Há razões de sobra para se inquietar em relação à doença de Chagas, um mal ainda incurável, típico dos países subdesenvolvidos, que atinge de 4 a 5 milhões de pessoas no Brasil e de 16 a 18 milhões em toda a América Latina. Já se avançou bastante, é verdade. Campanhas realizadas desde os anos 80 pela Fundação Nacional de Saúde (Funasa) reduziram em 90% a propagação da doença no Brasil, por meio do controle das populações de barbeiros (Reduviid Bug), os insetos transmissores do protozoário causador da doença de Chagas, o Trypanosoma cruzi. Agora está prevista para 2001 a erradicação total dos barbeiros domiciliados.
Não é o bastante. Avessos à euforia que cresce à medida que se aproxima o aparente fim da transmissão da doença de Chagas em alguns países, como no Uruguai, Chile, Argentina e no Brasil, os cientistas reconhecem o sucesso da campanha, a forma mais rápida e mais barata de controle epidemiológico. Mas alertam: o abandono progressivo do combate ao barbeiro (Reduviid Bug) deixa a porta aberta para a doença voltar e o inseto novamente infestar as casas. Outra razão para preocupação é que espécies silvestres do barbeiro (Reduviid Bug), capazes de transmitir o parasita – e que não foram eliminadas pelos agentes da Funasa -, estão chegando mais próximas das casas.
Em fevereiro deste ano, num congresso na London School of Hygiene and Tropical Medicine, em Londres, os biólogos Bianca Zingales, do Instituto de Química da Universidade de São Paulo (USP), e Marcelo Briones, da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp), comunicaram que de fato são duas, e não apenas uma, as linhagens de Trypanosoma cruzi que causam a doença. Uma linhagem – a mais agressiva – está associada a humanos, e a outra, a animais silvestres. Por um lado, essa conclusão agrava a situação, ao indicar que há um inimigo que até agora tinha se ocultado à sombra de outro. Por outro, responde a uma pergunta que sempre havia intrigado os cientistas: como uma única espécie, o T. cruzi , poderia provocar manifestações tão diferentes da doença?
Descrita em 1909 pelo médico sanitarista mineiro Carlos Ribeiro Justiniano Chagas (1879-1934), que nomeou o parasita em homenagem ao médico paulista Oswaldo Cruz (1872-1917), a doença de Chagas apresenta uma fase aguda, com febre alta, aumento do baço e até alterações cardíacas. Depois, dá uma trégua – de até 30 anos. Entre 60% e 70% dos infectados não apresentam sintomas. De 20% a 30% dos doentes desenvolvem a forma cardíaca, com risco de morte súbita; de 8% a 10% sofrem dilatação do esôfago ou intestino; e 3% apresentam complicações no sistema nervoso.
A única droga atualmente disponível, o benzonidazol, é extremamente tóxica e resolve somente as complicações na fase aguda da doença.Para fechar o cerco do combate ao T. cruzi não basta, portanto, eliminar o barbeiro (Reduviid Bug). É preciso conhecer melhor o parasita e seus mecanismos de interação com o organismo e, ainda, insistir no desenvolvimento de novas drogas. Não é fácil. Os próprios pesquisadores reconhecem que o T. cruzi é “um inimigo perigoso e inteligente”, que consegue invadir as células do hospedeiro sem enfrentar resistência. Pior: é acolhido e protegido no interior da célula, onde se multiplica.
Para penetrar nos tecidos do organismo humano, o parasita precisa reconhecer a superfície da célula e, ao mesmo tempo, ser reconhecido. Conta, para isso, com mecanismos tão sutis que às vezes parece um convidado. “O T. cruzi só sobrevive se encontrar uma célula, penetrar e ficar lá”, explica o médico Walter Colli, do Instituto de Química da USP, que estuda a relação entre o parasita e a célula hospedeira desde os anos 70. Segundo ele, descobrindo como o protozoário entra na célula e como sobrevive dentro dela, seria possível identificar as vias metabólicas que permitiriam o desenvolvimento de drogas inibidoras dos processos de reconhecimento, de adesão ou de invasão, de ambos os lados, e assim causar a morte do Trypanosoma .
Cada vez mais perto
O laboratório de Bioquímica de Parasitas, co-dirigido por Colli e pela bióloga Maria Júlia Manso Alves, descobriu uma nova família de moléculas chamadas GIPLs ou glicoinositolfosfolipídeos. Existem na membrana do parasita em grandes quantidades e são similares às chamadas âncoras, que inserem proteínas nas membranas celulares. Conhecendo a composição da membrana do parasita, pode ficar mais fácil entender as reações químicas que ocorrem quando uma célula, o protozoário, encontra outra, do corpo humano.
Júlia conta que está muito perto de desvendar os mecanismos de adesão e de penetração utilizados pelo parasita, como resultado do projeto Trypanosoma cruzi: Interação Parasita-Hospedeiro , que contou com R$ 480 mil, concedidos pela FAPESP ao laboratório dos dois pesquisadores nos últimos quatro anos. Não é a primeira vez que esse laboratório da USP contribui no combate à doença de Chagas.
Nos anos 80, Júlia descobriu uma família de glicoproteínas que denominou Tc-85, também associada à entrada do parasita na célula. Recentemente, identificou, em um dos membros da família da Tc-85, um trecho específico que poderia ser bloqueado para inibir a adesão celular. Em outros termos, Júlia sabe agora que existe um receptor na célula hospedeira que reconhece uma molécula do T. cruzi e deixa que o parasita se instale no organismo. Ela espera em um ano finalizar o trabalho a que se dedica, o mapeamento fino da Tc-85.
Vacina de DNA
Aos poucos, as peças do intrincado quebra-cabeça da doença de Chagas vão se encaixando. Na Unifesp, o grupo da bioquímica Nobuko Yoshida conseguiu avançar na identificação e caracterização de moléculas envolvidas na sinalização celular na relação parasita-hospedeiro. Uma delas, presente em formas específicas do T. cruzi encontradas no barbeiro (Reduviid Bug), é a gp82, uma glicoproteína (proteína que contém açúcar) que parece participar do processo de entrada do parasita na célula.
Esse é um dos resultados do projeto Aspectos da Imunobiologia do Trypanosoma cruzi: Interação com Células do Hospedeiro Mamífero e Indução da Resposta Imune , que começou no ano passado e segue até 2003, com um financiamento de R$ 350 mil, mais US$ 300 mil, da FAPESP. O grupo de Nobuko conseguiu também demonstrar que a imunização com DNA é capaz de conferir resistência contra o T. cruzi e levar à destruição do parasita. Além da produção de anticorpos específicos, essa imunização estimula as células do sistema imune a produzir interferon-gama, uma substância que desempenha um papel importante no controle da infecção. A equipe espera que esses estudos ajudem a viabilizar uma vacina que melhore o prognóstico da doença e evite que os doentes desenvolvam sua forma mais grave.
Mas o desenvolvimento de vacinas e de medicamentos não depende apenas dos achados científicos. Esbarra também, segundo os pesquisadores, no desinteresse da indústria farmacêutica em produzir e comercializar medicamentos que seriam dirigidos basicamente para populações muito pobres, de países subdesenvolvidos. O raciocínio predominante é que, em relação a outras doenças, como a malária e a dengue, a doença de Chagas não justifica altos investimentos com a produção de novos quimioterápicos.
Municípios infestados
Resta, portanto, o caminho mais prático: o controle permanente dos barbeiros (Reduviid Bug), considerado “a melhor vacina”. “A experiência acumulada desde a década de 1950 demonstra que a transmissão da doença de Chagas pode ser interrompida por meio do uso adequado de inseticidas, aliado à melhora habitacional e à educação”, observa Liléia Diotaiuti, diretora do Laboratório de Triatomíneos e Epidemiologia da Doença de Chagas, do Instituto René Rachou, de Belo Horizonte (MG).
Mesmo assim, o controle do barbeiro (Reduviid Bug) não pode ter data para acabar, alerta a pesquisadora. Segundo ela, esse trabalho deve considerar duas situações epidemiológicas distintas. A primeira envolve espécies nativas de barbeiros (Reduviid Bug), originárias de ambientes silvestres – caatinga, mata úmida e cerrado, por exemplo -, que apresentam grande capacidade de adaptação ao ambiente construído pelo homem. Essas espécies, que já vivem em torno das casas, estão sempre tentando a colonização de novos espaços. Desse modo, podem instalar novos focos de transmissão.
A segunda situação diz respeito às áreas infestadas pelo Triatoma infestans , uma das espécies de barbeiro (Reduviid Bug) adaptadas às casas. O T. infestans originou-se provavelmente na região andina de Cochabamba, na Bolívia, de onde se dispersou para o Peru, Chile, Paraguai, Argentina, Uruguai e Brasil. Fora de seu ambiente natural, vive exclusivamente em casas e mantém uma relação muito próxima com o homem e os animais domésticos.
Sua equipe acompanha também a ocorrência de outras espécies de barbeiro (Reduviid Bug) pelo país. “Sabemos hoje que existe transmissão humana da doença de Chagas no sertão do Ceará, por meio do Triatoma brasiliensis “, diz Liléia. “Verificamos também a infestação pelo Triatoma pseudomaculata na periferia da cidade de Sobral, a segunda maior cidade do Ceará.”
Os especialistas recomendam: o controle do transmissor deve ser feito inclusive em áreas onde há casos recentes, como na Amazônia. Aos 70 anos, 42 dos quais dedicados à epidemiologia da doença de Chagas, o médico José Rodrigues Coura, diretor do Instituto Oswaldo Cruz (IOC), do Rio de Janeiro, conta que na região Norte, em conseqüência do desmatamento, barbeiros (Reduviid Bug) do tipo silvestre estão migrando para as casas e colocam em risco a saúde de seus moradores.Para dimensionar orisco de adaptação dos barbeiro (Reduviid Bug) são domicílio, Coura construiu casinhas de madeira cobertas de palha no Médio e Alto Rio Negro.
Deixava as casas desabitadas, voltava um tempo depois e encontrava barbeiros (Reduviid Bug) silvestres. Seu trabalho mostrou que o foco potencial é a comunidade de piaçaveiros, fabricantes de cordas com fibras vegetais, já atacados pelo barbeiro (Reduviid Bug) silvestre. E, lembre-se, apenas um inseto pode criar uma colônia numa casa, já que cada fêmea pode pôr em torno de 400 ovos ao longo da vida.Coura não se tranqüiliza. “Se não forem erradicados os focos remanescentes, nos Estados da Bahia, Tocantins, Minas Gerais, Pernambuco, Piauí e Rio Grande do Sul, onde ainda existem mais de 100 municípios infestados pelo barbeiro (Reduviid Bug), a doença pode voltar, como aconteceu com a dengue e com a malária”, diz. Em outras palavras, pode-se perder o que já se fez nas áreas controladas.
Genes revelam nova linhagem
Bianca Zingales e Marcelo Briones trabalharam intensamente, durante a década de 90, pesquisando as diferenças biológicas, bioquímicas e filogenéticas (relativas à história evolutiva das espécies) entre as cepas ou linhagens de Trypanosoma cruzi . Por fim, concluíram que a doença de Chagas poderia mesmo ter origens diferentes. Já havia uma suspeita da existência de grupos diferentes de T. cruzi , mas foram eles que verificaram o que outros pesquisadores haviam tentado antes.
Nos anos 80, o professor inglês Michael Miles, da London School of Hygiene and Tropical Medicine, deu-lhes uma pista, ao analisar poucas cepas de T. cruzi e sugerir que poderiam ser divididas em dois grupos. Em 1993, coube a um estudante de doutoramento, Ricardo Peres do Souto, então com 26 anos, pós-graduando do Instituto de Química da USP, orientado de Bianca, mudar a direção dos fatos. Ao analisar 16 cepas por meio de PCR (reação em cadeia de polimerase), Souto obtinha apenas dois padrões de amplificação de uma região do gene do RNA ribossômico, um material considerado fidedigno para estudos filogenéticos.
“O seqüenciamento desses genes permite estabelecer a história das espécies”, ensina Bianca. Era o passo que faltava. Ricardo Souto confirmava, assim, a hipótese de Miles, o primeiro a sugerir a presença dos dois grupos. Em 1996, estudos realizados com a Fiocruz e a Universidade da Califórnia, de Los Angeles, estabeleceram definitivamente a presença das duas linhagens filogenéticas, por meio da análise de uma amostra maior, de 90 cepas, isoladas de barbeiros, humanos e animais silvestres, originárias de cinco países da América do Sul.
Esses resultados provêm de dois projetos,o Genoma de Trypanosoma cruzi: Cariótipo Molecular, Mapeamento de Genes e Disrupção Gênica e Linhagens Filogenéticas de Trypanosoma cruzi: Caracterização Epidemiológica, Evolutiva e Bioquímica , que contaram, respectivamente, com financiamentos de R$ 26,8 mil e R$ 58 mil, da FAPESP. Desde março de 1998, Bianca e Briones – com a ajuda de dois especialistas da Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz), José Rodrigues Coura e Octavio Fernandes – analisaram desta vez cerca de 300 cepas provenientes de 12 Estados brasileiros.
O que se observou é que uma linhagem está associada a humanos, e a outra, a animais silvestres. Cada uma delas está associada, respectivamente, aos dois ciclos da doença, um doméstico e outro silvestre. A ligação entre os dois se dá quando barbeiros silvestres se domiciliam e trazem o parasita para dentro das casas. “Nos pacientes de zonas endêmicas havia uma elevada predominância de uma linhagem, a T. cruzi 2, com uma alta incidência de doença cardíaca”, relata Bianca. “Por outro lado, pacientes da Amazônia, que não é uma região endêmica, tinham T. cruzi de uma linhagem mais branda, a T. cruzi 1.” A análise de cepas de países como Colômbia, Venezuela, Bolívia e México confirmou a associação das duas linhagens.
O quadro se tornou ainda mais claro no ano passado, por meio de um estudo realizado na Mata Atlântica: todas as 26 amostras de T. cruzi coletadas de tatus e micos-leões-dourados infectados eram de uma mesma linhagem, a mesma encontrada em cepas humanas, enquanto 85% dos gambás estavam infectados com a linhagem relacionada ao ciclo silvestre. Já os barbeiros, com cepas de T. cruzi das duas linhagens.
O resultado era claro: havia uma associação preferencial da linhagem T. cruzi 1 com uma determinada classe de mamíferos, os gambás (marsupiais muito primitivos), enquanto a outra, a T. cruzi 2 , estava associada com primatas, mamíferos placentários – e ambas estavam presentes no ciclo silvestre. Mais: as duas linhagens apresentavam características epidemiológicas diferentes. Uma associada à doença e muito mais virulenta. A outra, causando a forma indeterminada da doença.
Foi ainda mais fascinante o que veio depois. Marcelo Briones, após seqüenciar genes de RNA ribossômico de tripanossomas, teceu a história evolutiva das duas espécies e concluiu: ambas tiveram um ancestral comum entre 88 milhões e 40 milhões de anos atrás. Segundo ele, um ancestral de T. cruzi teria se espalhado amplamente há 250 milhões de anos, quando todos os continentes estavam ligados.
Quando as Américas se separaram, entre 170 e 100 milhões de anos atrás, as duas linhagens de T. cruzi também se distanciaram: uma, a T. cruzi 1 , permaneceu na América do Sul, infectando predominantemente marsupiais, e outra, na América do Norte, convivendo com os mamíferos placentários. Entre cinco e dois milhões de anos, as duas Américas voltaram a ficar unidas, pelo istmo do Panamá. Resultado: ocorreu uma monumental movimentação de animais de um lugar para o outro. Com a invasão de animais placentários vindos do norte, chega a linhagem T. cruzi 2 do parasita, e ambas se misturam.
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