Há quase 40 anos, o imunologista Yoshikazu Kurosawa e sua equipe em uma universidade privada perto de Nagoia, no Japão, revelaram ao mundo que era possível manipular os linfócitos T, os soldados do sistema de defesa, para combaterem células cancerígenas. Os primeiros testes em laboratório com esses linfócitos modificados, mais tarde chamados de linfócitos ou células CAR-T, foram reportados em 1987 na revista Biochemical and Biophysical Research Communications, na véspera do ano-novo. Seriam necessárias mais de duas décadas, porém, para que fossem usadas pela primeira vez em uma pessoa – em 2010 no norte-americano William Paul Ludwig (1945‑2021), que ficou livre de uma leucemia e morreu vítima da Covid-19 – e outros tantos anos para que começassem a ser adotadas em maior escala.
– Centro paulista testará em 81 pacientes células de defesa modificadas para tratar câncer sanguíneo
Os linfócitos T, no entanto, não são perfeitos. Eles podem ser bastante tóxicos e causar uma forma grave da síndrome de liberação de citocinas. Além disso, para evitar rejeição, precisam ser extraídos do próprio paciente e nem sempre estão em sua melhor forma por causa dos tratamentos anteriores contra o câncer. Esses e outros motivos levaram os pesquisadores, inclusive no Brasil, a buscar alternativas. A mais promissora, em fase inicial de testes em pessoas, é substituir os linfócitos T por outro tipo de linfócito que espontaneamente combate as células tumorais: os linfócitos natural killers (NK), ou exterminadores naturais.
Os linfócitos NK existem no sangue em uma proporção menor do que os T – os primeiros representam de 5% a 15% do total de linfócitos, enquanto os últimos podem chegar a 60%. Eles reconhecem moléculas da superfície das células tumorais e, como o T, as eliminam lançando um banho de compostos químicos tóxicos. Uma vantagem do uso dos NK é que podem ser extraídos de uma pessoa saudável, modificados em laboratório (transformados em CAR-NK) e infundidos em quem tem câncer. Como esses linfócitos não reconhecem como estranhas as células do organismo de quem os recebe, é possível produzi-los em maior escala e armazená-los, para, depois, serem administrados a diferentes pessoas conforme a necessidade.
Os pesquisadores, no entanto, precisam manipulá-los para estimular sua multiplicação antes da infusão. É que eles se proliferam pouco no organismo de quem os recebe. Para superar a limitação, é comum usar vetores virais para inserir genes que codificam moléculas estimuladoras – como a interleucina 15 (IL-15) – que promovem a sobrevivência, ativação e expansão dos linfócitos CAR-NK.
“A manufatura de células CAR-NK tem custo semelhante ao das células CAR-T. A diferença está no aproveitamento. Com um preparo de CAR-NK, é possível obter material para tratar de 10 a 100 pacientes, enquanto o de CAR-T é destinado a um só indivíduo”, conta a hematologista Lucila Kerbauy, do Hospital Israelita Albert Einstein (HIAE), em São Paulo. “Não usamos as NK do próprio paciente porque, devido aos tratamentos anteriores, elas podem se tornar exaustas e disfuncionais”, explica a pesquisadora, líder de um dos grupos brasileiros que investiga o aprimoramento dessas células para tratar diferentes tipos de câncer.
No pós-doutorado, realizado no M.D. Anderson Cancer Center, nos Estados Unidos, Kerbauy participou do desenvolvimento das células CAR-NK usadas em um dos raros ensaios clínicos já concluídos – segundo o site clinicaltrials.gov, apenas três chegaram ao fim. Nele, a equipe da hematologista Katy Rezvani usou linfócitos CAR-NK modificados para produzir a IL-15 em 11 pessoas com linfoma ou leucemia linfoblástica crônica que haviam passado sem sucesso por diversas terapias. Era um estudo de fase 1 e 2, destinado a avaliar diferentes doses e toxicidade do tratamento. Segundo os resultados, publicados em 2020 na revista The New England Journal of Medicine, não foram identificados efeitos tóxicos graves e, das 11 pessoas tratadas, ao menos seis ficaram livres da doença por alguns meses. O câncer reapareceu em pelo menos uma delas, e outras passaram por novas terapias.
De volta ao Brasil, Kerbauy e equipe no HIAE trabalham, com apoio da FAPESP, no desenvolvimento de dois tipos de células CAR-NK, personalizadas para tipos distintos de câncer: um expressa a proteína CD70, contra os linfócitos B de leucemias e linfomas; e outro expressa a proteína BCMA, típica de linfócitos B do mieloma, um câncer hematológico que atinge idosos e leva à multiplicação desenfreada de plasmócitos. “Já conseguimos modificar mais de 50% das células na fase de produção. Agora, estamos começando os testes em animais”, conta a pesquisadora.
No Hemocentro de Ribeirão Preto, ligado à Universidade de São Paulo (USP), o grupo coordenado pela bióloga Virgínia Picanço e Castro está um passo à frente. Depois de ajudar a desenvolver a terapia com células CAR-T em teste no Núcleo de Terapia Avançada (Nutera-RP), a pesquisadora e colaboradores passaram a se dedicar nos últimos anos, também com financiamento da Fundação, à produção de células CAR-NK para tratar leucemia e linfoma.
Nos últimos anos, a equipe já produziu e testou dois tipos de células CAR-NK. Uma foi modificada para produzir uma versão artificial da proteína interleucina 15 ligada ao seu receptor, o que favorece a multiplicação em cultura, e a outra com a interleucina 27, que aumenta o poder aniquilador dessas células.
As primeiras foram testadas com sucesso contra células de leucemia humana cultivadas em laboratório e implantadas em camundongos, segundo os resultados publicados em 2023 na Frontiers in Immunology. O segundo tipo se mostrou eficaz contra o linfoma humano em experimentos com células e com camundongos, descritos em 2024 na revista Cytotherapy.
Atualmente o grupo investe em levar para a próxima fase as CAR-NK com interleucina 15 e seu receptor. “Já dominamos a fase de expansão e estamos adaptando a produção para o sistema fechado, sem contato com o ambiente e seguindo as boas práticas de produção, como ocorre no Nutera”, contou a biotecnóloga Heloísa Brand, que faz doutorado sob a orientação de Picanço e Castro, quando recebeu Pesquisa FAPESP no laboratório, no início de junho.
“Assim que essa fase for concluída, vamos repetir os estudos pré-clínicos seguindo as boas práticas de laboratório. Esses dados vão compor o dossiê que devemos submeter à Anvisa pedindo autorização para um teste de fase 1 contra cânceres hematológicos causados por linfócitos B”, conta Picanço e Castro. “Ter células CAR-NK ‘na prateleira’, prontas para o uso, pode reduzir o tempo para iniciar o tratamento”, lembra. Os linfócitos T, por atacarem células de outro organismo, são de uso individual e exigem extração e preparo de dias antes da infusão.
A reportagem acima foi publicada com o título “Exterminadoras treinadas” na edição impressa nº 354, de agosto de 2025.
Artigos científicos
KUWANA, Y. et al. Expression of chimeric receptor composed of immunoglobulin-derived V resions and T-cell receptor-derived C regions. Biochemical and Biophysical Research Communications. 31 dez. 1987.
MITRA, A. et al. From bench to bedside: The history and progress of CAR-T cell therapy. Frontiers in Immunology. 15 maio. 2023.
SILVESTRE, R. N. et al. Engineering NK-CAR. 19 cells with the IL-15/IL-15Ra complex improved proliferation and anti-tumor effect in vivo. Frontiers in Immunology. 24 set. 2023.
BIGGI, A. F. B. et al. IL-27-engineered CAR.19-NK-92 cells exhibit enhanced therapeutic eficacy. Cytotherapy. nov. 2024.
LIU, E. et al. Use of CAR-transduced Natural Killer cells in CD19-positive lymphoid tumors. The New England Journal of Medicine. 5 fev. 2020.
