O primeiro contato da enfermeira Lavinia Santos de Souza Oliveira com um povo indígena ocorreu no início dos anos 1980. Estudante de graduação na Universidade de São Paulo (USP), ela viajou com médicos residentes e outros alunos de enfermagem até Marabá (PA) e foi visitar uma aldeia dos Parkatêjê, que na época eram mais conhecidos como Gaviões. O objetivo do grupo era aplicar vacinas, mas, antes, era preciso se entender com o cacique.
Krohokrenhum, o líder dos Parkatêjê, quis saber se as vacinas eram boas. A enfermeira disse que sim. Ele a desafiou a provar que confiava nos imunizantes, tomando ela mesma a injeção antes que os indígenas oferecessem o braço. Oliveira pediu a uma colega que aplicasse nela uma dose de antitetânica, e só então o cacique liberou o grupo para fazer o seu trabalho. “É um povo guerreiro, e sua altivez me impressionou muito”, conta a enfermeira.
O encontro foi decisivo para as escolhas que ela fez mais tarde. Coordenadora de formação de recursos humanos do Projeto Xingu, programa de extensão da Escola Paulista de Medicina da Universidade Federal de São Paulo (EPM-Unifesp) que desenvolve ações de promoção da saúde indígena desde a década de 1960, Oliveira gosta de repetir as lições recebidas nas aldeias. “Aprender é mais do que dominar a teoria”, diz. “O trabalho ensina, como os indígenas bem sabem.”
O projeto nasceu em julho de 1965, quando sete médicos da escola, liderados por Roberto Geraldo Baruzzi (1929-2016), organizaram uma expedição para avaliar as condições de saúde dos povos que viviam no Parque Indígena do Xingu, a pedido do sertanista Orlando Villas-Bôas (1914-2002), um dos articuladores do processo que levou à criação da reserva em 1961 e seu primeiro diretor. As 16 etnias que até hoje ocupam o território reuniam 1.135 pessoas na época.
Várias delas se viam ameaçadas de extinção, por causa de doenças infecciosas que desconheciam e não conseguiam controlar, que dizimavam suas aldeias. Em 1954, uma epidemia de sarampo matou 114 dos 640 indígenas que viviam no sul da região do Xingu, em apenas um mês. O objetivo da criação do território era protegê-los contra as pressões que a urbanização do país estimulava, e nada assustava mais do que a falta de assistência médica.
Nos primeiros anos, as prioridades do Projeto Xingu eram vacinar a população, cuidar dos doentes e levantar dados sobre o estado nutricional das crianças e doenças crônicas. Um acordo feito por Villas-Bôas com a EPM previa o envio de equipes multidisciplinares ao parque pelo menos quatro vezes por ano e quando houvesse epidemias. Casos complexos seriam encaminhados para o Hospital São Paulo, instituição filantrópica ligada à faculdade.
Num depoimento que concedeu em 2015 à Associação Paulista para o Desenvolvimento da Medicina (SPDM), mantenedora do Hospital São Paulo, Baruzzi estimou que as caravanas do Projeto Xingu mobilizaram 300 voluntários em quatro décadas, incluindo médicos, enfermeiros, dentistas e estudantes. “Íamos lá ajudar e voltávamos humildes com o que não sabíamos”, afirma o oftalmologista Rubens Belfort Júnior, que esteve na região pela primeira vez em 1967.
Desde as primeiras viagens, os médicos do projeto adotaram a rotina de preencher fichas detalhadas com informações sobre cada indígena atendido, o que permitiu formar em pouco tempo um banco de dados completo sobre os moradores da reserva, incluindo o histórico clínico de todos, suas relações de parentesco e fotografias atualizadas de tempos em tempos. As fichas foram essenciais para o acompanhamento da evolução das condições de saúde no território.
Graças a esse cuidado, foi possível também verificar os resultados do programa. Em 1985, o banco de dados dos médicos indicava 2.555 indígenas vivendo no Xingu, o que significava que a população do parque havia dobrado de tamanho em duas décadas. Doenças adquiridas nos primeiros anos de contato com os brancos haviam sido controladas, fazendo cair as taxas de mortalidade. A última epidemia de sarampo registrada no território indígena ocorreu em 1979.
Com a redemocratização do país e o processo de construção do Sistema Único de Saúde (SUS), os integrantes do projeto passaram a investir em outras duas frentes, a formação de pessoas que pudessem ampliar as ações da saúde no Xingu e o fortalecimento da precária estrutura de atendimento com a qual os indígenas podiam contar. Um passo inicial foi dado em 1989, com a criação em São Paulo de um ambulatório especializado, que até hoje funciona como porta de entrada para os indígenas que buscam tratamento no hospital da universidade.
O primeiro curso, nos anos 1980, foi voltado para a formação de 24 monitores da saúde que pudessem ajudar a acompanhar os doentes nos postos e nas aldeias do parque, aproveitando a disposição que vários indígenas tinham para auxiliar médicos e enfermeiros no trabalho. “Percebemos que havia uma demanda deles mesmos por formação e conversamos muito com as lideranças para pensar a metodologia adequada”, conta a sanitarista Sofia Beatriz Machado de Mendonça, que começou a participar do Projeto Xingu como estudante em 1981 e hoje é sua coordenadora-geral. Em 1996, uma turma de 63 agentes indígenas da saúde formou-se após quatro anos de curso.
Lavinia Oliveira entrou no projeto no ano seguinte, depois de concluir o mestrado na Faculdade de Saúde Pública da USP, em que tinha analisado um programa de formação de auxiliares de enfermagem em São Paulo. A primeira turma de auxiliares indígenas que fez curso no Xingu se formou em 2002. No mesmo ano, Oliveira concluiu seu doutorado na USP, em que estudou o processo de formação dos agentes indígenas da saúde e sua inserção no SUS. Desde então, a Unifesp participou da formação de 110 auxiliares de enfermagem no Xingu e em outros territórios indígenas de Mato Grosso.
Em 1999, com a criação do Subsistema de Atenção à Saúde Indígena (Sasi-SUS), o Ministério da Saúde reorganizou o atendimento, criando dezenas de distritos sanitários especiais nos territórios e casas de acolhimento nas cidades. No ano seguinte, por meio de um convênio do ministério com a Unifesp, os médicos do programa de extensão assumiram a administração do distrito do Xingu, tornando-se responsáveis não só pelas ações de saúde, mas também pela contratação de pessoal, construção de infraestrutura e distribuição de remédios e equipamentos.
A mudança gerou tensões nas relações com as lideranças indígenas, como Mendonça reconheceu ao fazer um balanço da experiência em sua tese de doutorado, defendida na Unifesp em 2021. “Distribuir equitativamente recursos humanos e materiais entre os diferentes povos não foi uma tarefa fácil”, escreveu. Em 2004, o Ministério da Saúde assumiu a gestão de todos os distritos indígenas e passou a recorrer à SPDM para a contratação das equipes que atuam no Xingu, por meio de convênios que têm sido renovados periodicamente.
Os sanitaristas da Unifesp voltaram então a se concentrar em atividades de apoio e formação, mas trocas de governo e cortes orçamentários prejudicaram a continuidade do trabalho. A segunda turma de agentes indígenas da saúde, com 62 alunos, concluiu o curso em 2011. No ano seguinte, o Projeto Xingu produziu um amplo diagnóstico da situação da saúde no território, a partir de oficinas realizadas com lideranças indígenas, gestores do distrito e profissionais da saúde que atuavam na área, mas as recomendações feitas pelo grupo não foram implementadas.
Uma questão que preocupa os coordenadores do projeto desde o início e tem recebido maior atenção é a articulação da biomedicina com a medicina indígena. “A valorização das práticas e dos saberes desses povos é muito importante para aumentar a resolutividade, criar vínculos de confiança com os profissionais, estimular o autocuidado e viabilizar medidas de prevenção e vigilância da saúde”, afirma Mendonça. “O aumento da oferta de serviços e medicamentos nos territórios acabou deixando isso de lado nos últimos anos.”
Nas oficinas conduzidas no Parque do Xingu para elaboração do diagnóstico apresentado aos moradores das aldeias e aos gestores do território, os médicos sanitaristas perceberam que os próprios indígenas estavam perdendo contato com a sabedoria dos mais antigos. Os participantes dos cursos foram então incentivados a entrevistar pajés, especialistas em plantas e demais conhecedores das práticas tradicionais das suas aldeias, para depois compartilhar os resultados de suas pesquisas com o resto do grupo nas outras etapas da formação.
“Muitos médicos da cidade resistem a essas práticas e acham que não respeitamos o seu trabalho, mas o diálogo tem levado alguns a rever suas posições”, diz o professor Autaki Waurá, morador de uma das aldeias dos Waujas no Xingu, que atualmente faz pesquisa para seu doutorado em antropologia na Universidade Estadual de Campinas (Unicamp). “Nosso conhecimento pode contribuir para entender a origem das doenças e auxiliar no seu tratamento.”
Estudos de pesquisadores da Unifesp e outras universidades têm apontado mudanças dramáticas no perfil epidemiológico das populações indígenas, com aumento de doenças crônicas como hipertensão arterial, diabetes e obesidade. Os primeiros casos do Xingu foram registrados nos anos 1980, mas a situação se agravou com o crescimento das cidades no entorno do território e o consumo pelos indígenas de alimentos industrializados. O censo feito pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) em 2022 contou 6.204 indígenas vivendo no Xingu.
Ações preventivas de saúde
Fatores genéticos também podem ter contribuído para a mudança, de acordo com um estudo internacional de 2010, que teve a participação de pesquisadores da Unifesp e analisou amostras de sangue dos Xavantes em busca de um marcador associado a maior risco de diabetes e outras doenças (ver Pesquisa FAPESP nº 182). A coordenação do Projeto Xingu quer ampliar o estudo e rastrear esse marcador, especialmente em povos pressionados pelo avanço do agronegócio na Amazônia, como os que vivem no Xingu e os Panará. “Isso ajudaria a planejar ações preventivas e educativas”, diz o sanitarista Douglas Antonio Rodrigues, que coordenou o programa de 1996 a 2010. (Rodrigues e Sofia Mendonça se conheceram na faculdade e se casaram numa aldeia dos Kuikuro, que os tratam como parentes.)
Outra ideia em discussão é a criação de uma organização da sociedade civil de interesse público, o que permitiria captar recursos de doadores e agências internacionais para financiar projetos e ampliar suas atividades. Segundo um levantamento recente feito pela coordenação do programa, seus pesquisadores atuaram em 18 projetos financiados por agências de fomento desde os anos 2000 e produziram 22 dissertações de mestrado, 20 teses de doutorado e 148 artigos publicados em revistas científicas indexadas.
Neste ano, o programa retomou os cursos de formação para aqueles que trabalham no Xingu, com uma turma de 210 agentes da saúde e saneamento básico e apoio financeiro do governo do estado de Mato Grosso, onde fica a reserva. No fim de setembro, médicos e enfermeiros enviados para o primeiro ciclo programado foram surpreendidos pela fumaça das queimadas na região e seu impacto nas comunidades indígenas. “Eles começaram a plantar mandioca, estão perdendo tudo por causa do fogo e não conseguem repor seus estoques de comida”, conta Mendonça.
Técnicas de plantio e controle de queimadas desenvolvidas pelos indígenas com assessoria do Instituto Socioambiental e de outras organizações têm se revelado insuficientes, prejudicando os novos cultivos e colocando em risco a segurança alimentar das aldeias. As consequências poderão ser o aumento do consumo de alimentos industrializados e, no longo prazo, de doenças crônicas como as que têm preocupado os médicos no Xingu. “É um ciclo perverso que precisa ser interrompido”, afirma a sanitarista.
A reportagem acima foi publicada com o título “Cuidando da aldeia” na edição impressa nº 345, de novembro de 2024.
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