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Chana Malogolowkin

Chana Malogolowkin: Pesquisadora itinerante

Geneticista radicada em Tel-Aviv conta sua trajetória por países como Brasil, Estados Unidos e Israel

MIGUEL BOYAYANChana Malogolowkin: sucesso na carreira internacionalMIGUEL BOYAYAN

Quando a jovem estudante Chana Malogolowkin ingressou na então Universidade do Brasil, no Rio de Janeiro, biologia era um curso que se misturava à geologia, mineralogia e paleontologia, áreas agrupadas sob o nome genérico de História Natural. Era o começo da década de 40, época em que a genética de drosófilas (a mosca de fruta, organismo-modelo para o estudo nessa área), vivia uma ebulição por conta da presença no Brasil do pesquisador Theodosius Dobzhansky (1900-1975).

Russo radicado nos Estados Unidos, Dobzhansky era a maior autoridade em genética e evolução. Em 1943, ele passou seis meses dando conferências e orientando cursos no Brasil e voltou em 1948 para ficar mais um ano. Nesse período, ajudou a formar toda uma geração de geneticistas brasileiros, como Crodowaldo Pavan, Antonio Brito da Cunha, Newton Freire-Maia e Oswaldo Frota-Pessoa, entre outros.

Chana Malogolowkin, nascida na mineira Maria da Fé e criada no Rio, é parte dessa geração. Depois de terminar o curso de História Natural, juntou-se a outros pesquisadores no Departamento de Biologia Geral da Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras da Universidade de São Paulo (USP) para estudar no grupo de Dobzhansky. Em 1951 tornou-se uma das primeiras mulheres a conseguir o título de doutora, no Rio. Mudou-se para os Estados Unidos e, a partir dai, consolidou sua carreira acadêmica no exterior. Primeiro na Universidade Colúmbia, em Nova York, ao herdar a cadeira de Dobzhansky quando ele se aposentou. Depois em Israel, para onde foi quando se casou. Lá, foi fundamental na montagem do Departamento de Genética de Drosófilas e na criação do Instituto da Evolução, na Universidade de Haifa.

Chana orgulha-se de sua carreira apenas pelo que fez em ciência e não tem nenhum cacoete feminista – embora relate pelo menos um caso em foi vítima de machismo. Viúva, com uma filha e dois netos, mora em Tel-Aviv. De origem judia, mas declaradamente atéia, às vezes, é cobrada pelos vizinhos religiosos – em vez de guardar o sábado, ela sai de carro pela cidade. Aos 78 anos, a pesquisadora falou à Pesquisa FAPESP durante rara visita ao Brasil.

Gostaria que a senhora começasse falando de seu título de doutora, um dos primeiros conseguidos por uma pesquisadora no Rio de Janeiro .
Eu tinha terminado meu curso em História Natural na Faculdade Nacional de Filosofia da então Universidade do Brasil, atual Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), em 1946. Em 1948, fui para a USP trabalhar com o professor Theodosius Dobzhansky. Ele era o grande especialista mundial em genética e evolução e veio ao Brasil em 1943, deu umas conferências e voltou depois, com auxílio da Fundação Rockefeller, para formar um grupo de brasileiros que trabalhasse nessa área. Foi o primeiro grupo de geneticistas de drosófilas que apareceu no Brasil. Só depois da drosófila é que alguns passaram para genética humana. Depois a coisa foi se desenvolvendo de forma diferente. Uns foram para genética médica, outros para genética animal e vegetal.

Quem fazia parte desse grupo?
Em São Paulo havia o André Dreyfus, catedrático do Departamento de Biologia Geral. Foi ele quem acertou a vinda para o Brasil do Dobzhansky com a Fundação Rockefeller. Crodowaldo Pavan e Antônio Brito da Cunha eram os assistentes de Dreyfus. Com a vinda do Dobzhansky, outros pesquisadores e estudantes se uniram em torno dele: eu vim do Rio, o Antônio Cordeiro, do Sul, o Newton Freire-Maia, de Minas. E havia outros mais. O Oswaldo Frota-Pessoa, por exemplo, que depois veio para a USP, era ligado ao grupo, mas ficou no Rio. Nós trabalhamos com o Dobzhansky durante um ano e, quando terminamos as pesquisas, ele quis que eu fosse com ele para a Universidade Colúmbia, em Nova York. Nos anos seguintes, era comum ter pesquisador brasileiro trabalhando no laboratório dele, em Colúmbia.

O que a levou ao doutorado?
Quando o Dobzhansky quis me levar para os Estados Unidos, ele pediu à Fundação Rockefeller para me dar uma bolsa. Ocorre que a fundação se informou a meu respeito e descobriu que eu não tinha nem tempo integral na Faculdade de Filosofia e tampouco doutorado. Eles só davam bolsa para quem tinha as duas coisas. Então, o Dobzhansky começou a me pressionar para eu fazer doutorado. A fundação resolveu também me ajudar e deixou de lado o tempo integral. Exigiu só o doutorado.

Qual foi o tema da sua tese e em que área?
Foi sobre a evolução da genitália no grupo Drosophila (Sophophora) , em História Natural. A História Trópica englobava a parte geológica. Mais tarde é que separaram geologia e biologia. E com isso, então, eu fiz o doutorado, em 1950/51. Terminei e fui para a Universidade Colúmbia. Quando Dobzhansky deixou a universidade porque tinha se aposentado e foi para a Universidade Rockefeller, ele deixou a cadeira vaga. Entre três candidatos, fui a escolhida. Trabalhei lá até 1964.

Qual a pesquisa de maior repercussão conduzida pela senhora?
O que provocou muita curiosidade foi uma descoberta que fiz sobre fêmeas de drosófilas que não davam origem a machos. Nesse período eu vinha todos os anos para o Brasil e esse trabalho acabou muito badalado aqui e lá. Numa das minhas vindas, fui convidada pelo Museu Nacional para dar palestra sobre o assunto. Uma das cientistas que trabalhavam no museu, da qual não lembro o nome, muito feminista, ouviu a minha exposição e, no final, disse entusiasmada: “Ah, isso é formidável! Devia acontecer isso com a espécie humana”.

Como foi essa descoberta?
Verifiquei que estavam nascendo apenas fêmeas de drosófilas em um dos meios de cultura que eu estava usando. Achei isso muito estranho e notei que tinha óvulos que ficavam escuros e não eclodiam. Eu sabia que devia haver qualquer coisa no citoplasma daquele núcleo que matava os machos. Então procurei um colega geneticista da Universidade Yale. Ele dominava uma técnica de injetar substâncias em drosófila, algo muito difícil dado o tamanho do inseto. Imagine só: fazer uma injeção no abdome de drosófila! Era uma coisa muito séria e difícil. Nós fazíamos um homogeneizado desses ovos,víamos o que acontecia no soro fisiológico e injetávamos no abdome das moscas. E elas começavam a não dar machos. Descobrimos que isso acontecia por causa de uma espiroqueta, uma bactéria espiralada, que impedia a formação de machos. Essa história deu o que falar porque abria a possibilidade de se evitar pestes, isto é, se poderia soltar fêmeas estéreis em zonas contaminadas por esses insetos.

Nos Estados Unidos a senhora trabalhava só com genética?
Sim, apenas com genética. Em 1964 me casei e fui pra Israel a convite da Universidade Hebraica de Jerusalém, onde trabalhei durante um ano. Mais tarde, acabei na Universidade de Haifa. E lá tive um auxílio muito grande da Fundação Rockefeller. Recebi US$ 500 milhões para criar o laboratório de genética de drosófilas na Universidade de Haifa.

Seu marido também era pesquisador?
Não, era advogado e já morava em Israel. Eu estava para ir para a Universidade da Carolina do Norte, nos Estados Unidos. Mas entre ir para lá e casar e ir com meu marido para Israel, preferi Israel. Isso foi em 1964 e eu tinha 39 anos.

Então, Israel era um bebê ainda, já que o Estado israelense nasceu em 1948 .
Sim, não passava de uma aldeia.

Quem financia o ensino superior hoje, em Israel?
As universidades têm financiamento do estado, mas não é uma verba para ajudar em toda pesquisa. Em Israel, pesquisa é feita com auxílio mais de verbas exteriores. São bolsas e auxílios de fundações como a Rockefeller e a Guggenheim, por exemplo.

A senhora fez algum outro trabalho com repercussão semelhante ao das drosófilas que só davam fêmeas?
Não tão bombástica como essa. Em Israel existia muito interesse por drosófilas. O clima é muito quente, mas não do mesmo tipo que no Brasil. Em certas localidades existia um grupo de moscas, em outras não. Então comecei a verificar e encontrei muitas drosófilas que nunca tinham sido estudadas.

Como foi mudar para Israel?
Foi muito difícil. Cheguei num país em que eu não falava a língua, não sabia escrever, nem ler. Tinha de usar sempre o inglês para me comunicar. Na Universidade Hebraica eu lecionava só para doutorandos. O problema é que uma ou outra palestra eu dava em inglês, mas alguns seminários eu tinha de dar em hebraico. Porque os alunos exigiam hebraico, não queriam apenas inglês. Então, eu tive que aprender a língua. E aprendi em seis meses. Entrei para um curso ultra-intensivo de estudos de hebraico. Tinha uma professora que me ajudava: ela ia comigo no carro e antes de começar a aula me ajudava mais um pouco. Agora, aprendi a falar, mas não a escrever. Quando fui para a Universidade de Haifa, tinha duas assistentes. Eu escrevia as aulas em inglês, elas traduziam para o hebraico em letras latinas, e eu lecionava dessa forma, lendo em letras latinas as aulas que tinha que dar em hebraico.

Os professores estrangeiros continuam sofrendo da mesma forma hoje?
Não, hoje as coisas estão bem mais avançadas. Na época tinha muito poucos emigrantes e agora há muita emigração. Hoje, há três línguas oficiais em Israel: hebraico, inglês e árabe.

A senhora ficou durante quanto tempo nessa primeira universidade?
Na Universidade Hebraica, um ano. Eu morava em Tel-Aviv e era muito difícil ir para Jerusalém todos os dias. A viagem era de uma hora e meia. Mas eu levava duas horas e meia da minha casa até a universidade. Tinha que acordar muito cedo e a estrada era muito sinuosa, ruim, com passagem para apenas um carro. Tel-Aviv fica ao nível do mar e Jerusalém, a 700 ou 600 metros de altitude. Na universidade, eles me deram, no Departamento de Zoologia, um quarto em que o teto era de latão, algo provisório, porque não havia lugar no prédio principal. No verão era um inferno de calor, uma coisa tremenda. Não tinha ar-condicionado. E no inverno era um frio de rachar.

O verão é parecido com o nosso?
É muito pior. E no inverno tinha neve. Então, eu fazia o seguinte: levava meu microscópio, ficava em uma sala de temperatura constante, de 18º, e só saía de lá na hora de voltar para casa. Era muito difícil. Por isso, deixei a universidade pensando que fosse encontrar facilidade para trabalhar em Tel-Aviv. Tive uma promessa, na Universidade de Tel-Aviv, de que eu poderia trabalhar lá. Eles diziam que iam para os Estados Unidos arrecadar dinheiro e fazer um novo edifício. E eu, então, iria formar o departamento de genética. Mas isso não aconteceu, fiquei algum tempo sem trabalhar, até que me indicaram para a Universidade de Barilan, também em Tel-Aviv. Eles precisavam de alguém que lecionasse genética. Fiquei admirada, porque essa é uma universidade religiosa. Achei estranho. Os religiosos, especialmente os ortodoxos, não aceitam muito o estudo da genética de evolução.

Como foi sua experiência lá?
Quem me recomendou ao reitor foi um professor da própria Universidade de Barilan. Fui pra ser entrevistada, esperei um pouco, o reitor mandou eu entrar e eu disse: “O senhor quis me ver?”. Ele respondeu: “Você é que quis me ver”. Ou seja, a história já começou ruim para mim. O difícil é que sou muito acanhada nessas coisas e fiquei sem jeito. Então disse: “É, foi realmente eu quem pedi a entrevista”. E sentei. Aí ele me perguntou o que eu era e respondi que era uma geneticista procurando trabalho. Ele disse: “A senhora é geneticista? Nunca vi o nome da senhora relacionado à genética”. Expliquei que isso me parecia estranho porque eu tinha muitos trabalhos publicados na área. E retruquei: “Talvez o senhor não leia sobre genética. Por exemplo: o senhor é químico, não é?”, eu perguntei, já com raiva. Ele respondeu: “Sou”. Aí eu tive de dizer: “Nunca vi seu nome relacionado à química porque não leio trabalhos de química”. Ele respondeu de um jeito grosseiro: “Para mim, lugar de mulher é na cozinha”.

Bom, imagino que a senhora não tenha conseguido o emprego .
Exato. Eu disse “até logo”, saí e, claro, não fui aceita pela universidade. Tempos depois fui para a Universidade de Haifa graças a alguns amigos da Suíça, da Alemanha e da Inglaterra que estiveram em um congresso de genética em Israel e viram que eu estava sem trabalho: tinha saído da Universidade Hebraica, não havia tido oportunidade na de Tel-Aviv, e fui chutada na de Barilan.

Seus amigos sabiam que a senhora procurava emprego?
Eles pensavam que eu tivesse deixado o trabalho porque tinha casado e não precisava mais. Quando me acharam em Tel-Aviv eu expliquei a situação e eles me conseguiram um trabalho na Universidade de Haifa. Foi muito bom porque eu soube que poderia receber um auxílio grande da Fundação Rockefeller.

Seu laboratório deu frutos?
Foi a partir dele que eu criei o Instituto de Evolução. Hoje, eles estão fazendo um trabalho de genética de drosófila muito interessante, em Haifa mesmo, em hábitats diferentes. Um, numa zona de montanha que não recebe sol, e a outra que recebe sol durante o dia todo. Nesses hábitats, os ambientes são completamente diferentes para drosófilas, que também são de tipos diferentes. Os pesquisadores do laboratório estão fazendo um trabalho muito bonito, de ecologia nos dois campos.

A que a senhora atribui suas dificuldades em Israel? A preconceito pelo fato de ser mulher ou a um país em formação?
Preconceito houve apenas na Universidade de Barilan. Mas nas outras, não. Foi falta de verba, mesmo. Eles estavam iniciando um país, havia muitos intelectuais e não tinham dinheiro para sustentar mais uma pesquisa.

Como era a vida cotidiana em Israel?
Era uma vida de muito trabalho. Eu deixava minha casa às 6h30 já com tudo pronto para o meu marido: almoço e jantar preparado, porque eu chegava em casa, às vezes, depois das 20 horas. Tinha de me virar sozinha: fazia compras, lavava roupa, tudo, além de trabalhar na universidade. Não se tinha empregada na época.

A senhora aposentou-se quando?
Quando meu marido adoeceu, em 79, para poder tratar dele (morreu há nove anos). Aí deixei a Universidade de Haifa. Mas até há pouco tempo, quando eles precisavam de mim, eu ia para lá. Hoje faço só pequenas assessorias.

A senhora não tem problemas por ser uma judia não praticante em Israel?
Sou judia apenas de nome. Na verdade sou atéia. Moro num edifício que tem gente religiosa, que reclama quando eu saio de carro no final de semana. Sábado é o dia de repouso, então tudo está fechado, sair de carro é algo não muito apreciado pelos judeus. Mas não me importo e saio assim mesmo.

Correção: A pesquisadora Chana Malogolowkin recebeu US$ 500 mil para criar o Laboratório de Genética de Drosófilas na Universidade Hebraica de Jerusalém.

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