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Alfredo Bosi

Alfredo Bosi: Poesia como resposta à opressão

Recém-eleito para a Academia Brasileira de Letras, professor reafirma crença no poder do lirismo

Para Alfredo Bosi, professor da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo (USP), a eleição, em março passado, para a Academia Brasileira de Letras (ABL) veio com pelo menos dois altos significados simbólicos. Estudioso de Machado de Assis, ele passou a pertencer à instituição fundada pelo autor de Dom Casmurro (1899). Afora isso, sua cadeira, a de número 12, foi anteriormente ocupada pelo cardeal Dom Lucas Moreira Neves, a quem Bosi – um paulistano de 66 anos – conheceu na juventude e cuja trajetória, de aproximação entre o pensamento católico e as questões sociais, serviu-lhe como referência.

Do lado da ABL, a chegada de um intelectual pleno, de esquerda e de ação como Alfredo Bosi ratifica o que deve ser um dos objetivos da entidade: tornar-se um amplo retrato da cultura do país, ao mesmo tempo em que pode estimular seu maior contato com a universidade. Nas entrevistas que concedeu logo após a vitória – por 27 votos a 10, dados ao jornalista e escritor maranhense José Louzeiro (houve uma abstenção) –, o professor insistiu que um de seus propósitos é atuar como uma ponte entre os dois mundos acadêmicos.

Formado em Letras pela USP em 1960, Bosi lá começou a dar aulas de literatura italiana em 1962, após regressar de um período de estudos na Itália. Em 1964, defendeu tese de doutorado sobre Pirandello e em 1970 tornou-se livre-docente, com um trabalho a respeito da poesia de Leopardi. Àquela altura, porém, ele já manifestava outro interesse – não por acaso, é também de 70 o seu clássico História Concisa da Literatura Brasileira. Dois anos depois Alfredo Bosi passaria a lecionar a disciplina no Departamento de Letras Clássicas e Vernáculas da FFLCH.

Editor da revista do Instituto de Estudos Avançados (IEA) desde 1987 e diretor do mesmo instituto a partir de 1997, Bosi coordenou, em meio a outras atividades, a Comissão de Defesa da Universidade Pública (1998).

Entre seus livros destacam-se, além de História Concisa da Literatura Brasileira, O Ser e o Tempo da Poesia (1977), Céu, Inferno: Ensaios de Crítica Literária e Ideológica (1988), Dialética da Colonização (1992), Machado de Assis: o Enigma do Olhar (1999) e Literatura e Resistência (2002). Foi exatamente sobre sua obra que Alfredo Bosi fez questão de discorrer na entrevista a seguir. Compreenda-se. É ela que o tornará, de fato, imortal.

No texto que abre o volume Leitura de Poesia (2001), organizado pelo senhor, fica claro que esse gênero está na origem de suas preocupações como crítico literário. Em O Ser e o Tempo da Poesia, o senhor busca analisar o poema em sua natureza, por assim dizer, formal e em seu papel ideológico. A conclusão é de que se trata de um gênero que não deveria privilegiar nem o tecnicismo (a arte pela arte), nem o sectarismo político (o engajamento), tampouco o mercado (vale dizer, o consumismo). “A poesia traz, sob as espécies da figura e do som, aquela realidade pela qual, ou contra a qual, vale a pena lutar”, escreveu o senhor. Está aqui implícita uma crença no poder da palavra poética, que de algum modo remete ao poder do verbo, em si, de fazer com que o real se apresente ao homem. Pelo menos desde Crátilo, de Platão, esse é um ponto de debate que mobiliza poetas e pensadores. Em que medida a poesia consegue trazer ao homemcontemporâneo “a realidade pela qual, ou contra a qual, vale a pena lutar”?
Minhas primeiras aulas de literatura italiana no curso de Letras Neolatinas da Faculdade de Filosofia da USP, nas quais o professor Italo Bettarelo nos lia uma belíssima análise que Croce fez de uma passagem da Eneida, de Virgilio, reforçaram a convicção de que a poesia é a forma mais densa e mais intensa da expressão verbal. É claro que a palavra tem muitas funções. Quem atravessou a lingüística de um Jakobson, por exemplo, sabe que a palavra pode ser, às vezes, puramente referencial, puramente ligada à percepção imediata da realidade. Mas a palavra pode assumir outras funções: a função de ação, quando a palavra é eloqüente, é política, e uma função de expressão dos sentimentos mais profundos do homem – no caso, quando a palavra é lírica. A minha concepção de poesia tem muito a ver com o pre Domínio da expressão lírica. Croce dizia que a poesia é, acima de tudo, liricidade, ou seja, ela está profundamente ligada às experiências mais íntimas e mais significativas do ser humano. Se nós passarmos dessa concepção, que se aproxima do idealismo alemão, filtrado por Croce, para uma vertente dialética ligada à Escola de Frankfurt, sobretudo Adorno, veremos que se mantém a idéia de que a poesia exprime a subjetividade mais radical do ser humano. Mas, além dessa característica existencial, fundamental, a poesia terá também, ou poderá ter, o papel de contradizer a generalidade abusiva das ideologias, em especial das ideologias Dominantes. Por quê? Porque as ideologias, em geral, racionalizam e justificam o poder. Há no sistema capitalista um uso constante, ideológico, da palavra, que procura convencer o usuário a transformar tudo em mercadoria e a consumir toda mercadoria como bem supremo. Ora, nesse contexto particular, que nós estamos vivendo, que é uma sociedade de consumo, em que tudo passa a ter um valor venal, a palavra lírica soa como uma mensagem estranha porque ela se subtrai a esse império da ideologia, nos remete a certos traços humanos, universais, a certos sentimentos comuns, à humanidade, como a angústia em face da morte, a indignação em face da opressão – enfim, a palavra lírica está em tensão com a ideologia Dominante, e isso é um papel evidentemente dialético. Nesse sentido, a concepção de poesia que eu professo tende a amarrar as duas vertentes de que falei. Resumo-as: a vertente da poesia como expressão, que é a grande conquista de Benedetto Croce, cuja estética é toda uma meditação sobre o caráter expressivo, existencial da linguagem, e a vertente da dialética negativa da Escola de Frankfurt, que procura mostrar como a poesia traz uma voz original, muitas vezes estranha, mas de todo modo resistente à ideologia Dominante. Essa conjunção de Croce e Adorno não deve causar estranheza, porque ambos foram leitores muitos atentos da dialética hegeliana, que tem como um dos pontos vivos a proposta da antítese, da negatividade. A poesia como resposta às ideologias opressivas é o fulcro mesmo das minhas ponderações sobre a lírica que estão expressas em vários momentos da minha obra e cristalizadas no ensaio que se chama Poesia Resistência, um dos capítulos de O Ser e o Tempo da Poesia.

Professor e historiador da literatura brasileira, era inevitável que o senhor acabasse, a certa altura de sua carreira, se defrontando com o desafio de analisar em profundidade a obra de Machado de Assis – o que ocorre em O Enigma do Olhar. Qual a raiz das personagens machadianas? Entre os elementos responsáveis pela perenidade dos heróis trágicos de Machado, estaria o ensinamento aristotélico de que eles não devem ser nem inteiramente bons nem inteiramente maus?
As personagens machadianas não são homogêneas, isto é, não convém ler a ficção de Machado de Assis como se fosse apenas uma galeria de figuras típicas, de personagens que representariam o espelho da vida social brasileira da segunda metade do século 19. Essa leitura estritamente sociológica da obra de Machado é uma leitura unilateral. Por quê? Se, de um lado, ele foi de fato um agudo observador da nossa estrutura social assimétrica, em que havia os que mandavam, os que podiam e aqueles que viviam de favor, os agregados; se é verdade que Machado de Assis foi um leitor das diferenças sociais, de outro lado ele viu por dentro aquilo que a sociologia da literatura costuma ver por fora, como tipos cristalizados da sociedade. Explico-me: há algumas personagens na obra de Machado que praticamente encarnam certo tipos sociais. Um personagem como Cotrim (de Memórias Póstumas de Brás Cubas, de 1881), um homem bem estabelecido na vida e muito estimado porque favorece os pobres, as irmandades da época, é, ao mesmo tempo, violento com os escravos. Ele seria uma espécie de alegoria de uma parte de nossa classe Dominante. Então um personagem como Cotrim leva águas para o moinho da tipificação, mas a obra de Machado de Assis não é feita só dessas personagens da classe Dominante, com traços de uma burguesia ainda atrasada e que convive com a escravidão e que, portanto, tem elementos fortes de hipocrisia na sua conduta, ou, no outro extremo, de cinismo. Essa caracterização existe, mas não é a única. A sutileza da obra de Machado vem de mostrar que dentro de cada classe social há pessoas diferenciadas. As personagens de Machado de Assis que nos interessam hoje não se reduzem a tipos sociais cristalizados. Veja as agregadas. Elas constituem uma certa classe, um certo grupo que nós olhamos do alto, sociologicamente. Mas quando descemos ao texto, quando entramos no segredo do texto, vemos que há diferenças muito sensíveis de comportamento e de vida interior entre as diversas agregadas que surgem na obra machadiana. Compare-se, por exemplo, uma personagem como Guiomar, de A Mão e a Luva (livro de 1875), que é ao mesmo tempo uma agregada e uma pessoa fria, oportunista, que deseja subir na vida e se vale da afeição de sua protetora para isso – seria, portanto, um tipo completo do agregado ambicioso, uma figura sociologicamente bem representativa. Compare-se essa personagem com Helena, do romance que tem o mesmo nome (publicado em 1876), ou com Estela, de Iaiá Garcia (de 1878), que são personagens que também vivem numa condição de dependência, todavia não suportam isso e se rebelam dignamente – ou pelo sacrifício, pela morte, no caso de Helena, ou pelo estoicismo, em Estela. Eu estou citando esses exemplos para mostrar que em Machado existe o tipo social e existe a pessoa na riqueza mesma de sua diferença. Isto em relação à primeira parte da pergunta.

E quanto à segunda parte?
Quanto à segunda, sobre o caráter bivalente dos heróis trágicos, eu acho que pode se ajustar, sim, às personagens machadianas, nas quais nós encontramos virtudes e defeitos, coragem e covardia. Uma personagem tão discutida como Bentinho, do romance Dom Casmurro, representa exatamente esse conjunto muitas vezes dramático de amor e ódio, de confiança e suspeita, de uma paixão ingênua, no princípio e, depois, de um ciúme rancoroso. Aliás, não se deve julgar a personagem; esse é um vício grave de uma crítica moralista, que procura identificar certos traços de classe na personagem e a reduz a um conjunto de características que podem ser condenadas pela nossa visão ideológica atual. Machado não se fixa na condenação. Certamente ele queria mostrar as oscilações internas e sobretudo os dramas que as personagens vivem, que fazem delas ora figuras estóicas, cheias de dignidade, ora pessoas frágeis. Aí está a riqueza da obra machadiana: mostrar essas contradições, algo que o naturalismo típico do século 19 não conseguia porque caracterizava a priori a personagem e era incapaz de mostrar suas oscilações internas. Eu diria que a raiz das personagens de Machado é a idéia de que o homem constitui um ser complexo e freqüentemente imprevisível, senão enigmático para o próprio narrador. E ele está o tempo todo aprofundando o enigma do ser humano. Acho que é isso que dá a Machado uma superioridade em face do realismo redutor de sua época.

Quando o senhor regressou ao Brasil, em 1962, após um ano de estudos na Itália, estava em voga a discussão sobre identidade cultural. Naquele momento, prevalecia a ação da esquerda, com os CPCs, por exemplo. Depois vieram os militares e tudo o que sabemos. Pois bem: há um certo tempo, o conceito de identidade cultural vem sendo deixado de lado – fala-se, por exemplo, em identificação cultural, na qual os elementos trocam o tempo todo de lugar. Isso de algum modo acentua o papel da resistência cultural ou este também é um conceito ultrapassado, dentro da dinâmica que se verifica na cultura? (Lembrando sempre que o senhor entende a cultura brasileira, como não poderia deixar de ser, como algo plural.)
De fato, nos anos 60, sobretudo antes do golpe militar de 64, havia um conjunto de forças políticas e culturais que apostavam na criação de uma identidade nacional, que se oporia especialmente ao imperialismo cultural de base norte-americana, que já se estendia sobre o mundo, em particular sobre os países dependentes da América Latina. Então a polaridade nacional e antinacional, ou brasileiro versus imperialista, era uma componente muito ativa da ideologia de esquerda, que procurava, mediante a criação folclórica, no cinema, no teatro, na música, realçar esses traços brasileiros, populares, em oposição ao imperialismo cultural. Era uma posição que tinha, vamos dizer, uma grande coerência e circulava nos meios universitários, jornalísticos. O que aconteceu depois do golpe, e de uma maneira mais intensa nos anos 70 e 80, foi uma revisão desse conceito de uma identidade nacional muito fechada, muito homogênea, na medida em que a civilização de massas e, dentro dela, a indústria cultural, globalizada, avançou a tal ponto que começou a ficar difícil distinguir, isolar, o que seria puramente nacional do que seria já uma exploração de motivos brasileiros dentro de um quadro de cultura de mercadoria, de consumo global. De alguma forma esse distanciamento de uma ideologia nacional ou nacionalista está vivo até hoje. Acho muito difícil atualmente, depois dos avanços da globalização e da sociedade de consumo, nós recuperarmos, na sua pureza, o conceito de cultura nacional autônoma – como se propunha entre os anos 50 e 60. Mas o que eu vejo hoje é que em plena era da globalização, e em face desse processo que parece irreversível, há características das culturas locais, com suas identidades, que apareceram, se opuseram com muita força. Nós vivemos um período estranho, que mereceria um estudo antropológico aprofundado, em que convivem fenômenos de cultura de massa muito próximos do imperialismo cultural americano e uma pesquisa refinada das fontes populares locais. Então, hoje, um cineasta brasileiro de valor é capaz de, ao mesmo tempo, usar técnicas modernas, refinadas, aprendidas com o cinema americano e europeu, para veicular imagens e transmitir sentimentos que têm raízes muito profundas na vida popular. É o que acontece nesta obra-prima do cinema brasileiro Abril Despedaçado (de Walter Salles Jr.). É curioso este fenômeno: em vez de falarmos em identidades nacionais globais, o que não deixaria de ter também um viés ideológico, hoje procuramos, dentro da vida popular, a sua pluralidade, a sua riqueza. Estão aí movimentos religiosos, movimentos de cultura ecológica, movimentos femininos – o que a gente sente é que há um despertar de consciência que propõe formas especiais de suas experiências particulares, que não querem se submeter a essa rotina da cultura de massas. O conceito de identidade nacional está há tempos em crise e foi substituído por duas forças opostas e contemporâneas: pela globalização, que não tem pátria (esse é o lado que eu chamaria de negativo do processo), e, positivamente, pelo aprofundamento das vivências populares. Isso aparece na música, no cinema, nos discursos críticos. É essa segunda vertente que nos interessa de perto: como é que a cultura popular filtrada por artistas eruditos, muitas vezes universitários, está ganhando novas formas. Esse é um processo complexo que ainda está se desenvolvendo diante dos nossos olhos – e que vale a pena estudar. Isso acontece no Brasil, mas também em outros pontos do planeta: no Irã, que tem um cinema extraordinário, na Índia, em países, enfim, que foram violentamente modernizados nos últimos 50 anos, mas cujos intelectuais estão sempre trabalhando imagens, sentimentos, ligados à experiência popular. Eu diria que hoje a globalização, que se opôs à identidade nacional, não é mais um pensamento único; ela está sendo contrastada por aprofundamentos locais, que vêm dando uma riqueza enigmática, paradoxal, à cultura contemporânea.

Em Dialética da Colonização, livro que foi colocado no mesmo patamar de obras fundamentais de Sérgio Buarque de Holanda e Gilberto Freyre, o senhor discorda muitas vezes desses dois pensadores. Na sua opinião, existe em Sérgio Buarque a “sublimação do bandeirante” e em Freyre, a “sublimação do senhor-de-engenho”. O senhor poderia retomar essa questão e, fazendo uma auto-análise, discorrer sobre o peso de certos ideários em sua compreensão do Brasil?
No primeiro capítulo de Dialética da Colonização eu me preocupei em rastrear na nossa melhor historiografia crítica as grandes visões do Brasil, sobretudo aquelas que foram formuladas por estudiosos dos anos 30. Essa década foi extraordinariamente fecunda; nela, muitos intelectuais brasileiros tiveram um projeto de conhecer o Brasil e, se possível, de transformá-lo. A década de 30 é um divisor de águas entre uma visão ufanista do país e uma visão crítica, de reconstrução, interessada em redefinir a questão da identidade nacional de que falávamos há pouco, de definir o homem brasileiro. Assim, eu não poderia deixar de me debruçar sobre os dois maiores intérpretes do Brasil naquele decênio e, não por acaso, tive de falar da obra de Gilberto Freyre e de Sérgio Buarque de Holanda, dois nomes centrais, autores de duas obras clássicas, Casa-Grande & Senzala (de 1933) e Raízes do Brasil (de 1936). Minha leitura não foi cega. Não fiz uma leitura de mera admiração pela riqueza estilística ou pela profundidade de observação daqueles autores. Fiz também um esforço para entendê-los em sua essência e para manter um distanciamento, o que não é fácil diante deles, ambos bastante persuasivos. Minha primeira reação foi sentir que havia, nos dois pensadores, uma forte idéia de cultura como aglutinação – mais do que isso, como harmonização do colonizador e do colonizado. Diante desse entendimento, o outro lado, que é o da violência, da exploração – dos bandeirantes que violentavam as índias, que destruíram totalmente as missões jesuíticas, ou do senhor- de-engenho, que criou uma civilização onde houve muita violência também -, esse outro lado, eu dizia, não estava ausente, porque os dois autores eram muito lúcidos, mas ficava em modesto segundo plano. Achei que era preciso dizer, sem nenhum demérito daqueles extraordinários explicadores do Brasil, que as imagens decorrentes de suas obras teriam alguma coisa a ver com o que a gente chamaria de “sublimação” – do senhor-de-engenho e do bandeirante (e, mais tarde, do senhor do café). É claro que depois, à medida que vamos lendo e relendo os dois autores, vamos pontuando outros aspectos – de antropologia popular, por exemplo, que eles viram com muita argúcia. Mas o sentimento de que eles sublimaram o colonizador ainda está presente na minha leitura. Terá isso a ver com uma cultura de esquerda em que eu me formei? Talvez, por que não? Não farei aqui uma auto-análise ideológica, porque, naturalmente, outros farão melhor do que eu. Os leitores de fora em geral têm mais argúcia para perceber quais são as raízes ideológicas do nosso pensamento. Mas admito que passei por um distanciamento em relação àqueles dois insignes explicadores do Brasil.

Ainda sobre Dialética da Colonização. Em um posfácio, o senhor analisou a situação da cultura brasileira no ano de lançamento do livro, em 1992. Onze anos depois, qual avaliação o senhor faria da cena cultural do país? O posfácio continua válido ou por acaso houve alguma mudança digna de nota?
De maneira geral, eu manteria as observações que fiz no posfácio de Dialética da Colonização. O importante naquele adendo era mostrar que aquelas três culturas que eu levantara – cultura popular, cultura universitária e cultura de massas – estavam cada vez mais imbricadas; que na época da globalização era muito mais difícil isolar as três vertentes. Eu notava, com certo espanto, o crescimento extraordinário das seitas pentecostais, que, apesar de seus elementos ultratradicionais, profundamente regressivos, no sentido quase de uma superstição – em oposição a uma Igreja Católica de esquerda, progressista, que procura se aproximar da modernidade -, se valiam dos grandes meios de comunicação de massa e lançavam mão de motivações do capitalismo selvagem moderno. Era um fenômeno de alguma forma novo, que não tinha sido contemplado na relação entre cultura de massa e cultura popular que eu havia feito no corpo da obra – daí a necessidade do posfácio. Eu acho que a relação entre cultura de massa e cultura popular continua a merecer um aprofundamento em face do fenômeno das seitas, que é planetário e cresce rapidamente na periferia das metrópoles. Ainda hoje, em 2003, nós estamos diante do fenômeno de imbricação de atitudes extremamente regressivas com formas de ultramodernidade capitalista, uso da mídia, apelo constante ao dinheiro – em suma, algo que não deixa de ser deprimente para quem, durante tantos anos, procurou viver na fronteira entre cristianismo e socialismo. Minha visão progressista dos valores cristãos não deixa de ficar muito perplexa diante de um uso profundamente capitalista de textos, de mensagens do passado bíblico. É claro que eu teria mais a dizer sobre esse fenômeno da imbricação daquelas três culturas, mas o crescimento das seitas – que, repito, não acontece apenas no Brasil; ocorre nas periferias das metrópoles latino-americanas que estão submetidas ao capitalismo selvagem – é algo que ainda me chama muito a atenção.

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