Ambientalista publica diário com 30 anos de trajetória na vida pública
O intelectual italiano Norberto Bobbio, em seu livro Os intelectuais e o poder, diz que “… na medida em que se faz político, o intelectual trai a cultura; na medida em que se recusa a fazer-se político, a inutiliza”.
Para um cientista, esta é uma decisão muito difícil. Porém, o que acontece depois que se toma a decisão de trair nossa própria cultura pode compensar, pelo menos no âmbito coletivo e no longo prazo. Este é o caso do professor Paulo Nogueira-Neto, ao qual passarei a me referir como PNN, como ele mesmo faz em seu livro intitulado Uma trajetória ambientalista – Diário de Paulo Nogueira-Neto.
À primeira vista o livro assusta pelo tamanho. São 880 páginas em que PNN apresenta uma parte de sua trajetória intelectual na forma de anotações curtas que ele iniciou na década de 1970 e vão até os anos 2000. O susto passa ao se começar a leitura. De fato, ela se torna realmente divertida e por isso difícil de largar, especialmente se o leitor dá importância às questões ambientais e se deseja entender por que o Brasil é o que é hoje em termos de meio ambiente.
PNN traiu a sua cultura ao pensar que o meio ambiente poderia ser algo importante. Sua traição foi doar a sua vida e carreira para ajudar a organizar o Brasil em relação às questões ambientais e, ao fazer isso, acabar convencendo os outros de que valia a pena lutar para preservar os biomas do país, poluir menos as águas e utilizar energia renovável, entre outros objetivos.
O resultado do trabalho de pessoas como PNN e outros pioneiros desde a década de 1970 é que o Brasil hoje em dia é um dos países considerados como ícones do ambientalismo mundial. Temos a matriz energética com a maior parcela de combustíveis renováveis do planeta e desenvolvemos programas de pesquisa de recuperação de florestas que são exemplos para muitos países. Acima de tudo e talvez mais importante é o fato de que hoje em dia muitas de nossas crianças já demonstram uma consciência ambiental cada vez mais forte. Como cientista e um espectador da evolução do ambientalismo no Brasil, tenho acompanhado essa evolução – as mudanças drásticas de atitude da nossa população em relação ao meio ambiente – que considero espetacular para um país como o nosso. O livro de PNN mostra que tal mudança não se faz da noite para o dia. Tampouco se faz sem que intelectuais influentes – e também traidores no senso bobbiano – exerçam influência nesse sentido.
Como PNN nasceu em 1922, o livro não pode ser considerado uma autobiografia comum, mas uma autobiografia intelectual. Isso porque as anotações se iniciam quando ele já era um cientista maduro e importante no cenário nacional – é um dos mais respeitados especialistas em abelhas do país e fundador do Departamento de Ecologia do Instituto de Biociências da Universidade de São Paulo. Mais do que explicar como um intelectual chegou a influenciar profundamente a consciência ambiental nacional, PNN é humilde e corajoso em publicar suas anotações pessoais, obviamente selecionadas a dedo, para mostrar o que me parece uma mescla de espectador e ao mesmo tempo um dos atores da história, que nos conta como o ambientalismo foi forjado no Brasil e chegou ao que hoje vemos.
Entre 1970 e 2000 PNN parece ter escrito quase que diariamente pequenas notas, por vezes explicativas e por outras críticas – sempre elegantes – sobre reuniões, telefonemas de ministros, encontros para formar institutos e secretarias em Brasília, em São Paulo e também em reuniões no exterior em que participou de eventos-chave para o ambientalismo mundial. Suas notas mesclam dropes divertidos com notas de viagens, às vezes tristes porque algo está indo no caminho errado e outras vezes com um ou até três “vivas” quando via que um novo caminho importante fora aberto no ambientalismo mundial ou brasileiro.
É interessante ver como as questões energéticas, de poluição e preservação de florestas, por exemplo, andaram juntas e nortearam as ações do país. Por um lado, PNN mostra suas anotações sobre a criação da Secretaria de Meio Ambiente da Presidência da República (Sema), da qual foi titular de 1973 a 1985. Em outra seção há anotações surpreendentes do início da década de 1970 sobre discussões em torno de energia renovável e poluição por automóveis que mostram como a pujança do etanol em nossos tanques e seus efeitos benéficos ao ambiente e à saúde foram desenhados por essas ações muito antes do que imaginamos.
O mesmo acontece em relação às mudanças climáticas globais. Hoje é normal ouvir que este assunto apareceu nos anos 2000, mas há anotações de PNN do início da década de 1990 em que a preocupação com o excesso de emissões de CO2 já era cogitada como um problema para o Brasil e para o mundo. O mesmo vale para a ideia de sustentabilidade, termo tão ouvido e empregado nos dias atuais. Ao ler as anotações de PNN, se vê que a ideia já existia. Ele tem um conjunto de notas, que começam na página 617 com o título “Diálogos em prol do ambiente ecologicamente equilibrado”, em que a ideia central é a sustentabilidade.
É claro que o livro, sendo escrito hoje, permite que as anotações então feitas numa sequência cronológica tenham sido agrupadas por assuntos que são agora relevantes. Isso foi realmente bem feito no livro e não invalida a ideia de que essas questões já eram discutidas, mesmo que talvez não o tivessem sido de maneira tão organizada.
Questões pessoais também foram colocadas no livro. A tristeza de perder a companheira de toda a vida, Lucia, é comovente e nos faz pensar sobre como nossas relações pessoais,
nossos amores e paixões, são importantes na vida. PNN é tão corajoso que registrou numa parte do livro sua visão religiosa, algo nem sempre visto com muita paciência por cientistas e dessa forma se coloca de modo desprotegido sob o julgamento de leitores nem sempre amigáveis no que se refere ao assunto. Com isso, é possível ver o intelectual PNN de forma mais completa e traz ao livro uma visão mais ampla do que somente os lados científico e político.
Com suas 880 páginas, o livro de PNN é tão rico que cada um que o ler poderá escolher pontos de vista diferentes e apreciar a evolução do ambientalismo no Brasil em períodos diferentes. Portanto, não há necessidade de seguir uma ordem. O leitor pode ir direto ao assunto que achar mais interessante. A principal riqueza da obra está no fato de que PNN participou das principais decisões sobre políticas ambientais em geral, sobre problemas no mar, sobre energia renovável, como preservar os principais biomas brasileiros, parques nacionais e vários outros.
O conjunto formado pelo livro mostra a extrema importância desse tipo de anotações autobiográficas. Elas devem ser amplamente divulgadas para que os que não viveram aquela época possam compreender o que ocorreu. Consequentemente, jovens intelectuais poderão obter inspiração e aprender como se pode mudar a direção de um país. No caso de PNN, o sucesso é óbvio e mostra que há heróis brasileiros que não são somente aqueles que vemos no esporte nacional.
Pessoas como PNN e vários outros brasileiros de quilate similar são homens e mulheres de coragem e como tal devem publicar suas biografias e deixar suas opiniões sobre a história, usando pontos de vista próprios. Deveriam explicar como suas traições levaram as coisas a melhorar para as pessoas, de forma que, no futuro, isso venha a iluminar o caminho dos mais jovens.
Tomara que cientistas brasileiros de todas as áreas do conhecimento façam o mesmo. As gerações de cientistas por vir certamente se beneficiarão muito desse exemplo inspirado, pois talvez vejam que muitas vezes vale a pena “trair” a cultura, em vez de inutilizá-la, em benefício de um futuro melhor.
Marcos Buckeridge é professor do Instituto de Biociências da USP e diretor científico do Laboratório Nacional de Ciência e Tecnologia do Bioetanol (CTBE)
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