BARRY MICHAEL WOLFEAmeaçada de destruição por um zepelim prateado, a cidade, de joelhos, foi salva pela travesti Geni. Como agradecimento, ela ganhou mais do mesmo dos cidadãos “de bem”: “Joga pedra na Geni/ Ela é feita pra apanhar/ Ela é boa de cuspir/ Maldita Geni”, escreveu Chico Buarque em sua Ópera do malandro. Recentemente, a imprensa noticiou que atores globais teriam ido a um motel com duas travestis e, se dando conta do engano, as ameaçaram de morte. “Feitas para apanhar”, outras receberam bem mais do que ameaças. “Figuras consideradas ‘monstruosas’ e abjetas, não são apropriadas pelos sistemas de saber e poder estabelecidos, o que suscita sua eliminação, resultando nos assassinatos freqüentes de travestis, fruto da chamada ‘transfobia’. Ao exceder as classificações de gênero e sexualidade de nossa sociedade, elas nos desafiam, nos desconstroem e provocam um desejo de morte, como as figuras monstruosas descritas por Foucault”, explica o psicólogo Marcos Garcia, autor da tese de doutorado “Dragões: gênero, corpo, trabalho e violência na formação da identidade entre travestis de baixa renda”, defendida este ano no Instituto de Psicologia da Universidade de São Paulo.
Durante quatro anos Garcia acompanhou reuniões semanais de travestis em uma instituição pública em busca de um fator comum que as identificasse. Em vez da mera dualidade de gêneros, deparou com uma complexa “colcha de retalhos” em permanente construção que reúne, numa pessoa, várias figuras diversas e contraditórias, parcialmente incorporadas pela travesti e que formam sua identidade: a “mulher submissa”, a “prostituta”, a “mulher super-sedutora”, no campo da feminilidade, e o “viado”, o “malandro” e o “bandido”, no lado da masculinidade. “Elas são travestis justamente porque assumem todas essas figuras. A síntese de elementos contraditórios numa mesma pessoa pode ser metaforizada na figura mítica do dragão, mesmo termo usado por elas para designar as que são pobres ou têm aparência masculina (em oposição às ‘deusas’, como Roberta Close etc.)”, observa o autor. “O dragão tem como marca comum a mistura de elementos de diferentes animais e é entendido como um representante de poderes do ‘bem’ ou do ‘mal’, outra analogia com as travestis, tidas como figuras a serem eliminadas, mas que, ao mesmo tempo, atraem o desejo erótico de muitos, às vezes os mesmos que as agridem.” Como o ser mitológico, continua, elas “contrariam” as leis da natureza e da sociedade, combinando o impossível com o proibido, aquilo que não é contra a lei, apenas na medida em que essa não o prevê. “Ele é impensado, o fora-da-lei, suscitando não a imposição da lei, mas a eliminação.”
Garcia acredita que a violência a elas direcionada tenha como um de seus determinantes o fato de elas justamente não ocuparem um local definido nos “catálogos” identitários reconhecidos na sociedade brasilera, “sendo perseguidas não por ocupar um lugar feminino, mas pela pretensão à transitividade e por escapar à classificação social”. No Brasil, o termo “travesti”, até a década de 1960, era reservado a quem se vestia como mulher, seja em paródias carnavalescas ou em shows, sem a conotação de prostituição. “Naquele tempo era quase impossível ser travesti no Brasil. Elas não tinham condição de pôr os pés na rua, pois a sociedade não admitia”, conta o antropólogo Hélio Silva, da Universidade Federal do Rio de Janeiro, e autor de Travestis: entre o espelho e a rua (Editora Rocco), estudo clássico, relançado recentemente. Em uma década, os “transformistas”, como também eram chamadas, se transformaram, nos anos 1970, observa Garcia, na travesti atual, termo a partir de então usado para designar quem se prostituía, não apenas usando adereços femininos, mas cabelos longos, unhas pintadas e com o “corpo modificado” por meio de hormônios ou silicone, em busca de uma imagem semelhante à feminina.
A pesquisa do antropólogo revelou histórias comuns entre elas, em geral vindas de famílias de baixa renda e desde cedo discriminadas e agredidas por serem “efeminadas”. A solução também era padrão – ir para a cidade grande em busca de melhores condições de vida e aceitação social -, assim como o destino final, a prostituição, alternativa à falta de espaço no mercado de trabalho e à impossibilidade de contar com o auxílio da família. Esse rompimento, aliás, é responsável pelo isolamento social das travestis, que fortalece a nova identidade, já que a convivência próxima a outros homossexuais surge como a rede social alternativa à exclusão familiar. Esses laços de amizade e proteção, nota o pesquisador, chegavam mesmo a constituir uma linguagem específica entre as travestis, permeada por termos oriundos de dialetos africanos, manifestação “de pertencimento a um grupo seleto e uma proteção em relação aos que estão fora das fronteiras definidas por esses cultos”. Essa língua própria se explicaria, observa Garcia, “pela associação histórica entre os cultos afro-brasileiros e a homossexualidade”.
O “retalho” mais notável da “colcha” identitária das travestis é sua relação, afetiva e sexual, com seus companheiros, os “maridos”. “Elas incorporavam a mulher submissa, permanecendo em posição passiva frente a eles, que muitas vezes as exploram economicamente, e associando a feminilidade com o sofrimento.” Se aceitavam o ‘marido’ malandro, na relação com os clientes, porém, se colocavam como “malandros”, mantendo-os numa posição complementar a sua (a de “otários”) e se revoltando contra aqueles que tentavam deixá-las em um lugar submisso. Segundo o antropólogo, há um desprezo pelos clientes que queriam relações passivas nos “programas”, uma vez que, embora isso garantisse a satisfação das necessidades financeiras, não realizava as da ordem de serem desejadas como “mulheres”. Já o papel passivo pode, muitas vezes, ser fonte de satisfação, já que a travesti era reconhecida, “cantada”, desenvolvendo a sua auto-estima, e ganhando dinheiro.
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Mas a felicidade nunca é completa. “As travestis desvalorizam o dinheiro da prostituição, visto como ‘sujo’. O mesmo termo é aplicado aos portadores de HIV (chamados por elas de ‘tias’ e vistos como uma forma indesejada de ‘masculinização’, redobrando o sofrimento de ser portadores), cujo sangue também seria ‘sujo’. Nos dois casos há um desprezo pela atividade que exercem, remetendo a uma ‘sujeira moral’, envolvendo tudo numa atmosfera de vergonha e culpa”, analisa o pesquisador. A pauperização revelava nelas outro ‘retalho’: o ‘bandido’. “Roubando e ameaçando clientes para arrancar dinheiro, faziam deles objetos de exploração econômica. Isso é agravado pelo envolvimento com o tráfico de drogas ou pelo consumo de drogas, em especial o crack, que fazia com que elas se aproximassem do “mundo do crime”.”
Mas o que dizer dos clientes? Infelizmente, diz Garcia, quase inexistem pesquisas sobre a outra ponta da relação, por um medo óbvio dos clientes em se apresentarem como tal. “Mas alguns autores relacionam a procura por travestis como a busca de um ideal de feminilidade estereotipada, associada à sedução que as mulheres ‘de verdade’ não mais encarnariam por conta da emancipação feminina, que as faria recusar a posição de ‘mulher objeto’. Essa ‘mulher ideal’ seria mais facilmente inventada por um homem, pelo fato de ele conhecer profundamente os desejos masculinos.” Embora o psicólogo ressalte a perigosa generalização desse argumento, ele, de certa forma, explica outro dos “retalhos”: a figura da femme fatale, ideal de muitas travestis. “A relação delas com o corpo passa por uma percepção do caráter ambíguo do mesmo, o que sugere que não o percebem como apenas masculino ou feminino. Daí a intensa preocupação com a transformação corpórea por meio de métodos definitivos como a hormonioterapia ou a aplicação de silicone (feita, muitas vezes, de forma inadequada e perigosa pelas ‘bombadeiras’, colegas que injetam silicone industrial).” A busca por um corpo sedutor e voluptuoso remete à figura da mulher sedutora, calcada nos estereótipos cinematográficos, o que também se desdobra na escolha de nomes de guerra com sonoridade “estrangeira” (quando não diretamente inspirados em celebridades), forma de ressaltar a aproximação das travestis com as estrelas das telas.
Para Garcia, toda essa complexidade deve ser contemplada ao se tentar traçar um retrato da identidade das travestis. “Talvez os ‘retalhos’ não sejam os únicos a preencher a ‘colcha’ e que cada um deles pode ter tamanhos diferentes. Isso implica reconhecer uma identidade sujeita a tensões evidentes entre masculino e feminino, mas também dentro do campo da feminilidade e da masculinidade.” Como, por exemplo, a contradição entre a submissão da “mulher de malandro” e o desejo de domínio da femme fatale ou o desacordo entre ser desejada e ser usada, no caso da “prostituta”. No campo da masculinidade, existe a tensão entre a figura do “malandro” e a do “bandido” no que se refere às práticas aceitas por elas em relação aos clientes e a incoerência de um “bandido” viril ante a identidade gay, vista como “passiva e covarde”. “Ser travesti é viver tais contradições cotidianamente, no corpo, na auto-representação, nos relacionamentos duradouros e transitórios, e ser cotidianamente punida por isso.” Afinal, nada mais fácil do que jogar pedras e cuspir na Geni.
* As fotos desta matéria são da exposição Retratos de uma cidade escondida, que faz parte do Projeto Nome Delas, desenvolvido pelo fotógrafo, advogado internacional, criminologista e militante de direitos humanos Barry Michael Wolfe, com o objetivo de resgatar a dignidade das travestis de São Paulo. As fotos, tiradas por Wolfe na noite paulistana, foram distribuídas como presente às travestis, que, muitas vezes, as enviam para as famílias, sendo estes os únicos registros dignos que elas têm de si próprias.
Barry Michael Wolfe nasceu na Escócia e está no Brasil desde 1986. É formado pela Universidade de Edimburgo com Suma Cum Laude em direito penal e criminologia, com pós-graduação na Yale Law School e mestrado em direito internacional público pela Universidade de Cambridge. O Projeto Nome Delas inclui pesquisas acadêmicas, artigos editados em publicações internacionais e ações em direitos humanos.
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