O grupo liderado pela pesquisadora Silvia Giuliatti Winter na Universidade Estadual Paulista (Unesp) em Guaratinguetá vem explorando em simulações computacionais cada vez mais detalhadas a possibilidade de detritos – de grãos de poeira a pedregulhos – se acumularem em certas regiões do espaço nas vizinhanças de Plutão e de suas luas por onde deve passar a sonda espacial New Horizons, projetada para estudar os confins do Sistema Solar. O trabalho dos físicos brasileiros foi o primeiro a chamar a atenção para o risco que a New Horizons, lançada em 2006 pela agência espacial norte-americana (Nasa), pode correr ao atravessar uma dessas regiões em 2015. É que a sonda viaja a 14 quilômetros por segundo e seus instrumentos podem ser danificados ou destruídos até mesmo pela colisão com um grão de areia.
“O trabalho dos brasileiros tem sido extremamente relevante”, afirma o astrônomo Harold Weaver, do Laboratório de Física Aplicada da Universidade Johns Hopkins, nos Estados Unidos, um dos líderes do projeto da New Horizons. “Temos seguido de perto as publicações deles.”
Desde 2010, o grupo da Unesp vem publicando suas conclusões em uma série de artigos na revista Monthly Notices of the Royal Astronomical Society (MNRAS). Os resultados mais recentes, também submetidos à MNRAS, foram apresentados em julho na Conferência Plutão, nos Estados Unidos, organizada pela equipe da New Horizons.
Ana Paula CamposTudo parecia sob controle em janeiro de 2006, quando a Nasa lançou ao espaço essa sonda rumo a sua jornada de nove anos com destino a Plutão, reclassificado naquele ano como planeta-anão. Em janeiro de 2015, a sonda deve acionar seus oito instrumentos científicos, entre eles um detector de poeira interplanetária e um telescópio ultrassensível, próprio para a escuridão que reina nessa região do espaço, 40 vezes mais distante do Sol do que aquela em que se encontra a Terra. Em 14 de julho de 2015, a New Horizons fará sua aproximação máxima de Plutão. Passará entre o planeta-anão e a sua maior lua, Caronte, registrando imagens com resolução de até 100 metros das superfícies desconhecidas de ambos os corpos celestes. Ao menos, esse era o plano original.
Órbitas estáveis
As coisas começaram a se complicar quando a vice-chefe científica da missão New Horizons, a astrônoma Lesley Young, do Instituto de Pesquisa Southwest, no Colorado, soube do trabalho da equipe da Unesp, apresentado em 2009 na reunião anual da União Astronômica Internacional, realizada no Rio de Janeiro. O estudo mostrava pela primeira vez que, entre Plutão e Caronte, existe o que os especialistas em dinâmica planetária chamam de regiões com órbitas estáveis. Essas são regiões do espaço onde corpos celestes menores podem permanecer orbitando corpos maiores indefinidamente. Regiões estáveis tendem a acumular material, chegando às vezes a abrigar luas e anéis.
E material interplanetário não falta no cinturão de Kuiper, a região do Sistema Solar onde se encontram Plutão e possivelmente milhares de outros planetas-anões, além de outros corpos menores. O cinturão de Kuiper abriga o que sobrou dos primeiros blocos de rocha e gelo formados em torno do Sol bilhões de anos atrás.
Silvia e seus colaboradores na Unesp são especialistas em determinar o movimento de corpos celestes interagindo simultaneamente pela força da gravidade. Eles conseguem prever as trajetórias desses corpos por meio de simulações computacionais que levam semanas para ficar prontas. O par Plutão-Caronte representou um desafio único. A diferença de tamanho entre o planeta-anão e sua maior lua é pequena: o diâmetro de Plutão é de 2.300 quilômetros, e o de Caronte, 1.200 quilômetros. Por terem dimensões próximas, eles se comportam diferentemente de outros pares do Sistema Solar, como a Terra e a Lua.
A busca por regiões estáveis é feita determinando a trajetória de partículas hipotéticas de massa pequena comparada à de Caronte e à de Plutão colocadas em variadas condições iniciais de posição e velocidade. “Ganhamos uma noção de onde estão as regiões estáveis e do volume que ocupam ao observar a órbita dessas partículas”, explica Silvia.
Em novembro de 2011, ela e o pesquisador Othon Winter, seu marido, foram convidados para participar de um evento especial da equipe da New Horizons, em Boulder, no Colorado. Era um workshop dedicado a discutir o risco de a sonda colidir com objetos nas proximidades de Plutão. O cientista-chefe da missão, Alan Stern, pediu então que eles estudassem melhor as regiões estáveis. No primeiro artigo, de 2010, os brasileiros haviam buscado regiões com órbitas estáveis no plano formado pelas órbitas de Plutão e Caronte. No trabalho seguinte, que saiu neste ano, eles analisaram também as órbitas fora desse plano e obtiveram uma ideia melhor de sua forma e localização.
As órbitas estáveis se concentram em algumas faixas próximas de Plutão e outras de Caronte e em uma região entre os dois astros batizada de região veleiro, por ter o formato de um barco à vela, por onde a New Horizons pode passar. Estimativas iniciais sugerem que o risco de colisão não é desprezível, mas falta quantificá-lo.
Luas novas
Além dos estudos teóricos de dinâmica orbital, a preocupação com o que a New Horizons pode encontrar em seu caminho intensificou as observações de Plutão, de Caronte e de suas luas mais afastadas, as pequenas Nix e Hidra, cada uma com 150 quilômetros de diâmetro, descobertas em 2005 com o telescópio espacial Hubble. O astrônomo Mark Showalter, do Instituto Seti, nos Estados Unidos, especialista em trabalhar no limite da resolução de imagens obtidas por sondas espaciais e telescópios, liderou em 2011 uma campanha de observações com o Hubble em busca de anéis em Plutão. As análises das imagens não mostraram sinais de anéis, mas levaram à descoberta de mais duas luas, batizadas este ano: Cérbero e Estige.
A ausência de anéis corrobora o resultado de um estudo publicado pelo grupo de Silvia neste ano na MNRAS. Sua aluna de doutorado Pryscilla dos Santos simulou a formação de anéis em torno de Plutão, que seriam feitos de grãos de rocha e gelo ejetados de Nix e Hidra durante colisões com meteoritos. Elas descobriram que apesar de Plutão e suas luas se encontrarem tão longe do Sol, a pressão de radiação solar seria suficiente para espalhar os grãos, praticamente impedindo a formação de anéis – se existirem, são tão pouco densos que não podem ser vistos. Silvia ressalta, porém, que outros mecanismos não estudados, como a existência de outros satélites naturais ao redor de Plutão, poderiam formar anéis tênues demais para serem vistos com o Hubble, mas não pela New Horizons.
A descoberta de Cérbero foi uma surpresa mais agradável ainda. Essa lua, com diâmetro estimado entre 5 e 15 quilômetros, orbita Plutão em uma das regiões de estabilidade que a equipe da Unesp previu existir para corpos desse tamanho, entre as órbitas de Nix e Hidra. Apresentado em 2011, esse resultado sugeria que mais luas poderiam ser descobertas entre Nix e Hidra. Mas a lua descoberta mais recentemente, a quinta, não se encontra ali. Ela está em uma órbita mais interna, próxima a Caronte. A órbita da pequena Estige, que tem de 4 a 12 quilômetros de diâmetro, ainda é um mistério. Segundo Silvia, há muita incerteza sobre a massa da lua para se calcular seu movimento. Em todo caso, a descoberta de Estige sinaliza problemas para a New Horizons. Colisões de objetos interplanetários com Estige e luas menores ainda não descobertas poderiam espalhar detritos entre Plutão e Caronte.
É possível que nos próximos meses seja preciso rever o plano de mitigação de danos para a New Horizons aprovado em junho. Weaver explica que, após avaliarem toda a informação relevante, ele e seus colegas concluíram que a probabilidade de um impacto capaz de terminar a missão em sua trajetória original é menor que 0,3%. Isso porque a sonda deve passar por uma região instável próxima a Caronte. Se não surgirem novas evidências de perigo, a sonda deverá seguir o caminho estabelecido antes de o risco de colisões ter sido levantado pelo grupo da Unesp. De qualquer forma, a equipe da Nasa tem dois planos de emergência. Um é reorientar a sonda para usar sua antena de comunicação como um escudo contra os detritos. O outro é aproximar a sonda ainda mais de Plutão, fazendo-a passar a 2.200 quilômetros de sua superfície, de modo a usar a atmosfera do planeta-anão como proteção contra as partículas. “A trajetória original foi planejada para otimizar os ganhos científicos e qualquer mudança vai resultar em perdas”, explica Weaver. “Mesmo que haja perdas, a missão revolucionará nosso entendimento de Plutão e do cinturão de Kuiper.”
Projetos
1. Dinâmica de pequenos corpos (nº 2011/08171-3); Modalidade Projeto Temático; Coord. Othon Cabo Winter/Unesp; Investimento R$ 560.886,80 (FAPESP).
2. Dinâmica do sistema binário Plutão-Caronte (nº 2009/18262-6); Modalidade Bolsa de doutorado; Benefic. Pryscilla Pires dos Santos/Unesp; Investimento
R$ 121.831,32 (FAPESP).
Artigos científicos
PIRES DOS SANTOS, P.M. et al. Small particles in Pluto’s environment: effects of the solar radiation pressure. Monthly Notices of the Royal Astronomical Society. v. 430. abr. 2013.
GIULIATTI WINTER, S. M. et al. Stable regions around Pluto. Monthly Notices of the Royal Astronomical Society. v. 430. abr. 2013.