Para quem estuda a estrutura de proteínas, o anúncio do Prêmio Nobel de Química nesta manhã (9/10) na Real Academia de Ciências da Suécia, em Estocolmo (Suécia), não trouxe surpresas: trata-se da capacidade de prever a configuração tridimensional de uma proteína a partir de sua composição e, no caminho oposto, inferir qual sequência de aminoácidos seria necessária para gerar uma estrutura com determinada função. “É uma revolução no campo da biologia estrutural”, afirma o físico Glaucius Oliva, da Universidade de São Paulo (USP). Metade do valor de 11 milhões de coroas suecas (cerca de R$ 5,8 milhões) irá para o bioquímico norte-americano David Baker, da Universidade de Washington, em Seattle, pelos avanços que obteve no design computacional de proteínas. A outra metade vai para o cientista da computação britânico Demis Hassabis e o físico norte-americano John Jumper, ambos da empresa Google DeepMind, fundada em 2010 para o desenvolvimento de sistemas de inteligência artificial (IA). Refletindo a rapidez do reconhecimento, a faixa etária dos premiados é mais baixa do que a média das premiações do Nobel: 62, 48 e 39 anos, respectivamente.
As proteínas são tidas como as moléculas que possibilitam a vida, já que constituem as peças para todos os sistemas do organismo. Elas, por sua vez, têm como matéria-prima 20 tipos de componentes menores, os aminoácidos. Como uma proteína pode chegar a ter mais de 30 mil aminoácidos, o número de combinações possíveis é astronômico. A função bioquímica das proteínas é definida pela posição relativa dos átomos no espaço, o que depende não só da composição, mas também de sua configuração tridimensional. “Mas nem todas as proteínas teoricamente possíveis existem na natureza”, explica o bioquímico Richard Garratt, da USP. Resta então espaço para inventar novos formatos, mas é preciso entender sua lógica para construí-las.
“Baker vem ‘assustando’ o mundo já faz um tempo”, afirma Garratt. “Impressiona a sua capacidade de planejar a estrutura de proteínas com propriedades bem definidas.” Uma competição criada em 1994, conhecida como Casp (Critical Assessment of Protein Structure Prediction, avaliação crítica da predição da estrutura proteica) deu destaque a esse desafio entre os pesquisadores da área. Baker desenvolveu uma ferramenta computacional que batizou de Rosetta, em homenagem à pedra com inscrições que ajudou a decifrar hieróglifos egípcios, que em 1998 valeu sua entrada na competição, com bons resultados. “A predição tinha por volta de 50% de acurácia”, relembra Oliva.
Ano após ano Baker foi melhorando os resultados, até que em 2020 veio uma novidade. “As pessoas que desenvolveram o AlphaFold tiveram um sucesso estrondoso, com mais de 95% de acurácia”, conta o físico da USP. Trata-se de um programa do Google DeepMind que realiza previsões das estruturas de proteína com uso de inteligência artificial, aprendizado de máquina e redes neurais, avanços que curiosamente renderam outra premiação nesta leva de prêmios Nobel, o de física. Essencial à empreitada é a excepcional capacidade computacional do Google – muito maior do que existe em qualquer laboratório de pesquisa. “Precisamos da computação para resolver os problemas da biologia, nem acredito que estamos conseguindo reconhecimento tão rápido”, comentou John Jumper em entrevista telefônica a Adam Smith, do site do Nobel, que ressaltou ser o premiado mais jovem nos últimos 70 anos. Jumper é físico de formação e viu com certo humor ganhar o prêmio de química, enquanto o de física foi para sua recente área de atuação.
Hassabis, cofundador da DeepMind, desenvolvia games na adolescência, estudou ciência da computação e fez doutorado em neurociência cognitiva. Sua startup foi comprada em 2014, tornando-se a unidade de IA da Google. Ele mantém a chefia executiva da empresa. Em palestra nos Diálogos Nobel este ano, o britânico declarou que reconhece os perigos da IA, mas que ela pode ser parte da solução para problemas do mundo, se bem usada.
Encontro entre computação e resultados experimentais
O sistema se baseia na comparação entre os milhares de proteínas já desvendadas, produzindo um mapa das distâncias entre aminoácidos nas estruturas proteicas e transformando esse conhecimento em capacidade preditiva.
“Foi um progresso tremendo, que efetivamente resolveu o problema do enovelamento proteico para muitos casos”, conta Garratt, cujo grupo faz uso intenso do AlphaFold2, a ferramenta que levou à premiação em Estocolmo. Inspirado pelo desempenho do programa, o grupo de Baker incorporou a inteligência artificial ao Rosetta, que se tornou RosettaFold. “O avanço de Demis e Jumper em predições de estruturas proteicas destacaram a força que a inteligência artificial poderia ter e nos levou a usá-la”, afirmou Baker em coletiva de imprensa por ocasião do anúncio do prêmio. Para ele, a criação de proteínas pode melhorar o mundo no que diz respeito a avanços em áreas como medicina e tecnologia para a sustentabilidade. Perguntado sobre qual seria sua proteína favorita, o bioquímico norte-americano mencionou uma criada em seu laboratório durante a pandemia de Covid-19, capaz de bloquear o coronavírus. “Estou muito animado com a possibilidade de desenvolvermos um borrifador nasal.”
A engenheira biomédica gaúcha Julia Bonzanini iniciou em 2023 o doutorado no grupo de Baker, em Seattle. Ela conta cerca de 130 integrantes do laboratório, entre pesquisadores em estágio de pós-doutorado, alunos de doutorado e de graduação, estudantes de outros lugares passando uma temporada de pesquisa e técnicos de laboratório. Seu projeto envolve o desenvolvimento de pequenas proteínas que têm como alvo moléculas do complexo principal de histocompatibilidade (MHC), uma molécula que indica ao sistema imunológico se uma célula foi invadida por patógenos ou é cancerígena. A ideia é desenvolver um tratamento imunológico contra o câncer.
“O laboratório de Baker é único”, diz Bonzanini. Ela explica que, mais do que um grupo acadêmico, o local funciona como uma indústria de biotecnologia, com muito financiamento e uma produção de resultados rápida. “É um ambiente muito colaborativo, todos trabalham em grupo.” A doutoranda descreve o orientador como surpreendentemente presente e acessível para quem precisa liderar tanta gente. Ele tem uma equipe para busca de financiamento e não viaja para compromissos acadêmicos, de forma que se dedica a reuniões e a percorrer o laboratório verificando o andamento e conversando com a equipe. “Enquanto estou trabalhando, às vezes ele aparece de repente com uma ideia, sugerindo que eu fale com alguém”, conta.
Para Garratt e Oliva, a parte experimental a que eles se dedicam foi facilitada por terem um ponto de partida sobre a estrutura de uma proteína, que pode ser detalhada e verificada por meio das técnicas tradicionais, como cristalografia de raios X e criomicroscopia eletrônica. “Hoje é mais fácil chegar à estrutura das proteínas, o maior desafio na biologia estrutural se torna entender como elas funcionam na natureza”, afirma Garratt.
“A dinâmica das proteínas pode mudar conforme a situação, então a predição precisa ser verificada também no contexto biológico”, completa a bióloga Daniela Trivella, coordenadora da Plataforma de Descoberta de Fármacos do Laboratório Nacional de Biociências (LNBio/CNPEM), em Campinas (SP). “Os últimos avanços nas predições foram fantásticos, mas ainda temos muito trabalho experimental pela frente.” Os modelos de inteligência artificial se baseiam em dados experimentais reais depositados em bancos de acesso público.
Helder Ribeiro Filho, pesquisador em biologia computacional do LNBio que recentemente realizou (com financiamento FAPESP) um estágio de pós-doutorado na Universidade de Maryland, nos Estados Unidos, com o físico Brian Pierce, acrescenta que a predição da interação de anticorpos com seus antígenos ainda representa um desafio para o AlphaFold2. “Os anticorpos sofrem muitas modificações durante o processo de maturação para adaptar-se aos patógenos e têm regiões sem padrões estruturais definidos, características que limitam o sinal coevolutivo importante para a predição pelo programa.” Pierce faz parte da “Comunidade Rosetta”, que trabalha em aprimorar o AlphaFold para usos específicos – atividade que Ribeiro pratica, além do estudo das proteínas. Com financiamento do Instituto Serrapilheira em parceria com a FAPESP, Ribeiro atualmente explora abordagens computacionais para o desenvolvimento de imunoterapias. Ele celebra a seleção dos premiados deste ano. “Foi um casamento muito bem-feito das duas tarefas inversas: o design de proteínas e a predição de suas estruturas.”
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