Na manhã de 13 de dezembro passado, enquanto as pessoas se preparavam para as festas de fim ano, dirigentes do Departamento de Energia dos Estados Unidos, na capital Washington, divulgavam em uma conferência de imprensa o que definiram, talvez com uma ponta de exagero, como “um dos feitos científicos mais impressionantes do século XXI”. Cerca de uma semana antes, em 5 de dezembro, um experimento realizado no Laboratório Nacional Lawrence Livermore (LLNL), na Califórnia, havia conseguido, pela primeira vez, produzir mais energia do que tinha consumido em uma reação de fusão nuclear, a mesma que faz o Sol brilhar e é a base das armas termonucleares, as popularmente denominadas bombas de hidrogênio. Os físicos dão o nome de ignição por fusão quando essa situação, a de o ganho de energia ser maior do que o gasto, é alcançada.
Até então, todas as tentativas de produzir fusão nuclear de forma mais eficiente esbarravam no mesmo grande problema, independentemente do método escolhido para perseguir tal objetivo: a energia gasta para produzir a reação era maior do que a produzida no processo. Essa limitação era, e ainda é, o grande calcanhar de aquiles da fusão nuclear como uma forma alternativa de garantir energia limpa para a humanidade.
– Cerca de 90 reatores de fusão nuclear funcionam no mundo
É verdade que os números do experimento na Califórnia são modestos em termos da quantidade de energia gerada e foram produzidos em condições especialíssimas, que não podem ser replicadas em nenhum outro lugar do mundo. A ignição por fusão nuclear foi obtida na National Ignition Facility (NIF), um dos laboratórios do LLNL, que ficou pronto no início da década passada e custou US$ 3,5 bilhões (por volta de R$ 17 bilhões). Trata-se da maior e mais potente instalação do mundo capaz de gerar raios laser. Desde 2012, os pesquisadores do NIF diziam que iriam obter a tal ignição por fusão, mas apenas no final do ano passado entregaram o prometido.
A fusão nuclear nas dependências do NIF foi obtida com o emprego de um conjunto de 192 feixes de laser. Toda essa luz foi concentrada e direcionada para o interior de um cilindro metálico onde uma cápsula plástica do tamanho de uma pequena ervilha continha 150 microgramas de dois isótopos (variedades) do átomo de hidrogênio, o elemento químico mais abundante do Universo: o deutério, que tem um próton e um nêutron em seu núcleo, e o trítio, com um próton e dois nêutrons. O aquecimento súbito do cilindro causou a emissão de um espectro de luz (radiação do corpo negro), que elevou de maneira uniforme a temperatura da superfície da cápsula a 100 milhões graus Celsius (°C), cerca de 10 vezes mais do que as estrelas alcançam na fusão. Tamanho calor fez a cápsula explodir e gerou uma onda de choque que comprimiu a mistura de deutério e trítio e ocasionou a fusão nuclear.
O experimento produziu 3,15 megajoules (MJ) de energia, 50% mais do que os lasers depositaram no cilindro. Tudo isso ocorreu em bilionésimos de segundo, tempo total de duração do experimento. “A quantidade de energia gerada é suficiente para ferver algo em torno de 10 litros de água”, compara Gustavo Canal, do Instituto de Física da Universidade de São Paulo (IF-USP), especialista em fusão nuclear. “A importância desse experimento não foi mostrar que vamos usar reatores de laser para promover a fusão nuclear em grande escala. Essa é uma forma muito cara e ineficiente de estimular essa reação. Mas, sim, que é possível obter em laboratório a ignição por fusão. Foi uma prova de conceito.”
As estrelas usam a fusão nuclear para gerar sua própria energia de forma quase inesgotável. Essa reação, que ocorre sob condições extremas de temperatura e pressão, promove a união dos núcleos do deutério e do trítio. Ao se fundirem, eles formam um elemento mais pesado, o hélio, também denominado partícula alfa, e liberam energia no final do processo. O núcleo do hélio tem dois prótons e dois nêutrons. Um nêutron, que escapou da fusão do deutério com o trítio, é liberado para o ambiente no final da reação (ver quadro).
Há mais de 70 anos, a humanidade tenta dominar esse processo para fins pacíficos, ou seja, para gerar energia sem poluir o ambiente ou avançar sobre os recursos naturais do planeta. A fusão não emite, por exemplo, gases de efeito estufa e, diferentemente da fissão nuclear promovida nas usinas atômicas, como nas de Angra dos Reis, gera uma quantidade pequena e passageira de radioatividade. “Na Terra, temos fontes quase infinitas e renováveis de deutério, que pode ser encontrado na água de grandes lagos e nos oceanos. Já o trítio pode ser gerado pela reação nuclear do nêutron com o lítio”, diz José Helder Facundo Severo, coordenador do Laboratório de Física de Plasmas do IF-USP. “Mas, apesar dos avanços, precisamos ainda de décadas de pesquisa para talvez um dia transformar a fusão nuclear em uma fonte viável de energia para a sociedade.”
Antes de Severo, o responsável pelo Laboratório de Física de Plasmas da USP era Ricardo Galvão, ex-diretor do Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (Inpe) que foi nomeado em janeiro presidente do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq) (ver reportagem). O Brasil é o único país do hemisfério Sul que tem tokamaks, máquinas que podem promover a fusão nuclear por meio do confinamento magnético de um plasma de deutério e trítio. A maior delas, embora pequena perto de projetos no exterior, fica no Laboratório de Física de Plasmas do IF-USP.
Para objetivos bélicos, cujo propósito é ter armas eficazes, a fusão nuclear, mesmo sem controle, é produzida desde a década de 1950, quando surgiram as primeiras bombas de hidrogênio, milhares de vezes mais potentes do que a bomba atômica convencional, baseada na fissão (quebra) do núcleo atômico. Não é coincidência que o estágio de ignição por fusão tenha sido obtido em um complexo de pesquisa militar. Físicos independentes, não ligados ao NIF, destacam que o ganho de energia com a fusão nuclear obtido no experimento da Califórnia se deu em condições extremamente particulares, que dificilmente servirão de base para empreendimentos civis e não podem ser reproduzidas em outras instalações.
Para se ter ideia dessas dificuldades e limitações, basta mencionar que o NIF precisa funcionar por oito horas ininterruptas para ser capaz de levar a cabo um experimento como o divulgado em dezembro de 2022. Em outras palavras, com sua eficiência atual, se pudesse funcionar por 24 horas seguidas, o NIF produziria energia suficiente para ferver, no máximo, uns 30 litros de água.
O físico Mark Herrmann, diretor do programa de física e desenho de armamentos do NIF, admitiu, em entrevista coletiva no final de 2022, que o domínio da fusão nuclear para geração comercial de energia é um objetivo ainda longínquo. “O NIF não foi desenhado para ser eficiente”, afirmou Herrmann. “Foi desenhado para ser o maior laser que poderíamos construir para nos fornecer as informações de que precisamos para o programa de pesquisa do nosso arsenal nuclear.”
Como há restrições a testes com bombas baseadas na fusão nuclear, as pesquisas militares nessa área da física acabam sendo essenciais para o aprimoramento e manutenção dos estoques desse tipo de armamento. Quando ainda trabalhava na Universidade de Princeton, em 2016, Gustavo Canal foi convidado a dar uma palestra no NIF. Pediram para ele levar sua apresentação em um pen drive. “Não pode entrar com computador ali”, relembra o físico da USP. “Fui escoltado até para ir ao banheiro.”
Uma crítica que alguns pesquisadores fazem ao experimento do NIF é o raciocínio usado para dizer que houve maior geração do que gasto de energia. A quantidade de energia que o conjunto de lasers aplicou sobre a cápsula com deutério e trítio foi de 2,05 MJ e a fusão de seus núcleos produziu 3,15 MJ.
Mas, para fazer o conjunto de 192 feixes de laser funcionar, foram gastos 300 MJ, quase 100 vezes mais do que a reação de fusão em si proporcionou. As instalações do NIF ocupam uma área equivalente a três campos de futebol americano. Os lasers percorrem todo esse espaço e passam por uma série de processos, como amplificação e concentração, antes de chegar à forma final com que atingem a amostra de deutério e trítio.
“As pessoas falam que essa reação de fusão no NIF produziu pela primeira vez mais energia do que entrou nela. Mas isso realmente depende de como se faz a contabilidade”, pondera o físico Adam E. Cohen, da Universidade Harvard, em entrevista ao periódico The Harvard Gazette. “É um pouco como passar água de mão em mão. A cada passo do caminho, perde-se um pouco de água. Nesse caso, houve mais energia liberada pela reação de fusão do que foi aportada pelos fótons de luz que comprimiram e aqueceram a cápsula [com deutério e trítio]. Mas, se levarmos em consideração a energia elétrica usada para fazer os lasers produzirem essa luz, houve um gasto muito maior de energia do que o liberado pela reação.”
Para ocorrer a fusão nuclear, os núcleos atômicos de deutério e de trítio precisam vencer um empecilho natural que os impede de se chocarem e se fundirem: a força eletrostática. Também conhecida como lei de Coulomb, essa força faz com que partículas eletricamente carregadas, como prótons (positivos) e elétrons (negativos), sejam atraídas por congêneres de carga oposta e repelidas pelas de carga idêntica. Portanto, em condições normais, um núcleo de deutério, que tem um próton e um nêutron, vai ser repelido por um núcleo de trítio, com um próton e dois nêutrons.
Mas, se forem fortemente comprimidos um contra o outro, esses dois núcleos podem atingir um ponto em que, de tão próximos, a força eletrostática repulsiva será sobrepujada pela força nuclear forte. Essa é a força que faz com que nêutrons e prótons fiquem alojados no interior do núcleo atômico. Quando esse grau exacerbado de vizinhança ocorre, os dois núcleos mais leves, do deutério e do trítio, fundem-se e geram um núcleo mais pesado, o do hélio (com dois prótons e dois nêutrons).
As estrelas fazem esse processo de modo espontâneo. O efeito de seu campo gravitacional é tão descomunal que, naturalmente, promove a compressão extrema dos núcleos desses dois isótopos de hidrogênio, criando condições ideais para que ocorra a fusão nuclear. “Em laboratório, a forma de comprimirmos os núcleos atômicos é promover seu confinamento, por meio da aplicação de grandes campos magnéticos, como nos tokamaks, ou pelo uso de lasers potentes, como no caso do NIF”, explica Canal. Nos reatores de fusão, a força de confinamento, que empurra os núcleos atômicos uns contra os outros, é menor do que o efeito da gravidade do Sol nos isótopos de hidrogênio. Por isso, é preciso aquecer o plasma no interior dos tokamaks a temperaturas 10 vezes maiores do que ocorre a fusão nas estrelas. A maior temperatura nos reatores tenta compensar a menor compressão proporcionada pelos campos magnéticos em relação ao efeito da gravidade na massa das estrelas.
Quase toda a pesquisa na área de fusão nuclear é feita em tokamaks, de tamanhos variados – desde os pequenos, como o da USP, até os grandes, como o Joint European Torus (JET), instalado no Reino Unido. O JET é atualmente o mais potente tokamak em funcionamento, mas será superado nos próximos anos pelo International Thermonuclear Experimental Reactor (Iter). Esse é o maior projeto internacional de um reator desse tipo, conduzido por sete grandes parceiros (União Europeia, Estados Unidos, China, Índia, Japão, Rússia e Coreia do Sul).
Em construção desde 2010 na cidade de Cadarache, no sul da França, o Iter tem como meta provar a viabilidade econômico-científica da produção de energia a partir da fusão nuclear. Seu objetivo é gerar 500 megawatts (MW), 10 vezes mais energia do que gastará para funcionar. Seu custo total é estimado em aproximadamente € 20 bilhões (R$ 110 bilhões), cerca de três vezes o valor de seu orçamento inicial, e deverá começar a funcionar em 2025, se não houver atrasos.
Apesar de, em certa medida, serem concorrentes das pesquisas feitas no NIF, os dirigentes do Iter aplaudiram o resultado divulgado em dezembro passado pelos colegas norte-americanos. “Quando as gerações futuras olharem para a evolução da pesquisa em fusão nuclear, acredito que [esse experimento] será reconhecido como um marco histórico”, disse o engenheiro eletrônico italiano Pietro Barabaschi, diretor-geral do Iter, em comunidado à imprensa.
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