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PSICOLOGIA

Pessoas hétero, homo e bissexuais sentem mais ciúme de rivais do mesmo sexo

Estudo foi feito com 1.744 indivíduos de Brasil, Portugal e Chile com idade entre 17 e 51 anos

Aline van Langendonck

Homens e mulheres costumam sentir ciúme de forma diferente. Para homens, em geral, nada pior do que imaginar sua parceira se envolvendo sexualmente com outra pessoa. No caso delas, uma relação sexual de uma noite não costuma ser o maior dos problemas: na verdade, incomoda mais ver a cara-metade criando laços românticos com outra pessoa. Esse tende a ser o padrão entre casais heterossexuais, segundo estudos de psicologia evolucionista.

Mas a história pode mudar de figura se forem incluídas na conta também pessoas homossexuais, que preferem e mantêm relacionamentos com indivíduos do mesmo sexo, e bissexuais, que têm ligação emocional com pessoas de ambos os sexos. Uma pesquisa coordenada pela psicóloga evolucionista Jaroslava Varella Valentova, do Instituto de Psicologia da Universidade de São Paulo (IP-USP), que incluiu também pesquisadores da Universidade de Coimbra, em Portugal, e da Universidade de Santiago, no Chile, investigou exatamente isso. O trabalho concluiu que, independentemente da orientação sexual, homens e mulheres sentem maior ciúme de rivais do mesmo sexo. O estudo foi publicado em julho deste ano na revista científica Archives of Sexual Behavior.

O grupo convidou homens e mulheres hétero, bi e homossexuais – todos cisgêneros, que se identificam com o sexo biológico com que nasceram – dos três países para colocar à prova seu nível de ciúme romântico. No total, 1.744 pessoas (1.328 mulheres e 416 homens), com idade entre 17 e 51 anos, participaram dos testes. Cerca de 55% dos participantes eram brasileiros, 27%, chilenos, e 18% portugueses. Elas foram provocadas, por meio de um questionário on-line, a imaginar cenários hipotéticos em que seus parceiros tivessem alguma experiência fora do relacionamento. As respostas preencheram uma escala numérica, que quantificou o grau de ciúme expresso pelos participantes em diferentes situações.

“Só existe ciúme quando você está analisando a relação desafiada por um rival”, explica Valentova. “Esse sentimento aparece mais quando existe uma competição com risco de perda de oportunidade reprodutiva.” Natural da República Tcheca, ela é docente da USP desde 2015 e pesquisa sexualidade humana sob a perspectiva evolucionista. Essa abordagem interpreta um conjunto de capacidades e comportamentos, entre os quais o ciúme, como tendo a finalidade maior, mas não única, de garantir o sucesso reprodutivo individual por meio da geração de descendentes.

Nas espécies mais monogâmicas, incluindo os humanos, existe uma competição não só pela formação, mas também pela manutenção das parcerias amorosas. Como os recém-nascidos dependem dos pais, e a preservação do casal é importante para a reprodução dos indivíduos, é esperado que algumas capacidades, como a do ciúme, tenham evoluído por contribuir na manutenção da parceria amorosa contra rivais. Outra linha de trabalhos de diferentes áreas da psicologia coloca o foco central do surgimento do ciúme em fatores socioculturais, como o lugar de proveniência, a religiosidade e o nível de escolaridade dos indivíduos.

No estudo coordenado por Valentova, os voluntários levaram 40 minutos para responder a um questionário que propunha quatro situações. Eles tinham que avaliar, por exemplo, o que os deixaria mais chateados ou traria mais sofrimento: se seu parceiro dividisse a cama com outra pessoa, sem se apegar emocionalmente, ou se criasse uma ligação romântica com outro homem ou mulher, sem sexo na relação. Julgaram também qual dessas situações seria “mais difícil de perdoar”, caso acontecesse. Participantes bissexuais responderam duas vezes, uma para parceiros do sexo masculino e outra para companheiras do sexo feminino. Todos responderam sobre rivais de ambos os sexos.

Como indicado anteriormente em outros estudos, homens hétero se mostraram como os mais ciumentos quando o assunto é sexo extraconjugal. Homens bissexuais, porém, aparentaram ter tanto ciúme quanto os héteros quando questionados sobre parceiras mulheres, mas nem tanto sobre os parceiros homens. Considerando apenas o grupo das mulheres, as heterossexuais demonstraram sentir mais ciúme da ideia de que seus parceiros tenham outros envolvimentos românticos.

O que significa, afinal, se “envolver romanticamente” com alguém? “Na concepção do estudo, é a possibilidade de se engajar em um relacionamento de longo prazo, que vai além de dividir a cama com uma outra pessoa”, explica Valentova. Relações mais duradouras costumam ter o pacote completo: sentimento de amor romântico, comprometimento afetivo, desejo de continuar juntos, exclusividade sexual e, de acordo com a pesquisadora, às vezes ciúme.

Os resultados do estudo mostraram também que o ciúme é mais concentrado em rivais do mesmo sexo. Homens tendem a se comparar e competir mais com outros homens, e mulheres com outras mulheres.

Tanto para mulheres hétero quanto para mulheres bi, a ameaça de que um rival masculino tenha algum envolvimento romântico com parceiros homens pareceu pequena. Mulheres bi, sugere o estudo, acham muito pior a possibilidade de uma parceira do sexo feminino viver um romance com outro homem, o que pode levar a uma gravidez na parceria e prejudicar o relacionamento. E homens bissexuais se importam mais com possíveis laços românticos de mulheres.

Mas por que isso ocorre com pessoas bissexuais se, em teoria, elas podem ter relações duradouras com parceiros de ambos os sexos? Isso estaria em parte relacionado, segundo os autores do trabalho, ao processo evolutivo. Sob essa perspectiva, homens tendem a achar mais arriscado investir tempo e recursos em uma parceira que se envolve sexualmente com outros homens e pode gerar filhos que não serão dele. Dessa forma, biologicamente falando, valeria mais para um homem criar uma criança que é sua em vez de contribuir esforços ajudando na criação de um filho que não compartilha seus genes.

Aline van Langendonck

Já as mulheres estão mais preocupadas com o envolvimento emocional fora da relação porque isso poderia transferir recursos, proteção e cuidado paternal de seu parceiro para uma terceira pessoa. O estudo conclui que o maior ciúme emocional entre mulheres ocorre, pelo menos em parte, porque elas têm que investir na reprodução e no cuidado à prole – uma vez que gestam os bebês por nove meses. Isso torna as mulheres ainda mais preocupadas com a dedicação do parceiro à relação.

“Herdamos propensões para desenvolver capacidades cognitivas contendo regras de decisão flexíveis e dependentes do contexto que são evoluídas da nossa espécie e originadas seletivamente devido à recorrência do mesmo desafio adaptativo ancestral”, diz o biólogo e psicólogo evolucionista Marco Antonio Correa Varella, que faz estágio de pós-doutorado no Departamento da Psicologia Experimental do IP-USP e é coautor do artigo. “Nosso estudo indica que o ciúme sexual não é essencialmente coisa de homem e o emocional não é necessariamente coisa de mulher, mas sim que ambos os sexos possuem capacidades para sentir ambos os tipos de ciúme.”

Originalmente, o objetivo do estudo, ao coletar dados de voluntários no Brasil, Chile e Portugal, foi indicar eventuais diferenças culturais na percepção do ciúme. O número de brasileiros bissexuais e mulheres lésbicas atendeu às expectativas de tamanho das amostras. No caso dos chilenos e portugueses, porém, a reduzida quantidade de participantes desses grupos não permitiu conclusões estatisticamente significativas sobre o peso do aspecto sociocultural nas manifestações de ciúme nos países.

A pesquisa de Valentova, Varella e colegas trabalhou com uma amostra em grande parte ligada ao ambiente universitário, de alto poder aquisitivo, o que é uma limitação ou viés do trabalho. Pessoas com maior nível de escolaridade também tendem a se autodeclarar com maior frequência como não heterossexuais. A faixa etária dos voluntários também pode ser vista como outro fator limitante do estudo. Em média, as mulheres analisadas tinham pouco mais de 24 anos. Entre os homens, a média de idade beirava os 26 anos.

Segundo os pesquisadores, é difícil encontrar pessoas bissexuais que já tenham tido relacionamento de longo prazo com homens e com mulheres. “Há ainda lacunas na literatura sobre se existe ciúme em relacionamentos de curto prazo em todas as variações possíveis de sexo do indivíduo, do parceiro e do rival, e falta replicar os resultados principais em outras regiões do mundo, para ver o quão universais são as relações encontradas”, diz o psicólogo evolucionista.

Modelos sociocognitivos
Para o psicólogo australiano Richard De Visser, da Escola de Psicologia da Universidade de Sussex, no Reino Unido, o estudo coordenado por Valentova representa uma contribuição importante para uma área que ainda tem pouca literatura científica. “O artigo é interessante porque debate como o ciúme pode ser influenciado por fatores evolutivos, mas também por aspectos culturais”, diz De Visser, que não participou do trabalho dos colegas da USP, em entrevista a Pesquisa FAPESP por e-mail.

Para o pesquisador, conduzir estudos sobre ciúme sob uma abordagem primordialmente evolucionista pode levar a algumas limitações. “Os modelos sociocognitivos do ciúme sugerem que os aspectos sociais, como a biografia de um indivíduo e sua cultura, interagem com os fatores evolutivos e biológicos e podem ser influências até mais importantes”, comenta. “As explicações do ciúme baseadas em modelos evolutivos e sociocognitivos são vistas como conflitantes, mas deveriam ser encaradas como complementares.”

Em um estudo feito na Austrália com mais de 8.300 pessoas entre 16 e 69 anos, De Visser e seu grupo criaram um modelo com seis variáveis, que, segundo eles, tem a ver com a percepção do ciúme: sexo biológico, idade, escolaridade, número de parceiros ao longo da vida, status de relacionamento e atitudes potencialmente infiéis. O trabalho foi publicado em 2019 no periódico The Journal of Sex Research. Segundo De Visser, uma abordagem parecida também pode ser um caminho interessante para medir o ciúme emocional em homossexuais e bissexuais, que tendem a se preocupar menos com a questão reprodutiva.

Do ponto de vista biológico, Valentova ressalta que a sexualidade, além de garantir a reprodução direta, contribui para outras funções ligadas à saúde, bem-estar, vinculação afetiva e cooperação, que promovem a sobrevivência e beneficiam indivíduos de todas as orientações sexuais. “A perspectiva evolutiva complementa as outras abordagens e contribui para um entendimento amplo do ser humano enquanto animal biopsicossociocultural”, conclui Varella.

Artigos científicos
VALENTOVA, J. V. et al. Jealousy is influenced by sex of the individual, their partner, and their rival. Archives of Sexual Behavior. 20 jul. 2022.
DE VISSER, R. et al. Romantic jealousy: A test of social cognitive and evolutionary models in a population-representative sample of adults. The Journal of Sex Research. v. 57, n. 4, p. 498-507. 15 mai. 2019.

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