Andrea Lee Smith, professora do Departamento de Estudos Étnicos da Universidade da Califórnia, Riverside, nos Estados Unidos, fez um acordo com a instituição e deixará o emprego em agosto de 2024, mantendo os benefícios da aposentadoria e o título de professora honorária. Sua saída negociada é o ápice de uma longa controvérsia sobre sua identidade étnica. A produção acadêmica de Smith sobre estudos étnicos baseou-se, em boa medida, no fato de ela se autodeclarar descendente de indígenas cherokees. O problema é que não existem evidências factuais dessa herança.
Smith não é registrada entre os quase 300 mil cidadãos da Nação Cherokee, que reúne pessoas com algum ancestral da tribo que habitava o leste do território do país. Mas ela afirma que cresceu ouvindo histórias sobre um possível antepassado nativo e chegou a contratar um genealogista para identificá-lo, sem sucesso. Sua família descende de imigrantes britânicos e escandinavos.
É certo que a herança sem lastro gerou um problema no campo da integridade científica: rendeu a Smith autoridade em questões complexas sobre a causa indígena e lhe conferiu vantagens como pesquisadora que ela provavelmente não teria caso se apresentasse como uma acadêmica branca. Seu livro “Conquista: violência sexual e genocídio dos índios americanos”, publicado em 2005, baseou-se em histórias de estupro e agressão sexual compartilhadas com ela por mulheres nativas. Em uma reportagem na revista dominical do jornal The New York Times, a antropóloga J. Kēhaulani Kauanu, pesquisadora da Universidade Wesleyan, em Connecticut, e ex-colega de Smith, afirmou que as mulheres entrevistadas foram enganadas e disse ter certeza de que pelo menos algumas delas teriam agido de forma diferente se soubessem que estavam conversando com uma pesquisadora branca.
Para Kauanu, que é descendente de uma etnia nativa do Havaí e foi uma das fundadoras da Associação de Estudos sobre Nativos Americanos e Indígenas, Smith não foi desonesta apenas em círculo social, mas também com seu objeto de pesquisa. “A falta de clareza e de consistência na sua autoapresentação aumenta a vulnerabilidade das comunidades que ela pretende representar, incluindo estudantes e ativistas orientados por ela que citam e se envolvem no seu trabalho”, afirmou uma carta aberta sobre Smith assinada por 12 acadêmicas nativas americanas publicada no jornal Indian Country Today, em 2015.
A controvérsia começou em 2008, quando ela trabalhava na Universidade de Michigan e teve rejeitado seu pedido para se tornar professora efetiva, status que garante estabilidade no emprego. O veto mobilizou acadêmicos de estudos étnicos e de gênero em seu favor. Na época, a ativista e professora de filosofia Angela Davis, que fora orientadora de Smith, descreveu-a como “uma das maiores intelectuais feministas indígenas do nosso tempo”. Em meio a esse debate, Steve Russell, acadêmico e escritor cherokee, revelou em público algo que alguns pesquisadores já desconfiavam: a identidade da pesquisadora era duvidosa. Ele escreveu uma coluna no Indian Country Today, intitulada “Quando a fraude étnica é importante?”, informando que Smith não estava registrada como membro da Nação Cherokee. Smith, hoje com 57 anos, só se pronunciou sobre a acusação em 2015, em um blog. Criticou o “policiamento violento da identidade”. “Sempre fui e sempre serei cherokee”, escreveu ela. “Eu sempre me identifiquei com base no que eu sabia ser a verdade.”
O acordo celebrado entre ela e a universidade interrompe uma investigação sobre o caso, depois que 13 membros do corpo docente da instituição apresentaram formalmente em agosto de 2022 uma denúncia contra Smith por fraude. De acordo com a reportagem do The New York Times, um dos reclamantes, Gerald Clarke, seu colega no Departamento de Estudos Étnicos, disse que se sentiu obrigado a levantar a questão devido aos prejuízos que falsas alegações de identidade causam a comunidades tribais. “As identidades são uma das últimas coisas preciosas que temos e sobre as quais temos controle”, disse Clarke, descendente de indígenas cahuilla.
De acordo com John D. Warren, porta-voz da universidade, a decisão tomada em conjunto evita um processo que pode ser desgastante. “As investigações de um membro efetivo do corpo docente por suposta má conduta têm potencial para litígios e apelações e podem se desdobrar ao longo dos anos”, afirmou, em nota. A universidade aceitou até mesmo pagar os US$ 5 mil de custas judiciais.
O acordo também estabelece a forma como Smith deverá abordar sua reivindicada ascendência cherokee: ela não poderá mais estabelecer conexões entre uma suposta identidade indígena e os trabalhos que realizou na universidade, mas poderá seguir afirmando sua opinião a respeito da herança indígena se for indagada sobre o assunto.
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