Por volta de 2017, quando o biólogo marinho Hudson Pinheiro, do Centro de Biologia Marinha (CEBIMar) da Universidade de São Paulo (USP), mergulhava com colegas da California Academy of Sciences nos atóis do Pacífico Central, um dos locais mais isolados do planeta, encontrou uma linha de pesca enroscada nos recifes. Na mesma época, no arquipélago brasileiro de São Pedro e São Paulo, a quase mil quilômetros de Natal, no Rio Grande do Norte, onde identificou uma nova espécie de peixe colorido, viu passar um grande tubarão com uma longa linha de pesca presa na boca.
Surpreendidos, Pinheiro e colegas resolveram avaliar a poluição nos recifes do planeta em parceria com pesquisadores de países das três Américas, Europa, África, Oceania e Ásia. A equipe visitou 84 ambientes e encontrou detritos em mais de 90% deles, segundo estudo publicado em meados de julho na revista Nature. Quase 90% do material era composto de plástico e 73% vinha da pesca: eram âncoras, cordas plásticas, redes, fios de nylon e anzóis que foram descartados no mar.
“O plástico cobre os corais, as esponjas e outros invertebrados que formam os recifes e pode matá-los por sufocamento”, alerta Pinheiro. Segundo ele, o maior estrago é causado por âncoras, redes ou cordas que ficam presas no fundo e são puxadas, em tentativas de recuperá-las, causando dano por abrasão ou danificando a estrutura do recife. Esse tipo de agressão pode diminuir a diversidade de organismos e a quantidade de peixes de valor comercial, cujos filhotes se desenvolvem nessas áreas.
Quando ficam enroscadas no fundo, as redes às vezes prendem os peixes, efeito conhecido como pesca fantasma, e o plástico pode favorecer a multiplicação de bactérias que provocam doenças nos corais ou, ainda, ser degradado a microplástico. Nesse caso, quando ingerido, pode causar lesões nos órgãos internos e acumular-se nas cadeias alimentares, podendo chegar até os peixes que servem de alimento para seres humanos.
Em cada recife visitado, os pesquisadores esticaram uma linha de 20 metros (m), técnica conhecida pelos ecólogos como transecto, e mapearam todo o lixo com mais de 5 centímetros em ambos os lados, a uma distância de até 1 m, em profundidades de 30 a 150 m. No total, foram 1.231 transectos em 84 recifes de 25 localidades nos oceanos Atlântico, Pacífico e Índico.
Os pesquisadores mergulharam para contar os detritos e, em profundidades maiores, usaram Veículos Operados Remotamente (ROV) equipados com câmeras ou submersíveis, tripulados por um piloto e um pesquisador. No total, foram encontrados 258 pedaços de lixo em 68 mil m2 de área estudada. “Mesmo nos locais onde não havia lixo na área de estudo, encontramos detritos nas proximidades”, diz Pinheiro.
“A quantidade total de lixo pode parecer pequena, mas a região estudada representa uma pequena fração da área total dos recifes”, ressalta o biólogo Ronaldo Christofoletti, da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp), que não participou do estudo. Para ele, se a mesma densidade de lixo dos locais mais poluídos fosse distribuída sobre um campo de futebol, bastaria dar alguns passos para se deparar com um fragmento de lixo. “A análise mostra claramente que o plástico está espalhado em quase todos os recifes do mundo e, em alguns locais, em quantidades relativamente grandes”, diz ele. Segundo o artigo, o local onde foi encontrada a maior densidade de plástico – média de mais de 20 itens por m2 – foi Comores, um conjunto de ilhas próximas ao sudeste da África.
Mapa do lixo
Os pesquisadores identificaram os fatores que ajudam a prever os locais onde a maior quantidade de lixo chega até os recifes, como a proximidade de centros urbanos, especialmente em países em desenvolvimento — onde a cultura tradicional de pesca e o descarte inadequado de materiais podem colocar em risco a maior biodiversidade de peixes. A proximidade da foz de rios, que levam o lixo para o mar, e o turismo desordenado também aumentam a quantidade de detritos nos recifes, segundo o estudo.
A quantidade de lixo também parece aumentar em profundidades maiores. “Os pescadores devem estar pescando em regiões mais profundas, talvez porque as populações de peixes estejam mais escassas nas zonas rasas”, supõe Pinheiro. Além disso, o movimento das ondas no raso pode levar parte do material para ambientes mais profundos. “Ao contrário do Brasil, a maioria dos recifes de coral do mundo fica em ilhas com terreno íngreme, onde o lixo tende a afundar”, explica Pinheiro.
A quantidade de lixo aumentou, ainda, nas proximidades das áreas protegidas, onde há muitos peixes grandes. Em uma delas, no litoral norte de São Paulo, Pinheiro encontrou uma linha de pesca com a isca ainda presa no anzol. “O lixo compromete a beleza dos recifes, que podem deixar de atrair turistas.”
“O artigo mostra que, ao lado da pesca predatória, do aquecimento global e do aumento da acidez e do nível do mar, o plástico é mais um fator de risco para os recifes, podendo acentuar a perda de biodiversidade e aumentar o impacto na oferta de peixes comerciais”, ressalta Christofoletti.
Alimento plástico
Se o plástico nos recifes é em grande parte um problema local, para os animais marinhos que se deslocam a grandes distâncias a relação com o material é mais complexa. Para saber o risco que o plástico representa para esses bichos, é preciso verificar se a rota utilizada pelos animais passa por locais onde o detrito flutuante se acumula. Um estudo publicado na revista Nature Communications com pardelas, grupo de 77 espécies de aves migratórias que sobrevoa grandes extensões dos oceanos, verificou que elas ficam expostas ao plástico flutuante em diversos pontos do globo que coincidem com suas rotas de voo.
“As pardelas confundem o plástico com comida, mas não conseguem regurgitá-lo com facilidade. Ele pode machucar o estômago ou ocupar o espaço do alimento”, disse a Pesquisa FAPESP a bióloga britânica Bethany Clark, da Birdlife International, uma parceria internacional de organizações não governamentais (ONG) focadas na conservação de aves. Com o tempo, o material pode eliminar substâncias tóxicas e microplásticos.
Os pesquisadores puseram anilhas com dispositivos de rastreamento de localização em mais de 7 mil aves e, até um ano depois, verificavam a rota percorrida quando elas voltavam ao ninho. Depois, cruzaram esses dados com a localização das ilhas de plástico flutuante, determinada em estudos de outros grupos. “Os mares Mediterrâneo e Negro são os locais onde as aves correm o maior risco de encontrar plástico”, diz Clark.
Os pesquisadores perceberam que as quatro espécies de pardelas que frequentam o Mediterrâneo são também as mais ameaçadas do grupo, provavelmente por um acúmulo de fatores de risco relacionados com locais populosos e que usam o mar para atividades variadas. No Brasil, a pardela-de-trindade (Pterodroma arminjoniana), uma espécie que se reproduz na ilha de Trindade, na costa do Espírito Santo, voa até o sul, passando perto das ilhas de plástico que existem no Atlântico.
Segundo Clark, as pardelas são um dos grupos de aves mais ameaçadas do mundo, e o plástico pode tornar os animais mais vulneráveis a essas ameaças. Além disso, na estação reprodutiva, as aves podem acabar oferecendo os detritos aos filhotes.
As pesquisas devem impor mais pressão nos 175 países que fecharam um acordo com o Programa das Nações Unidas para o Meio Ambiente (Pnuma) para acabar com a poluição plástica. “É um momento chave para combater o plástico desde a produção até a reciclagem”, diz Pinheiro, que defende investimento em novas tecnologias para substituir o plástico.
Artigos científicos
PINHEIRO, H. T. Plastic pollution on the world’s coral reefs. Nature. v. 619, p. 311-16. 12 jul. 2023.
CLARK, B. L. et al. Global assessment of marine plastic exposure risk for oceanic birds. Nature Communications. v. 14, 3665. 4 jul. 2023.