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Financiamento

Pesquisadores dos EUA vivem período de incerteza com cortes e demissões

Governo norte-americano reduziu vagas e recursos em agências de fomento, congelou bolsas e puniu universidades

Manifestação de apoio à ciência e a institutos de pesquisa em Washington, em 7 de março

Alex Wong / Getty Images

Cientistas vivem um clima de incerteza e apreensão nos Estados Unidos, com reflexos em outros países, desde o dia 20 de janeiro, quando o presidente, Donald Trump, assumiu seu segundo mandato e assinou sucessivas ordens executivas determinando cortes de orçamento e de equipes que também atingiram agências federais que financiam e conduzem pesquisas no país. Com a extinção de programas e atrasos em renovações de bolsas, o turbilhão se espalhou por laboratórios e universidades. Algumas das medidas foram suspensas, ao menos temporariamente, pela Justiça, mas a insegurança continua. “Há muitas dúvidas. Foram criadas restrições não apenas sobre o quanto de orçamento federal de pesquisa e desenvolvimento podemos gastar, mas também de que maneira podemos gastá-lo”, disse a Pesquisa FAPESP Joanne Carney, diretora de relações governamentais da Associação Americana para o Avanço da Ciência (AAAS), que publica a revista Science e é uma das maiores e mais antigas sociedades científicas do mundo. O governo tem cerceado o financiamento de pesquisas sobre temas como clima, inclusão e gênero.

Uma semana após a posse, foram congelados bolsas e financiamento federal sob a alegação de redução dos custos do governo e de sua força de trabalho. A decisão causou confusão nas principais agências de financiamento de pesquisa do país, a National Science Foundation (NSF) e os Institutos Nacionais de Saúde (NIH), um conglomerado de centros de pesquisas biomédicas. Uma reportagem da revista científica Nature mostrou que pagamentos de auxílios à pesquisa foram suspensos e painéis de avaliação de financiamento cancelados – a ordem acabou sendo bloqueada temporariamente por um juiz federal. Os cortes também atingiram outras importantes agências como a Administração Nacional Oceânica e Atmosférica (NOAA), a Nasa, a agência espacial norte-americana, e a Agência de Proteção Ambiental (EPA), que ameaça demitir até 75% de seus cientistas e extinguir seu Escritório de Pesquisa e Desenvolvimento, cortando 1.155 empregos em laboratórios, segundo o jornal The New York Times.

“Nossa rotina tem se dividido entre continuar fazendo pesquisa e apresentar novos projetos para arranjar outras fontes de financiamento, desde bolsas da própria universidade até dotações de instituições filantrópicas, para garantir recursos que, em condições normais, estariam assegurados”, relata o físico brasileiro Rafael Lopes, que trabalha no desenvolvimento de modelos matemáticos e estatísticos em epidemiologia da dengue e está há dois anos em estágio de pós-doutorado na Universidade Yale, em um projeto financiado pelos NIH. “Há grandes chances de que a bolsa de pesquisa do meu chefe, Nathan Grubaugh, que paga metade do meu salário, não seja renovada em setembro”, conta Lopes. Segundo ele, as tramitações para o processo de renovação já deveriam ter se iniciado em março, mas, com o quadro instável da agência, há um atraso.

Ele destaca que Yale, como outras universidades, poderá ser fortemente atingida pelos cortes das despesas administrativas, conhecidas como custos indiretos, um valor adicional que as universidades cobram e os NIH pagam para cobrir gastos com água, luz, telefone, internet, segurança, manutenção física dos laboratórios, entre outros custos de infraestrutura. Em 7 de fevereiro, os NIH anunciaram que limitariam o teto dessa taxa a 15% do valor dos projetos – atualmente esse percentual passa de 60% em grandes universidades, como Harvard, Johns Hopkins e a própria Yale. Segundo a agência federal, essa determinação promoveria uma economia “imediata” de US$ 4 bilhões.

“Cada instituição recebe um valor negociado com os NIH e essa é uma das razões que fazem com que o sistema de pesquisa no país seja avançado. Aqui em Yale esse adicional é de 67,5%”, observa o físico. “Se ocorrer o limite previsto no teto, isso representaria uma redução de mais 75% da receita necessária para cobrir esses custos, uma perda no orçamento da universidade de algo perto de US$ 200 milhões só neste ano.”

Francis Collins, ex-diretor dos NIH, discursa em manifestação na capital norte-americana: preocupação com o paísAlex Wong / Getty Images

No início de março, uma liminar suspendeu a mudança no funcionamento dos custos indiretos após um processo movido por 22 estados e por uma coalizão de organizações de pesquisa. O governo ainda pode recorrer, mas, conforme a advogada especializada em ciências da vida Kate Heffernan disse à Science, a chance de que a Casa Branca obtenha sucesso é pequena, porque o governo não respeitou trâmites legais, como realizar consulta pública e apresentar motivo plausível, e descumpriu acordos já firmados. O governo ainda pode tentar mudar regras sobre como as agências federais de saúde formulam novas políticas.

Os NIH demitiram aproximadamente 1,2 mil funcionários em fevereiro, como parte de um corte federal de servidores ainda em período probatório que haviam sido contratados nos últimos anos. No começo de março, 250 deles foram recontratados, segundo a Science.

Não se conhece o volume total dos cortes em programas de pesquisa do país, porque ele segue mudando, segundo Carney, da AAAS, contou a Pesquisa FAPESP. “Uma parcela disso está em litígio, como os cortes ou reduções previstas nos custos indiretos dos NIH. E ainda não sabemos quais outras mudanças teremos no horizonte”, observa. “Parte do desafio é que nosso ano fiscal para gastos só termina em setembro. Não saberemos qual será o impacto geral desses cortes, seja no âmbito total em dólares ou no âmbito individual de bolsas, até lá.”

Embora esteja trabalhando no Brasil, a médica Ester Sabino, do Instituto de Medicina Tropical (IMT) da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo (FM-USP), também foi afetada pelo congelamento dos recursos. Ela coordena um projeto que desenvolve novos métodos para diagnosticar e tratar a doença de Chagas, financiado pelos NIH em uma linha de apoio para doenças tropicais negligenciadas. Em janeiro, foi surpreendida ao não receber o pagamento do mês de despesas já realizadas, com exames e diagnósticos de pacientes, além de bolsas de pesquisadores, no valor de US$ 23 mil. “Fiz a solicitação da ordem de pagamento, uma espécie de reembolso, como de costume, e eles não pagaram nem deram explicações claras. Fiquei uns 20 dias aflita, sem saber como resolver o problema”, conta.

Sabino precisou suspender os trabalhos da pesquisa. Foi então que viu na imprensa a notícia de que a Justiça norte-americana havia suspendido o congelamento. “Submeti a ordem de pagamento novamente, e dessa vez pagaram janeiro e fevereiro”, diz. A pesquisadora está preocupada com o futuro do projeto, que acaba de encerrar o terceiro dos cinco anos previstos de duração. O orçamento anual varia de US$ 300 mil a US$ 400 mil. “Não fui informada se vão pagar o quarto ano, que começaria em abril.” Segundo ela, já ocorreu de haver cortes de 20% nos repasses, por conta de restrições orçamentárias dos NIH. “Nos organizamos e a pesquisa não parou. O problema é não saber o que vai acontecer”, explica Sabino, que procura outras possibilidades de financiamento.

As medidas causaram confusão nas agências de financiamento de pesquisa do país

Por conta desse cenário, no dia 7 de março, manifestações reuniram milhares de pessoas em cidades dos Estados Unidos e da Europa, como Paris e Viena, contra as medidas de cortes e demissões, no movimento conhecido como Stand Up for Science. Protestos desse tipo já haviam ocorrido também durante o mandato anterior do presidente norte-americano, entre 2017 e 2021. A revista Science contou cerca de 30 manifestações pelo país, além de serem esperadas mais de 150 em outros países.

“Não é algo para resolver com um único evento”, disse Samantha Goldstein, da Universidade da Flórida, uma das organizadoras do Stand Up for Science, à Nature. O objetivo dos protestos é convencer os legisladores a impedirem os cortes do governo. O geneticista Francis Collins, ex­‑diretor dos NIH, foi um dos que discursaram na manifestação na capital norte-americana. “Estou preocupado com o meu país nesse momento”, disse Collins, segundo a revista Science. Ele liderou a agência por mais de uma década e se aposentou recentemente, após 32 anos de trabalho.

Em fevereiro, centenas de pessoas já haviam se reunido em frente ao Departamento de Saúde e Serviços Humanos do país para protestar contra cortes de financiamento e demissões em massa. Segundo a Science, 47 sociedades científicas, associações e organizações, que representam quase 100 mil pesquisadores de diversas áreas, enviaram uma carta ao Congresso, organizada pela União de Cientistas Preocupados (UCS). O texto solicitava o restabelecimento do financiamento federal de pesquisas e a recontratação dos funcionários das agências científicas, além de pedir que “cientistas do governo se comuniquem livremente com o público e colegas internacionais e sejam interrompidos os ataques contra iniciativas de diversidade, equidade e inclusão na ciência”.

A Universidade Yale é uma das instituições que podem ser impactadas com os cortes dos custos indiretos pagos pelos NIHJoe Buglewicz / Bloomberg via Getty Images

Diversidade e inclusão
Em outra frente, estudos financiados pelo governo que abordam temas relacionados a inclusão e identidade de gênero, bem como referências à comunidade LGBT+, deverão ser encerrados. Documentos e uma gravação de áudio obtidos pela Nature mostram que funcionários dos NIH foram instruídos a identificar e cancelar financiamentos de projetos que estudam populações transgênero, identidade de gênero, diversidade, equidade e inclusão (DEI) na força de trabalho científica, justiça ambiental e qualquer outra pesquisa baseada em raça ou etnia. Subsídios concedidos a universidades na China e pesquisas relacionadas a mudanças climáticas também estão sob escrutínio.

“Para mim, um primeiro choque vai ser na sala de aula, de sentir como os alunos estão, e o que se pode ou não falar”, diz a brasileira Michelle Morais, professora do Departamento de Estudos Internacionais e Regionais da Universidade de Oklahoma desde 2017. “Eu dou aula de políticas públicas, de direitos humanos e de desenvolvimento internacional. Tudo o que está acontecendo afeta diretamente o que eu ensino. Estou em contato direto com os meus colegas, que estão receosos”, complementa. Ela finaliza uma licença sabática no Brasil e deve voltar para os Estados Unidos em julho.

Em alguns estados, temas de diversidade e inclusão, questões raciais e de gênero já vinham sendo proibidos de constar em financiamentos públicos estaduais e em currículos de escolas desde 2022. O que está sendo feito, destaca Morais, foi a federalização dessa lógica. “Tivemos que dissolver o comitê de diversidade e inclusão do departamento, mesmo antes do governo Trump.” Sobre os cortes na ciência, ela destaca que há uma diferença entre o que ocorreu no primeiro mandato de Trump e o que está acontecendo agora. “Como as instituições resistiram naquela época, a tática hoje é intensificar as ações e aplicá-las rapidamente.” O efeito disso, segundo a pesquisadora, é paralisar as possibilidades de resposta. “O sistema de Justiça e a oposição ao governo estão tendo dificuldades de responder, porque são muitas mudanças ao mesmo tempo e os custos judiciais elevados.” Ela observa que, no primeiro mandato, as universidades não tinham sido tão atingidas. “É uma desestruturação sem precedentes, um desmonte de políticas públicas.”

O governo também cancelou US$ 400 milhões em subsídios de pesquisa na Universidade Columbia, alegando que a instituição falhou em proteger estudantes judeus durante protestos pró-Palestina no campus, desde que teve início a guerra na Faixa de Gaza. A maioria dos cortes afeta cientistas financiados pelos NIH, que anunciaram a suspensão de mais de 400 bolsas de pesquisa na universidade, totalizando US$ 250 milhões. O Departamento de Educação do governo enviou cartas a 60 universidades, alertando sobre possíveis sanções se não garantirem segurança aos estudantes judeus. Columbia, onde os protestos foram mais intensos, foi a primeira afetada. A administração federal cancelou US$ 800 milhões em subsídios da Universidade Johns Hopkins, que financiava programas de saúde internacional e ajuda humanitária. Em consequência, a universidade anunciou o corte de 2 mil empregos.

Carney, da AAAS, observa que é cedo para avaliar se haverá uma mudança estrutural na política científica do país. “Temos esperança de que os tomadores de decisão reconheçam os impactos prejudiciais que algumas dessas reduções já estão tendo e terão em nossa capacidade de sermos inovadores e competirmos com a China. Espero que voltem a priorizar os investimentos em tecnologias críticas em diferentes disciplinas”, diz. Ela destaca que outros países veem o momento atual como uma oportunidade para atrair os cientistas que trabalham nos Estados Unidos para suas universidades e indústrias. “Tenho visto anúncios e editais de países como Irlanda, França, Alemanha e China”, conta. De todo modo, pondera que os cortes no sistema de pesquisa norte-americano vão afetar outras nações. “Muitos países serão impactados, não apenas com a perda de financiamento, mas também a redução das oportunidades para colaborar com colegas nos Estados Unidos”, conclui Carney.

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