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BIOTECNOLOGIA

Pesquisadores desenvolvem soro contra o veneno de abelhas africanizadas

Equipe já obteve patente do produto, que poderá evitar morte de vítimas de picadas do inseto, conhecido por seu forte instinto de defesa

Detalhe de uma colmeia de abelhas africanizadas em centro de pesquisa da Unesp, em Botucatu

Léo Ramos Chaves / Revista Pesquisa FAPESP

Em Vitória da Conquista, na Bahia, um homem de 55 anos morreu após ser alvo de mais de 100 picadas de abelhas. Caso semelhante ocorreu em Santa Cruz do Rio Pardo, no interior de São Paulo. A vítima fatal tinha 84 anos e também recebeu mais de uma centena de ferroadas. Em Bertioga, no litoral paulista, um carteiro de 58 anos foi atacado por um enxame enquanto fazia uma entrega e não resistiu. Todos esses casos fatais ocorreram com poucos dias de intervalo, entre fevereiro e março deste ano.

“No Brasil, são cerca de 30 mil acidentes com abelhas africanizadas por ano, que causam em torno de 150 mortes”, informa o médico-veterinário Rui Seabra Ferreira Júnior, diretor do Centro de Estudos de Venenos e Animais Peçonhentos (Cevap) da Universidade Estadual Paulista (Unesp), campus de Botucatu, citando dados do Ministério da Saúde. Ele avalia que os números oficiais estão subestimados. “Muitas vezes o paciente é internado em uma Unidade de Terapia Intensiva com insuficiência renal aguda, devido à ação do veneno, e a causa do óbito, dias depois, não é registrada como acidente por abelhas”, explica.

Ferreira é autor da patente de um inédito soro antiapílico, contra picada de abelhas, que, segundo estudos clínicos já realizados, poderá reduzir essas mortes. Deferida em novembro de 2023 pelo Instituto Nacional da Propriedade Industrial (INPI), a patente resulta das pesquisas conduzidas pelo Cevap com os institutos Butantan, na capital paulista, e Vital Brazil, em Niterói, no Rio de Janeiro. Parecer do INPI atestou a originalidade, a inventividade e a aplicabilidade industrial da tecnologia.

Ensaios clínicos de fases 1 e 2 foram feitos em 20 pacientes adultos que receberam de sete picadas a 2 mil picadas de abelhas. Essa fase durou três anos, de 2016 a 2018, e foi realizada nos hospitais das clínicas de Botucatu e Nossa Senhora da Conceição, em Tubarão, em Santa Catarina.

“Como os outros soros antivenenos, o nosso é administrado por via intravenosa, gota a gota. Definimos um protocolo baseado no número de picadas que a pessoa sofreu”, conta Ferreira. Segundo ele, como o veneno entra no corpo de forma aguda, a administração do medicamento deve ser feita no menor tempo possível para evitar danos.

Os resultados dos ensaios clínicos, coordenados pelo médico Benedito Barraviera, pesquisador do Cevap e coautor da patente, foram divulgados na revista Frontiers in Immunology, em 2021, e indicaram que o soro é seguro e eficaz. Após a inoculação, detectou-se melhora em todos os pacientes. Apenas dois apresentaram efeitos adversos leves, como irritação cutânea. Agora, a equipe fará um teste com um número maior de pacientes para confirmar estatisticamente as primeiras observações.

“Vamos realizar o ensaio clínico de fase 3 em uma amostra mais representativa da população brasileira, em torno de 400 participantes, todos eles vítimas de picadas de abelhas africanizadas”, diz Ferreira. “O projeto está pronto e aguarda financiamento do governo federal, já que não existem empresas farmacêuticas privadas produtoras de soros antivenenos no Brasil.” Após essa etapa, prevista para durar cerca de dois anos, será possível solicitar à Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa) o registro do novo soro, caso os resultados sejam positivos.

Veneno fatal
Cerca de duas décadas de estudos resultaram no soro que poderá ser o primeiro antídoto específico para veneno de abelhas do mundo. Ferreira começou a pesquisar soroterapia em 2002 durante o mestrado em doenças tropicais na Faculdade de Medicina da Unesp e no Cevap, sob a orientação de Barraviera.

O doutorado teve o mesmo foco e também foi orientado por Barraviera, que hoje coordena o Centro de Ciência Translacional e Desenvolvimento de Biofármacos, sediado no Cevap. Financiada pela FAPESP por meio do programa Centros de Ciência para o Desenvolvimento (CCD), a unidade apoia o projeto do soro antiapílico.

“Foi em 2006, no pós-doutorado em imunoquímica no Butantan, que iniciei os estudos para criar o soro”, conta Ferreira. As abelhas africanizadas são resultado do cruzamento de abelhas-europeias (Apis mellifera) com africanas da subespécie Apis mellifera scutellata, introduzidas no Brasil em 1956 por serem mais produtivas e resistentes a doenças. Em 1957, cerca de 25 abelhas-rainhas escaparam de um apiário em quarentena de um bosque de eucaliptos da Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras de Rio Claro (SP), que viria a se tornar uma das unidades da Unesp nos anos 1970. As fugitivas cruzaram com subespécies europeias, o que resultou numa abelha poli-híbrida africanizada, que tem como característica um forte instinto de defesa. Começaram, então, os relatos de ataques de enxames, no Brasil e em outros países do continente americano.

Léo Ramos Chaves / Revista Pesquisa FAPESPA armadilha criada pelos pesquisadores do Cevap para coletar o veneno das abelhas e o frasco contendo o soro desenvolvidoLéo Ramos Chaves / Revista Pesquisa FAPESP

Segundo Ferreira, é preciso distinguir dois tipos de acidentes apílicos. O mais comum é aquele que resulta em poucas picadas. Nesse caso, em indivíduos não alérgicos, haverá uma reação inflamatória local que se resolve sem intervenção médica. Em pessoas sensíveis ao veneno poderá haver uma reação alérgica grave, com risco de choque anafilático, necessitando de tratamento imediato com antialérgicos.

O segundo tipo é aquele que envolve ataques em massa, com grande quantidade de ferroadas, que pode ser fatal. “O veneno injetado em grandes quantidades pode provocar insuficiência respiratória e renal aguda”, explica Ferreira. Os danos se devem a dois componentes do veneno, o peptídeo melitina e a enzima fosfolipase A2 (PLA2), que têm ação citotóxica, lesionando as células, e hemolítica, destruindo os glóbulos vermelhos.

Até o momento, o tratamento para a ação dessas substâncias, feito com anti-histamínicos e anti-inflamatórios, consiste em reduzir os sintomas, o que pode não ser suficiente para evitar a morte. O objetivo do soro, que precisa ser mantido sob refrigeração entre 2 e 8 graus Celsius, é atuar na causa do problema, neutralizando a ação do veneno.

Os pesquisadores precisaram superar alguns desafios biotecnológicos para produzir o soro. Um deles foi a necessidade de obter veneno em boa quantidade e com qualidade padronizada. Para contornar essa dificuldade, instalaram nas colmeias fios de cobre ligados a pequenas placas de vidro. Quando as abelhas encostavam nos fios, recebiam uma leve descarga elétrica, inofensiva a elas, mas que fazia com que depositassem uma gota de veneno na placa. Esse trabalho foi desenvolvido com outro autor da patente, o biólogo Ricardo Orsi, da Faculdade de Medicina Veterinária e Zootecnia da Unesp.

O desafio seguinte foi padronizar o processo de purificação e isolamento das principais frações do veneno, os compostos que causam a morte de pessoas e animais acometidos por múltiplas picadas. Essa etapa teve a colaboração do biomédico Daniel Pimenta, do Butantan. “O segredo tecnológico envolvido na produção do soro é o fato de ser feito apenas com anticorpos para neutralizar a ação destrutiva da melitina e da fosfolipase A2”, diz Ferreira. “Todos os outros componentes, que podem causar dor e alergia nos pacientes, são retirados.”

Esse procedimento trouxe mais bem-estar e segurança aos cavalos que recebem inoculação do veneno para a produção de anticorpos, eliminando o risco de sofrerem um choque alérgico. Para a produção do soro no Instituto Vital Brazil, feito em conjunto com o médico-veterinário Luís Eduardo da Cunha Ribeiro, coautor da patente, os equinos recebem três ou quatro doses do pool das toxinas purificadas do veneno em pequenas concentrações, o que resulta em uma resposta imunológica. Uma amostra do sangue dos animais é retirada para separação da fração que contém os anticorpos. Isolados e concentrados, eles formam o soro antiapílico.

O pesquisador da Unesp ainda não sabe qual será o custo final de cada dose. “A fabricação de soros antivenenos é cara, pois demanda recursos para a manutenção dos animais que produzem o veneno e dos cavalos que serão imunizados, bem como para o processo biotecnológico da produção”, destaca. “Esperamos que haja uma negociação entre o Ministério da Saúde e os laboratórios públicos de produção de soros, e que ele possa ser distribuído gratuitamente pelo SUS.”

Paralelamente ao desenvolvimento do soro, outro projeto com participação de pesquisadores da Unesp tenta classificar com rapidez a gravidade do quadro clínico das vítimas das ferroadas. A elaboração de um kit diagnóstico do agravo do acidente apílico, também inédito, é conduzida pela startup Triad for Life com apoio do programa Pesquisa Inovativa em Pequenas Empresas (Pipe), da FAPESP.

Responsável pelo desenvolvimento do kit, a bióloga Bruna Cavecci Mendonça explica que o procedimento-padrão hoje consiste na contagem dos ferrões presentes no corpo da vítima, na observação clínica do paciente e em exames bioquímicos inespecíficos. “São as únicas fontes de informação para avaliar o grau de envenenamento. Além de ser um processo demorado, sabemos que a quantidade de veneno injetada pode variar conforme a abelha. Algumas ferroadas podem ser ‘vazias’, ou seja, sem inoculação de veneno.”

A partir de uma gota de sangue do paciente, o kit quantifica a presença da toxina fosfolipase A2 presente no veneno da abelha. A análise é feita por meio de um teste imunoenzimático (imunocromatografia de fluxo lateral), que usa anticorpos do veneno como reagente. “O resultado é revelado em até 10 minutos pela alteração de cor, como num teste clássico de gravidez”, compara a pesquisadora.

Como o teste mensura a concentração de fosfolipase na corrente sanguínea, ele também pode ser usado para monitorar o tratamento e avaliar se está surtindo efeito. Uma patente foi depositada em 2022. No momento, a empresa está produzindo mais anticorpos a fim de montar o primeiro lote do kit, que será testado amplamente nos hospitais.

Eduardo Cesar / Revista Pesquisa FAPESPAranha-marrom: picada necrosa a peleEduardo Cesar / Revista Pesquisa FAPESP

Eficácia contra necrose
Estudo confirma que soro contra picada de aranha-marrom reduz risco de lesão na pele

O Instituto Butantan concluiu recentemente um estudo observacional sobre a eficácia de um soro contra a lesão necrosante causada pela picada da aranha-marrom (Loxosceles spp.). O soro antiaracnídico trivalente, indicado também para acidentes com aranhas-armadeira (Phoneutria spp.) e escorpiões (Tityus spp.), já é fabricado pelo Butantan há décadas, mas não havia um trabalho científico que comprovasse sua eficácia na redução do risco de necrose na pele causada pelo veneno da aranha-marrom – acidentes com aranha-armadeira e escorpiões não geram necrose. A pesquisa, divulgada em 2022 na revista PLOS Neglected Tropical Diseases, preencheu essa lacuna.

“Desde a década de 1970, já havia estudos experimentais com animais mostrando que, dentre os tratamentos disponíveis, o que tinha melhor efeito para evitar necrose era o soro específico contra o veneno de Loxosceles”, diz a médica Ceila Malaque, pesquisadora do Hospital Vital Brazil e coordenadora do estudo científico. “Mas ainda não existia nenhum estudo em humanos como esse que foi realizado no Butantan.”

Durante seis anos, foram avaliados 146 pacientes atendidos no Vital Brazil, sendo que 74 casos receberam o soro, enquanto os demais, não. Os resultados mostraram que o antiveneno tem efeito protetor contra a necrose, especialmente se administrado nas primeiras 48 horas após a picada.

“Queríamos ter feito a mesma análise com pacientes admitidos até 36 horas após o acidente, mas, infelizmente, não foi possível fazer esse recorte. Muitas vezes, por falta de conhecimento, as vítimas de picadas de aranhas procuram o serviço médico muito tarde, mais de dois dias após o acidente”, lamenta Malaque.

A reportagem acima foi publicada com o título “Ferrão neutralizado” na edição impressa nº 341, de julho de 2024.

Projetos
1.
Estudo comparativo do processo de imunização com veneno de abelhas africanizadas (Apis mellifera) total e irradiado com cobalto-60 incluindo o emprego de sílica nanoestruturada SBA-15 como adjuvante (no 06/55545-8); Modalidade Bolsa de pós-doutorado; Pesquisador responsável Oswaldo Augusto Brazil Esteves Sant´Anna (Instituto Butantan); Bolsista Rui Seabra Ferreira Junior; Investimento R$ 102.705,12.
2. Centro de Ciência Translacional e Desenvolvimento de Biofármacos (nº 21/11936-3); Modalidade: Centros de Ciência para o Desenvolvimento; Pesquisador responsável Benedito Barraviera (Unesp); Investimento R$ 6.728.358,07.
3. Desenvolvimento de um kit diagnóstico inédito do agravo do acidente causado por abelhas (Apis mellifera) (nº 22/02869-3); Modalidade Pesquisa Inovativa em Pequenas Empresas (Pipe); Pesquisadora responsável Bruna Cavecci Mendonça (Paulo Daniel Leite Pesquisa e Desenvolvimento); Investimento R$ 822.550,65.

Artigos científicos
BARBOSA, A. N. et al. Single-arm, multicenter phase I/II clinical trial for the treatment of envenomings by massive africanized honey bee stings using the unique apilic antivenom. Frontiers in Immunology. v. 12. 23 mar. 2021.
EL-KIK, C. Z. et al. Neutralization of Apis mellifera bee venom activities by suramin. Toxicon. v. 67, p. 55-62. 1º jun. 2013.
MALAQUE, C. M. S. et al. Impact of antivenom administration on the evolution of cutaneous lesions in loxoscelism: A prospective observational study. PLOS Neglected Tropical Diseases. 14 out. 2022.

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