Comparar o genoma do ser humano com o de mamíferos ancestrais hipotéticos que viveram há 100 milhões de anos pode ser a chave para descobrir trechos do DNA que contribuem para o desenvolvimento de doenças como o câncer e a esquizofrenia, difíceis de detectar pelas técnicas atuais. Essa é uma das promessas do Zoonomia, um projeto que envolve mais de 30 laboratórios de diferentes instituições e países, liderados por pesquisadores da Universidade de Uppsala, na Suécia, e do Instituto Broad, nos Estados Unidos. Os primeiros resultados foram publicados quinta-feira, 27/4, em uma edição especial da revista Science, que inclui 11 artigos, todos baseados na evolução dos mamíferos placentários – o que deixa de fora animais como o ornitorrinco e o canguru.
O grupo apoia-se em dados inéditos extraídos de 241 espécies, que abarcam quase todas as famílias de mamíferos, para recontar a história evolutiva do grupo, ao mesmo tempo que obtém pistas para desenvolver possíveis formas de tratamento e diagnóstico de doenças. A abordagem promete ainda revelar alguns dos mecanismos genéticos que diferenciam espécies e identificar aquelas mais ameaçadas de extinção, ajudando a estabelecer prioridades de conservação.
“Analisando a transformação dos genomas ao longo do tempo, conseguimos identificar trechos que ficaram iguais e outros que mudaram”, explicou a Pesquisa FAPESP a bioinformata Elinor Karlsson, do Instituto Broad e da Universidade de Massachusetts, uma das coordenadoras do projeto. O nome escolhido é uma homenagem a Erasmus Darwin (1731-1803), avô de Charles Darwin e autor do livro Zoonomia: As leis da vida orgânica, de 1794.
Karlsson afirma que geralmente são os genes – a parte mais estudada e conhecida e que representa 1% do genoma – que sofrem mutações, mais facilmente interpretadas pelos efeitos funcionais que provocam. Essas alterações no DNA causam mudanças pontuais em proteínas, que podem ser prejudiciais ou contribuir para aumentar a diversidade genética nas populações, quem sabe até dando origem a novas espécies.
“Os trechos que não mudam tanto regulam os genes, fazendo com que eles produzam mais ou menos proteínas”, diz Karlsson. “Se um ponto do genoma foi preservado por 100 milhões de anos, deve ter uma função importante nos mamíferos.” Essas mutações também podem estar relacionadas a doenças. Os pesquisadores revelaram que 9% do genoma tem funções regulatórias – resta ainda 90% com funções desconhecidas.
Segundo a pesquisadora, a regulação gênica tem papel importante em doenças complexas, como a esquizofrenia, impossíveis de diagnosticar pela presença de um gene causador e que podem demorar a se manifestar na vida de uma pessoa. “Nessas doenças, é a regulação do genoma que muda ao longo do desenvolvimento, modificando a quantidade de proteínas produzidas e dando origem ao transtorno.” Os pesquisadores supõem que parte dessa regulação pode influenciar fenômenos pouco estudados, como o desenvolvimento do embrião e do cérebro.
Hoje, a forma mais comum de se estudar doenças complexas é comparar o genoma de pessoas com e sem o problema e identificar regiões presentes apenas nos doentes. Segundo Karlsson, o problema é que essa abordagem aponta para trechos muito grandes de DNA, que incluem tanto genes quanto regiões reguladoras.
“O genoma abriga uma quantidade gigantesca de informações, então é caro e trabalhoso estudar cada um desses trechos, com o risco de não serem importantes”, ressalta. Assim, a abordagem evolutiva poderia mostrar um caminho ‒ ou atalho ‒ para indicar os trechos relevantes do DNA para a saúde.
No mês passado, Karlsson e colegas optaram por realizar o quinto congresso de Zoonomia, previsto para ocorrer no Brasil, em Manaus. O cenário foi a Amazônia, em vez de uma cidade com praia, como de costume. “Pela primeira vez conheci pessoalmente bichos como preguiças, macacos e botos, que só vejo na tela do computador em forma de letras de DNA.”
Recorta e cola
Um dos artigos publicados no especial da Science se debruçou sobre a evolução dos mamíferos placentários e concluiu que a diversificação do grupo começou bem antes da extinção dos dinossauros. “Os mamíferos placentários surgiram há mais de 100 milhões de anos, quando os continentes ainda estavam conectados entre si”, conta o biólogo Eduardo Eizirik, da Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (PUC-RS), um dos autores do artigo.
Animais pequenos e parecidos com ratos circulavam livremente até serem isolados pelo gradual afastamento da América do Norte e da Eurásia, no hemisfério Norte, e da América do Sul em relação à África e Índia, no hemisfério Sul. “Uma vez separadas, as populações teriam seguido seu próprio rumo evolutivo e dado origem aos grandes grupos que existem hoje, como primatas, roedores, carnívoros, morcegos, entre outros”, sugere Eizirik.
Cerca de 20 milhões de anos depois, uma grande inundação dos continentes, que resultou do aquecimento global e de um grande aumento do nível do mar, teria acentuado ainda mais esse processo, ao dividir a África em duas partes e transformar em ilhas grandes extensões de terra das Américas.
Para comparar os genomas, os pesquisadores alinharam o DNA de todas as 241 espécies, comparando cada letra – cada base, em linguagem técnica – e anotando as diferenças. “É como fazer uma grande tabela com 2,3 bilhões de colunas e 240 linhas, e em cada posição se coloca a letra que aparece no genoma das espécies estudadas”, relata Eizirik.
A tarefa foi especialmente desafiadora porque o genoma das espécies pode sofrer mudanças estruturais ao longo do tempo. Por isso, foi preciso primeiro picotar todo o genoma e identificar as regiões equivalentes de cada espécie.
Como a taxa de mutação do DNA ao longo do tempo pode ser estimada, essas árvores evolutivas também fornecem informações sobre a época em que os ancestrais existiram. Os dados foram cruzados com as idades conhecidas de 37 fósseis de mamíferos, para realizar a datação molecular e fazer os ajustes necessários.
Há 66 milhões de anos, livres da predação e competição com dinossauros, os principais grupos de mamíferos, já separados, sofreram novas rodadas de diversificação e se adaptaram a ambientes variados, dando origem a grupos como morcegos, elefantes e baleias. “A diversificação foi rápida, ao longo de poucos milhões de anos, especialmente em grupos como morcegos e roedores”, diz Eizirik. Cada um dos grupos originais se diversificou, ocupando o espaço deixado pelos grandes répteis.
O conhecimento dos genomas também pode ajudar a identificar espécies ameaçadas de extinção, auxiliando nos esforços de conservação. O genoma contém informações que permitem detectar, indiretamente, o tamanho das populações da espécie ao longo do tempo.
Quanto menores as populações, a variabilidade genética tende a ser menor, dificultando a capacidade da espécie de se adaptar a mudanças no ambiente. Entre os felinos brasileiros, por exemplo, os gatos-maracajá tiveram populações menores no passado do que a jaguatirica, levando a níveis menores de diversidade genética atual, um aspecto que é levado em consideração em análises de vulnerabilidade à extinção.
“O desafio de reconstituir a evolução dos seres vivos por meio do genoma é que, além de ser enorme, nem todos os pedaços contam a mesma história”, comenta a bióloga Cristina Miyaki, da Universidade de São Paulo, que não participou do trabalho. Ela explica que segmentos conservados e segmentos que mudaram ao longo da evolução podem contar histórias diferentes, embora pertençam ao mesmo genoma. “Os autores contornaram esse problema não só usando grande quantidade de dados, mas fazendo diversas análises para testar se as árvores filogenéticas propostas [diagramas que representam as relações evolutivas] refletiam esses dados”, diz ela.
Os estudos do Zoonomia publicados na Science só foram possíveis graças aos avanços que, em 20 anos, reduziram de 15 anos para algumas horas o tempo que as máquinas sequenciadoras levam para fazer a leitura de um genoma, e as técnicas computacionais mais sofisticadas de análise de padrões evolutivos.
Com o estudo sobre evolução de mamíferos, Eizirik e colegas corroboram uma tese que defendem desde 2001, quando mostraram em artigo publicado na revista Nature que os mamíferos placentários começaram a se diversificar antes da extinção dos dinossauros. Com o aumento vertiginoso na extração de dados e os avanços na análise computacional, o grupo testou sua teoria inicial e ela resistiu. “Mas dessa vez a quantidade de informação que embasa a teoria é centenas de milhares de vezes maior.”
Artigos científicos
FOLEY, N. M. A genomic timescale for placental mammal evolution. Science. v.380, n.eabl8189. 28 abr. 2023.
MURPHY, W. J. et al. Molecular phylogenetics and the origins of placental mammals. Nature. v. 409, p. 614-18. 1º fev. 2001.