A necessidade de compreender melhor a ação do vírus Sars-CoV-2 no epitélio pulmonar, tecido afetado pelo patógeno em pacientes com Covid-19, levou a startup paulista TissueLabs a criar uma plataforma que mimetiza o órgão. Batizada de MatriWell, o aparato em formato tridimensional (3D) é dotado de uma matriz extracelular, componente que age como suporte para as células presentes no pulmão, permitindo que elas fiquem expostas a um ambiente similar ao do organismo humano. A ideia é que o dispositivo seja usado para testar drogas contra o novo coronavírus.
“O MatriWell é um dispositivo para cultura celular criado para oferecer às células epiteliais um microambiente idêntico ao natural”, explica o médico Gabriel Liguori, CEO da TissueLabs, empresa especializada em tecnologias para fabricação de órgãos e tecidos em laboratório. “A plataforma é uma interface ar-gel na qual as células epiteliais pulmonares ficam expostas ao ar em um de seus polos e às proteínas de matriz extracelular em outro, exatamente como acontece no pulmão. Com isso, as células podem ser cultivadas de maneira mais representativa.” A matriz extracelular é um substrato formado por uma combinação de centenas de proteínas sobre o qual as células de diversos tecidos crescem.
O aparato, de uso único, é composto por duas partes. A primeira é uma peça de resina biocompatível, fabricada de forma a permitir ser inserida em placas de cultura de 12 poços (pequenos reservatórios para cultura de células). Tecnicamente um inserto (dispositivo encaixável em outro), ela se assemelha a um copo com o centro afunilado, medindo 2 centímetros (cm) de altura por 2 cm de diâmetro. A outra parte é um plug de hidrogel composto por proteínas que formam a matriz extracelular pulmonar. “Esse plug é o material de suporte sobre o qual as células epiteliais serão cultivadas”, diz Liguori (ver infográfico).
Segundo o CEO da TissueLabs, existem hoje duas alternativas para cultivo de células pulmonares. A primeira, menos representativa do ambiente pulmonar, faz uso de placas de poliestireno. Nesse caso, as células, além de não estarem em contato com a matriz extracelular presente no tecido nativo, ficam submersas em meio de cultura, sem contato com o ar. O segundo método são as interfaces ar-líquido, onde as células pulmonares ficam em contato com o ar em um de seus polos, mas ainda não são expostas à matriz extracelular no outro. “É sabido que a matriz extracelular tem papel fundamental no comportamento celular, direcionando a célula a expressar um fenótipo [características observáveis] correspondente ao do tecido in vivo”, esclarece Liguori.
De forma geral, as pesquisas biomédicas usam culturas bidimensionais (2D), como as duas citadas acima. Com o MatriWell, a TissueLabs, abrigada no Centro de Inovação, Empreendedorismo e Tecnologia da Universidade de São Paulo (Cietec-USP), quer oferecer aos cientistas a possibilidade de migrar suas pesquisas do ambiente 2D para o 3D. “Nossa plataforma reproduz o que ocorre no pulmão. Esse é o principal diferencial em relação às alternativas existentes no mercado para estudos in vitro do epitélio pulmonar”, diz Liguori.
Processo de validação
A bioquímica Viviane Nunes, coordenadora do Laboratório de Estudos da Fisiologia da Pele e Engenharia Tecidual da Escola de Artes, Ciências e Humanidades da Universidade de São Paulo (EACH-USP), e a estudante de doutorado Jennifer Faria dos Santos, orientada por ela no programa Interunidades em Biotecnologia, vinculado ao Instituto de Ciências Biomédicas (ICB) da USP, trabalham na validação do dispositivo. “Trata-se de uma tecnologia importante para o estudo dos mecanismos de virulência do Sars-CoV-2, além da identificação de alvos terapêuticos e realização de ensaios com drogas, orientando futuros ensaios pré-clínicos e clínicos”, destaca Nunes.
Segundo a pesquisadora, ela e a aluna já fizeram a caracterização preliminar das células pulmonares e as cultivaram no ambiente 3D. “Verificamos que as células foram capazes de aderir, proliferar e se manter viáveis nas condições tridimensionais do MatriWell”, conta. Agora, elas verão se a morfologia do tecido formado é adequada e coerente com o epitélio pulmonar. “Ensaios preliminares mostram que o modelo é viável.”
O objetivo do estudo, diz Nunes, é reproduzir um sistema que mimetize o microambiente pulmonar, formado pelo epitélio e o parênquima pulmonar. “O parênquima é composto por fibroblastos, células com grande relevância na fisiopatologia da Covid-19. Eles estão envolvidos nas tempestades de citocina, uma reação hiperinflamatória associada a casos graves da Covid-19”, esclarece Nunes. “O modelo permitirá acessar aspectos da fisiopatologia da doença envolvendo a participação de citocinas e seu efeito sobre a estrutura do pulmão.”
O MatriWell foi lançado no fim de abril, após quatro semanas de desenvolvimento, e já recebeu dezenas de pedidos, cerca de metade do exterior. Uma placa de cultura com 12 dispositivos deverá custar em torno de R$ 1,2 mil. No momento, contudo, a TissueLabs, empresa apoiada pelo programa Pesquisa Inovativa em Pequenas Empresas (Pipe) da FAPESP, oferece a plataforma gratuitamente para pesquisadores brasileiros e estrangeiros que estejam trabalhando diretamente com o Sars-CoV-2 e queiram estudar as células pulmonares. Os interessados devem preencher um formulário no site da startup. “Recebemos no passado um importante incentivo da FAPESP, que permitiu a criação e o crescimento da TissueLabs. Hoje, retribuímos com essa tecnologia que acreditamos ser importante para enfrentar a Covid-19”, diz o CEO da TissueLabs.
Projeto
Otimização e padronização da fabricação de um hidrogel mimético à matriz extracelular para aplicações em medicina regenerativa, engenharia de tecidos e outros estudos in vitro (no 18/15450-5); Modalidade Pesquisa Inovativa em Pequenas Empresas (Pipe); Pesquisador responsável Gabriel Liguori (TissueLabs); Investimento R$ 171.690,15.