Diplomata de carreira, ensaísta e escritor, Sergio Paulo Rouanet foi um defensor da tradição crítica do Iluminismo, do universalismo e, especialmente, dos ideais progressistas da Revolução Francesa. Também tradutor, verteu para o português obras importantes do filósofo e crítico literário alemão Walter Benjamin (1892-1940) e foi um dos pioneiros ao divulgar no Brasil as reflexões sobre cultura e política formuladas pelos pensadores da Escola de Frankfurt. Olgária Matos, professora do Departamento de Filosofia da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo (FFLCH-USP), ressalta a importância precursora da tese de doutorado em ciência política de Rouanet, defendida na USP em 1980, que analisa a relação entre as reflexões frankfurtianas e a teoria psicanalítica de Sigmund Freud (1856-1939). “Havia pouquíssimas produções sobre o assunto no Brasil e Rouanet nos deu uma visão de conjunto da teoria crítica, particularmente da relação do pensamento de Benjamin com a psicanálise”, lembra Matos. O diplomata morreu aos 88 anos, em 3 de julho, em consequência da doença de Parkinson.
Na década de 1970, Rouanet dividiu com sua segunda esposa, a socióloga teuto-brasileira Barbara Freitag, a tarefa de traduzir e divulgar no cenário acadêmico brasileiro o pensamento de alguns dos frankfurtianos, com especial atenção voltada à obra de Jürgen Habermas. O alemão propõe um resgate do potencial emancipatório da razão, uma posição iluminista. Habermas, hoje com 93 anos, divergia da crítica da racionalidade empreendida pela primeira geração da Escola de Frankfurt, para a qual a razão teria se tornado meramente um instrumento de controle e manipulação dos subalternos pelas estruturas de poder do capitalismo. O diplomata brasileiro seguiu essa pista para empreender sua própria defesa do Iluminismo.
“Rouanet distingue razão instrumental de razão crítica”, explica Matos. “A razão instrumental se manifesta na tecnologia e na ciência, que podem se transformar em instrumentos de dominação, uma vez que se autonomizam do controle humano e se desenvolvem por seu próprio crescimento, não sabem para onde vão, como o anjo da história – a alegoria criada por Benjamim em ‘Sobre o conceito de história’ –, que é empurrado, de costas, às cegas, para o futuro, enquanto a razão crítica é a capacidade de questionar as possibilidades e os limites da própria razão e os da racionalidade.” O ensaísta defendia não apenas o cultivo da razão crítica, mas também direcionava essa crítica à própria tradição das Luzes do século XVIII para fazer surgir disso um novo Iluminismo.
A defesa do Iluminismo não foi, portanto, mera reafirmação de velhas ideias. “Meu pai fazia uma distinção importante entre a Ilustração, um movimento histórico, localizado no século XVIII, e o Iluminismo, um movimento que não está limitado a uma época e se manifestou em diferentes lugares”, esclarece Luiz Paulo Rouanet, professor de filosofia da Universidade Federal de São João del-Rei (UFSJ), um dos três filhos do diplomata. Em linhas gerais, enquanto se podia objetar que a ilustração francesa se via como universal quando carregava em seu âmago o eurocentrismo que desembocou no colonialismo e no imperialismo, o Iluminismo é compreendido por Rouanet como uma tendência intelectual cuja característica central é o “espírito da crítica permanente”. Seria, por isso, incontornável. Ou seja, para ele, o Iluminismo deve ser criticado, mas não é possível fazê-lo eficientemente sem invocar a própria razão iluminista. Isso o levou a interpretar a obra do filósofo francês Michel Foucault (1926-1984), um dos mais provocativos críticos da tradição das Luzes, como um exemplo de crítica iluminista ao próprio Iluminismo.
Segundo seu filho, Rouanet era um progressista que se posicionava firmemente à esquerda no espectro político. “Ele se aproximou de lideranças intelectuais históricas da esquerda – admirava muito o francês Jean-Paul Sartre [1905-1980], e Antonio Houaiss [1915-1999] foi seu grande mentor. Nos últimos anos ele adotou uma posição mais moderada, de centro-esquerda, ficando mais crítico ao que considerava os desvios autoritários da esquerda”, conta Luiz Paulo. “Ele trabalhava com a ideia de que ainda é possível defender as posições e os valores progressistas da Revolução Francesa.”
Lei Rouanet
Em paralelo à carreira de diplomata, Rouanet construiu sua trajetória intelectual. Carioca, formou-se em direito, em 1955, pela Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro. Dois anos depois, ingressou na diplomacia brasileira após ter se formado pelo Instituto Rio Branco. De 1959 a 1962, fez parte do corpo diplomático na embaixada brasileira em Washington, nos Estados Unidos. Simultaneamente, aproveitava o período em que servia nos postos diplomáticos do exterior para fazer cursos em programas de pós-graduação. Na capital norte-americana, estudou economia na Universidade George Washington e ciências políticas na Universidade Georgetown. De 1962 a 1965, compôs a delegação brasileira na Organização das Nações Unidas (ONU), em Nova York, onde cursou filosofia na New York School for Social Research.
Posteriormente, foi transferido para a sede da instituição em Genebra, na Suíça. Ficou alguns anos no Itamaraty, no Brasil, até ser nomeado cônsul-geral em Zurique (1976-1982). Também foi embaixador em Copenhague, na Dinamarca (1987-1991), cônsul-geral em Berlim, na Alemanha (1993-1996), e embaixador em Praga (1996-2000), na República Checa.
A vasta experiência na diplomacia está em consonância com as formulações filosóficas tolerantes de Rouanet, marcadas pelo respeito à diversidade e pela busca de um solo comum para o encontro e o diálogo. “Era um defensor da transparência nas relações pessoais e nos debates filosóficos”, avalia Marco Lucchesi, poeta, professor de literatura comparada da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) e membro da Academia Brasileira de Letras (ABL), da qual Rouanet fazia parte desde 1992.
Em 1991, aceitou o convite do então presidente Fernando Collor de Mello (1990-1992) para ser o titular da Secretaria Nacional de Cultura. Sua passagem de quase dois anos pela administração federal foi marcada pela criação da Lei de Incentivo à Cultura, em dezembro de 1991. Desde então, seu sobrenome permanece vinculado a essa legislação criada para facilitar a obtenção e o direcionamento de recursos públicos e privados para projetos culturais e artísticos. Entre os propósitos da chamada Lei Rouanet estava a ampliação do acesso à capacidade de produção cultural e levar os produtos culturais ao público mais amplo possível. Rouanet defendeu, igualmente, uma forma de antielitismo na cultura, ao mesmo tempo que sublinhava a importância da erudição, propondo uma política contrária ao monopólio da cultura erudita pela elite. “Ele desmistificou o lugar da erudição, vista por parte da tradição brasileira como algo inútil e pouco efetivo”, diz Lucchesi.
Há dois anos, o diplomata fundou com sua mulher o Instituto Rouanet, com sede no Rio e filial em Tiradentes, Minas Gerais. O objetivo, segundo o filho, é que o instituto se torne um centro de estudos e de pesquisa sobre a cultura, a educação e a democracia. Rouanet mantinha esperanças de que, um dia, fosse construída uma democracia mundial que revitalizasse a ideia de soberania popular. Tinha a consciência de que remava contra a maré – na introdução ao seu livro mais conhecido, As razões do Iluminismo (1987), escreveu: “A relevância contemporânea de certas ideias pode estar em sua obsolescência, porque elas testemunham contra um presente que as transformou em anacronismos”. Rouanet é também autor de mais de uma dezena de livros e editor de coletâneas de outros autores. Entre suas obras se destacam Razão cativa (1985), um estudo sobre as ilusões da consciência, Mal-estar na modernidade (1993), em que articula uma reformulação do Iluminismo, e, revisitando a psicanálise, Os dez amigos de Freud (2003), pelo qual recebeu o Prêmio Jabuti em 2004.
Além de Luiz Paulo, Sergio Paulo Rouanet deixa os filhos Marcelo, tradutor, e Adriana, produtora cultural e cineasta, a mulher, Barbara, e cinco netos.
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