercenárias calculistas.”

Tudo é bem mais sutil do que o surrado chavão do “o que uma moça como você faz num lugar como este?”, e os pesquisadores questionam o artigo 231 do Código Penal Brasileiro, que define como crime de tráfico de mulheres ajudar qualquer mulher que vá exercer a prostituição no exterior a sair do território nacional. “Tal definição ignora o habitus da prostituição em lugares como Copacabana, em que o amor e o sexo comercializado são duas faces da mesma moeda. Assim, parece-nos muito pouco provável que essa legislação possa prevenir o tráfico de mulheres, desde que isso continue a ser definido como sinônimo de viagem internacional de prostituta.” Os pesqui­sadores lembram que, após adesão do Brasil ao Protocolo de Palermo, em 2004, que trata da questão do tráfico, houve poucas e pequenas discussões internas públicas sobre a nova política de enfrentamento da questão, que preferiu não ouvir a voz das prostitutas. “O enfrentamento parece que vai ficar restrito ao artigo 231, que estipula que qualquer prostituta em movimento é, ipso facto, uma traficada. Um projeto político de orientação democrática, que supostamente luta contra o tráfico de mulheres, tem sido configurado como um programa autoritário de repressão à prostituição e que busca sua legitimidade popular no apelo às ‘responsabilidades internacionais do Brasil’.”

A palavra-chave nesse discurso é a vulnerabilidade, como se as mulheres que se deslocam internacionalmente fossem incapazes, sempre, de tomar uma decisão racional e é preciso reprimi-las, impedir seu direito de ir e vir, “para seu próprio bem”. Nesse sentido, notam os autores, a prostituta é vista como uma espécie de mulher inferior, incapaz, cuja atividade é articulada com a ilegalidade, com a ligação com máfias criminosas, ainda que o seu trabalho seja, segundo leis brasileiras, legalmente aceito. “Podemos formular a hipótese de que, na luta para o acúmulo de status entre as nações, uma das atribuições do Estado é zelar pela pureza de ‘suas’ cidadãs quando essas viajam além de suas fronteiras, pois o comportamento delas, uma vez identificadas étnica ou nacionalmente no exterior, pode ser facilmente atribuível a todas as mulheres daquela sociedade”, advertem. Haveria, então, um complexo de valores morais e interesses que subjazem e informam as ações do Estado, fazendo com que suas ações de “proteção” sejam pouco funcionais no combate do tráfico real, já que centradas nos discursos de valorização da nação no mundo globalizado. “Mais: é importante lembrar que hoje sabemos muito pouco sobre a prostituição e suas possíveis ligações com o tráfico de mulheres. Portanto, as narrativas hegemônicas no universo antitráfico não se fundamentam em lógica científica, e sim numa ordem moral e política que se apresenta, enganadoramente, como fruto de pesquisa sociocientífica.”

Como resultado, notam, surgem narrativas hegemônicas duvidosas. A primeira salienta a necessidade de o Brasil demonstrar que é membro responsável da comunidade de nações. A segunda separa as brasileiras em deslocamento internacional entre as que “podem viajar” e as que “são vulneráveis e não podem viajar, pelo menos por enquanto”. Por fim, a que situa a prostituição, em geral, como trabalho excepcionalmente degradante e perigoso, equiparado ao tráfico de drogas. “Esses dados levantam dúvidas sobre um Estado que, por um lado, reconhece como seu dever a repressão das violações dos direitos humanos das mulheres e, por outro, é servido por funcionários públicos que entendem as prostitutas como seres essencialmente criminosos e destituídos de direitos.” Logo, a repressão policial antitráfico continua orientando-se pela proibição do movimento de prostituta e não pelo desejo de garantir a essas mulheres (e homens) seus direitos humanos. Na base de tudo, novamente, a ligação entre pureza sexual feminina, Estado e status relativo de grupos sociais. “Numa sociedade onde os símbolos de ‘pureza’ são legíveis para a maioria é fácil dizer quem é ou não ‘pura’. Quando as alianças matrimoniais acontecem entre sociedades, a possibilidade de discernir a pureza relativa de uma mulher é reduzida, sendo a etnicidade ou nacionalidade lida como ‘marca’ da qualidade feminina.” Vale recordar, dizem os autores, que a palavra “francesa”, no Rio do início do século XIX, era sinônimo de prostituta, da mesma forma que hoje o mesmo parece estar acontecendo com a palavra “brasileira” na Europa e nos EUA.

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