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Pesquisa na quarentena

“Pensamos que fosse possível voltar às aulas presenciais, mas, com a ômicron, parece que a novela não acabou”

Com a nova alta de casos de Covid-19, o agrônomo Luciano Martins Verdade precisou rever o calendário de coletas de campo previstas para este ano

Viver no sítio em Angatuba foi uma descoberta durante a pandemia

Arquivo pessoal

No final de 2021, conseguimos retomar o trabalho de campo, mas precisamos interromper parte de novo porque duas alunas, de cinco estudantes de pós-graduação do nosso projeto, foram infectadas pela Covid-19 neste mês de janeiro. Esperávamos trabalhar mais intensamente neste ano para compensar as perdas das coletas de campo, mas a realidade parece que está se impondo de uma maneira menos otimista. Com a variante ômicron, a novela não acabou ainda. Aqui na USP [Universidade de São Paulo, campus de Piracicaba] temos visto os casos dispararem.

Na nossa pesquisa, procuramos observar processos e padrões biológicos em paisagens agrícolas, que têm uma diversidade relevante de fauna e flora. Tem coisas interessantíssimas acontecendo nesses locais, apesar do impacto da agricultura, e não há nenhum país no mundo que consiga promover conservação biológica apenas por meio das áreas de preservação. Nosso projeto, um temático da FAPESP, tem duração de cinco anos. Em 2022 entramos no seu último ano, o terceiro de pandemia. O principal prejuízo que tivemos foi o da interrupção da amostragem: nossas coletas ficaram todas quebradas, com o vai e volta das necessárias medidas restritivas.

Como tínhamos estabelecido com alguma margem de segurança mais campo do que era preciso, estamos minimizando essas parcelas perdidas com ajustes estatísticos. No trabalho de campo, conseguimos finalizar o levantamento da vegetação nativa antes da pandemia, mas há perdas no levantamento bioacústico de anfíbios e aves [gravação dos sons dos animais], no levantamento de mamíferos de pequeno porte, como roedores e marsupiais, por meio de capturas, e no levantamento de mamíferos de médio a grande porte por meio de vestígios e armadilhas fotográficas. Nossos trabalhos de campo são em uma área silvicultural dominada por plantações de eucaliptos na cidade de Angatuba e uma paisagem agrícola dominada por plantações de cana-de-açúcar em Lençóis Paulistas (SP).

Boa parte dos dados se baseia na coleta de fezes de carnívoros como a onça-parda e o lobo-guará, não só para estudar a sua dieta e seus parasitas, mas para detectar e individualizar essas espécies por meio de marcadores moleculares. Eu e mais um pesquisador fomos os primeiros a retornar ao campo, na metade de 2021, porque só nós fazemos uma técnica que desenvolvemos de coletas de campo com motocicleta. Isso foi possível porque trabalhamos com o devido distanciamento físico.

Mas tivemos que desistir de alguns trabalhos. O principal deles era sobre caça. Faríamos entrevistas presenciais com trabalhadores do campo que moram em áreas de pastagens e fazendas, mas não conseguimos manter a frequência em campo para isso. A cultura da caça em paisagens agrícolas é muito comum e, ao mesmo tempo, algo que conhecemos pouco. São pessoas que conhecem o ambiente, as plantas e os animais. Outro estudo sobre a contaminação da fauna e da flora por meio do levantamento de metais pesados provavelmente precisará ser cancelado em razão do aumento do custo das análises pelo valor do dólar.

Por sorte, em outro trabalho que envolvia entrevistas, conseguimos finalizar cerca de 200 delas antes da pandemia, e com isso produzimos um artigo durante a quarentena que está no prelo e deve ser publicado em breve. Nele, avaliamos quantos moradores das áreas de plantações precisariam ser ouvidos para estimarmos cerca de 90% das espécies de mamíferos que vivem naquele local. O conhecimento deles não substitui o trabalho dos biólogos, mas a ideia central é: não vá para campo sem ouvir os habitantes locais.

Luciano Verdade / USPPegadas de lobo-guará, com a sede da fazenda Três Lagoas ao fundoLuciano Verdade / USP

Temos olhado também para uma possível evolução rápida de pequenos roedores em plantações de eucalipto, hipótese que ainda estamos testando com os dados que conseguimos coletar. Eles estão se reproduzindo e comendo ali. Esse tipo de plantação se tornou seu hábitat, não se trata de um deserto verde. Isso implicaria mudanças na forma como esse ambiente deve ser manejado.

Para além da coleta inconstante, penso que houve perda ainda maior nas aulas remotas. Dou aula de ecologia de populações tanto na graduação quanto na pós-graduação e não costumo usar slides: fazemos uma navegação intelectual. Não gosto da ideia de aula expositiva. Para mim, o melhor jeito de abordar ecologia é pela perspectiva de percepção e discussão de problemas. Mas senti que as aulas a distância quebram muito o raciocínio e a reflexão compartilhada, que requerem um tipo de envolvimento difícil de recriar on-line. Foi uma experiência nova para mim e tive bastante dificuldade. Vou me aposentar no começo de 2023 e torço para termos aulas presenciais neste meu último ano de trabalho na universidade.

Eu morava perto do campus. Mas, quando vi que a quarentena seria longa, fui para meu sítio em Angatuba, onde fiquei por um ano e meio, bastante isolado. Meus filhos moram em Campinas e, como me separei um pouco antes da pandemia, me dei conta de que foi a primeira vez que fiquei, de fato, sozinho. Foi um desafio e ao mesmo tempo uma bênção… O sítio é um lugar muito gostoso, mas é claro que o contato faz falta.

Aproveitei esse tempo para me dedicar a algo que gosto muito, a escrita. Nesse período da pandemia fechei contrato com uma editora para publicar meu sexto livro de poesia, que se chama Arquipélago (veja poema abaixo). Estou na revisão final e a previsão é de que saia neste ano, com lançamento no Brasil e em Portugal. Fiquei bem feliz. Também estou trabalhando em um romance, que já está estruturado, mas só poderei pegá-lo para valer depois da aposentadoria. Esse é um dos motivos por que quero me aposentar: poder me dedicar mais à literatura, à arte.

Além dos livros, o piano e o saxofone também foram meus companheiros de quarentena, sempre me dediquei a eles. Tudo isso foi fundamental para ficar bem nesse período. Acho que há uma ideia errada da distância entre as artes e as ciências. Tenho a impressão de que o meio acadêmico está se tornando excessivamente tecnicista e carreirista. Esse tempo que passei no sítio me trouxe outro olhar para a sazonalidade do frio, do calor e especialmente do tempo. Nessas paisagens que estudamos temos o tempo mudando de forma constante. Por isso, o tempo me encanta tanto do ponto de vista científico quanto artístico. São formas distintas e importantes de modelar e compreender o mundo.

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