Minha linha de pesquisa no Departamento de Hidráulica e Saneamento da Escola de Engenharia de São Carlos da Universidade de São Paulo [Eesc-USP] envolve temas de engenharia e de saneamento ambiental, mais especificamente como as atividades humanas influenciam a qualidade da água e geram o comprometimento dos processos ecossistêmicos e dos serviços ambientais. Também investigamos os impactos das atividades urbanas e agrícolas e como elas podem ser planejadas para minimizar os prejuízos aos sistemas aquáticos e favorecer seu equilíbrio.
A pandemia trouxe um contexto de grande experimento global com base na diminuição dos deslocamentos e com as alterações sociais e econômicas que ocorrem em períodos como esse. Do ponto de vista ambiental há uma oportunidade enorme de estudos. Com a participação de cientistas de outras instituições, fizemos uma pesquisa para entender como as medidas de isolamento social, e o consequente aumento no número de pessoas em casa, refletem na qualidade da água. Com as dificuldades para ir a campo e fazer coleta, usamos imagens de satélite e sensoriamento remoto para avaliar dois reservatórios da Região Metropolitana de São Paulo: Guarapiranga e Billings.
Comparando o mês de abril de 2019, antes das medidas de isolamento social, com o mês de abril de 2020, concluímos que as pessoas que vivem no entorno das represas passaram a usar mais água e a produzir mais esgoto doméstico. Nas proximidades desses reservatórios, existem muitas ocupações informais e irregulares. São pessoas que deixaram de sair para trabalhar e estão em casa, lavando roupa, louça, produzindo mais esgoto em áreas onde a cobertura de saneamento básico ainda é deficitária. O aumento de esgoto não tratado, que chegou a esses reservatórios, gerou maior carga de poluentes.
Com as imagens de satélite, a comparação do período que vai de abril de 2019 a abril de 2020, observamos um aumento de 500% em um pigmento indicador da presença de cianobactérias – microrganismos que se beneficiam de poluentes, matéria orgânica e nutrientes na água, sendo potencialmente tóxicas para os seres humanos. Escrevemos um artigo científico sobre esse trabalho e em maio deste ano o publicamos em um periódico. Os resultados indicam a necessidade de observar a estrutura de saneamento existente na cidade, que ainda não abrange muitas residências. Uma vez que esses mananciais são utilizados para abastecimento público, por causa da maior presença das cianobactérias – de difícil remoção –, poderá haver aumento nos custos de tratamento da água. O caso foi o primeiro reportado aqui no Brasil, relacionando isolamento social com prejuízos à qualidade da água. O estudo foi desenvolvido de forma totalmente remota.
Tenho 34 anos e moro em um apartamento em São Carlos. Estou aqui desde 2004, quando comecei a estudar na USP. Desde março do ano passado convivo apenas com a minha mulher. Nós dois estamos trabalhando em casa. Desde o início da pandemia, nosso contato com o mundo exterior tem sido basicamente ir ao mercado e fazer caminhadas nas proximidades de casa. Esse foi um dos maiores baques em nossas vidas, pois sempre gostamos muito de fazer exercícios e a pandemia nos limitou bastante nesse aspecto. Nossas famílias são de outras cidades e nesse período visitamos nossos parentes apenas duas vezes. Fizemos bate e volta, sem abraço e com máscara. Meus pais são dentistas e não pararam de trabalhar, assim como outros profissionais da área da saúde. Recorremos a ferramentas on-line para nos manter mais próximos, inclusive para comemorar aniversários.
Uma injeção de ânimo veio recentemente, com a notícia de que fui premiado pela Association for the Sciences of Limnology and Oceanography (Aslo) na área de ciências aquáticas. É uma honraria que tem várias ramificações. São seis categorias e em março deste ano fui indicado por um grupo de pesquisadores de diferentes países, como Estados Unidos, Itália e Brasil, na categoria Yentsch-Schindler Early Career Award, que contempla jovens pesquisadores. A entrega do prêmio aconteceu em 25 de junho, em evento on-line com participantes de todo o mundo.
Antes da pandemia, meus horários eram bem diversificados. Desde 2014, quando ingressei no departamento, tenho uma carga de trabalho docente bastante extensa, que inclui a graduação e a pós-graduação. Todo semestre são mais de 10 horas de aulas semanais, fora as atividades que envolvem a preparação das aulas e correção de provas e trabalhos. Minhas pesquisas e a orientação dos alunos, por sua vez, dependem muito das atividades de campo. Fiz pesquisa de campo no doutorado e mantive essa prática depois que me tornei professor.
Soube da necessidade de ficar em quarentena, em 16 de março do ano passado, em uma aula de graduação em laboratório. Ministro aulas para as engenharias ambiental e civil. Lembro que uma aluna comentou sobre a decisão da Unicamp, de suspender as aulas por conta da pandemia. Ela me perguntou como seria conosco. Respondi que imaginava que poderia acontecer por uma semana ou quinze dias, talvez. Foi a última aula que ministrei presencialmente.
A partir dali veio um grande impacto profissional e pessoal. Os meus orientandos que precisavam fazer coleta de água, ir para o meio do mato fazer experimentos em rios, lagos e reservatórios, coletar amostras e trazê-las para o laboratório tiveram que suspender as atividades. Estamos seguindo à risca os protocolos desde março de 2020. Quando possível, adaptamos as pesquisas que estão sendo feitas tentando priorizar revisões bibliográficas. Temos muitos dados que já foram levantados e que podem ser analisados. Dados preexistentes, obtidos em pesquisas anteriores ou até mesmo divulgados por órgãos municipais, estaduais e federais, trazem muitas possibilidades de análise. Isso salvou algumas pesquisas que estavam sendo feitas. Reprogramamos as atividades de campo, reduzindo-as ao mínimo possível. Nesse um ano e três meses, sempre de acordo com o plano que a USP estabeleceu e seguindo as orientações das autoridades sanitárias, pudemos, em duas oportunidades, realizar atividades de campo inadiáveis. Sempre com anuência institucional. A menor equipe possível, todos os protocolos necessários, com pessoas se deslocando quase individualmente. Isso porque as pesquisas têm prazo e alguns alunos dependiam desses experimentos e coletas de campo.
Tenho 16 orientandos atualmente. Neste ano de 2021, pelo menos oito vão concluir seus trabalhos com defesas de mestrado e doutorado. Esse é um momento muito singular na vida dos estudantes. A conclusão de um ciclo e de uma etapa tão importante já é algo que gera ansiedade em uma situação sem pandemia. Com o isolamento, isso fica mais acentuado. Procuro expor a eles o fato de que, talvez, os trabalhos não saiam exatamente do jeito como foram planejados. Por outro lado, não dá para fazer pesquisa de forma descolada do contexto em que vivemos.
Optei desde o início por aulas síncronas, aquelas que são ministradas e acompanhadas ao vivo. Esse semestre eu tenho quatro disciplinas e mantive os dias e horários originais das aulas. Adotei essa estratégia para assegurar o compromisso e a regularidade, pensando não apenas nos estudantes, mas em conseguir me organizar. Gravo essas aulas e, depois de ministradas, disponibilizo para quem não conseguiu acompanhar.
Acredito muito no ensino presencial. Sem demérito do ensino a distância, enxergo prejuízo quando tudo é feito on-line. Há dificuldades de comunicação, problemas técnicos como queda de energia ou da internet. Muitas vezes o aluno não abre a câmera porque a internet dele pode cair ou ficar muito lenta. Além disso, há os imprevistos. Já tive de interromper uma aula porque um vizinho estava fazendo uma reforma e usando a furadeira. São coisas rotineiras que acontecem em uma casa. Tivemos autonomia para definir como seriam as aulas remotas. Os colegiados da instituição têm acompanhado isso de perto. Há essa liberdade, mas isso não significa que cada um pode fazer o que quiser. Temos de cumprir nosso conteúdo programático.
Eu já pensava sobre essa mistura de ambientes, profissional e pessoal, mesmo antes da pandemia, mas ela trouxe novas reflexões. Essa confusão que se dá entre casa e trabalho, e com a ressalva de que não existe certo e errado nessa mistura, cada um tem de adotar a estratégia que achar mais adequada. Tento ao máximo separar as coisas. Penso que é preciso definir o momento de se desligar do trabalho. Costumo cumprir horários e não abrir e-mails depois do expediente porque logo a gente se pega assistindo a um filme e respondendo mensagens no celular ao mesmo tempo. É preciso saber os limites para não deixar que a quarentena e o home office acabem nos escravizando e nos tornando trabalhadores ininterruptos.
Precisaremos pactuar a sociedade que quereremos daqui para frente. Penso que no futuro poderemos identificar melhor quais serão os nossos aprendizados. Converso sempre com minha mulher sobre isso. Acho que vamos sair melhor em muitos aspectos. Ter uma vacina em tão pouco tempo é uma conquista que mostra a ciência cada vez mais se afirmando em seu papel fundamental. Vejo impactos positivos, inclusive na minha área, do ponto de vista ambiental. A realização de eventos on-line evitou deslocamentos, poupou energia, diminuiu a queima de combustíveis e a geração de resíduos. São estratégias que vão ganhar sobrevida e mais espaço no pós-pandemia. Por outro lado, temos de ter cuidado para que a gente não saia pior da pandemia.
As relações virtuais também são inevitavelmente mais frias, perdemos muito do calor dos encontros, do contato visual e da linguagem corporal. Isso dificulta a percepção a respeito de quem está do outro lado. O meu maior receio é que, de maneira paradoxal, essa mesma pandemia que contribui para aproximar quem estava distante possa gerar o afastamento de quem está mais perto. Precisaremos reaprender muitas coisas quando tudo isso passar. Considero que a parte fundamental do convívio humano ainda está no cultivo das relações, nos encontros ocasionais e nas conversas de cinco minutos no corredor.
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