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BOAS PRÁTICAS

Propaganda religiosa

Sete artigos de pesquisador muçulmano que confundiam ciência com fé sofrem retratação

Sob a alegação de “falta de base científica”, foram retratados em janeiro sete artigos de autoria do médico Hüseyin Çaksen, que é professor da Universidade Necmettin Erbakan, em Konya, na Turquia. Os papers haviam sido publicados nos últimos meses em três periódicos do grupo editorial alemão Thieme. Em comum, discorriam sobre o bem-estar promovido por práticas do islamismo e pela religiosidade de seguidores da fé muçulmana, chegando a associá-las à prevenção ou à cura de doenças.

O Journal of Child Science retratou três trabalhos: um sobre a importância, do ponto de vista religioso, do casamento e da fidelidade conjugal na relação entre pai e mãe; outro sobre a influência benéfica da religião no trabalho em unidades neonatais de terapia intensiva; e um terceiro sobre os efeitos de uma prática exorcista para combater o câncer. Já o Journal of Pediatric Epilepsy cancelou um artigo que avaliou, como estratégia contra a hipoglicemia neonatal, a utilidade de uma cerimônia religiosa em que se fricionam no céu da boca do recém-nascido mel, suco adocicado ou tâmaras prensadas.

O Journal of Pediatric Neurology retratou três papers – o menos controverso deles era sobre psicologia em perspectiva islâmica. Um outro trabalho, publicado em maio de 2023, no qual Çaksen sustentou que o uso do hijab, o véu usado por mulheres muçulmanas, ajuda a prevenir o assédio sexual e propôs que escolas instituíssem o uso da vestimenta como estratégia de prevenção. No mesmo mês, ele defendeu em um artigo no mesmo periódico a importância da religião e de cuidados espirituais em vítimas da esclerose múltipla.

Entretanto, o trabalho mais criticado do médico escapou da leva de retratações. Em 2022, ele havia publicado um editorial também no Journal of Pediatric Neurology sobre as crenças religiosas de pacientes com esclerose múltipla em que, a certa altura, afirma: “Embora isso não possa ser provado cientificamente, acreditamos firmemente que a principal causa da doença em alguns pacientes com esclerose múltipla sejam razões sobrenaturais, como uma dádiva, um teste ou um castigo de Alá”.

O especialista em biologia sintética Urartu Şeker, pesquisador da Universidade Bilkent, em Ancara, na Turquia, criticou duramente o editorial em sua conta no X, antigo Twitter. “Um membro do corpo docente da faculdade de medicina diz que a esclerose múltipla tem causas sobrenaturais (…). É terrível que ele possa publicar essas ideias inúteis em um artigo. E é realmente assustador que uma pessoa como essa se torne professor”, reagiu. Seker chamou a atenção para o fato de Çaksen ter um desempenho acadêmico destacado, medido por indicadores bibliométricos. “Ele também provou que o índice-h não tem significado por si só, porque seu índice-h é 34!”, escreveu, referindo-se à métrica acadêmica que associa a quantidade de artigos publicados ao número de citações que receberam. Um índice-h 34 significa que, no conjunto de artigos científicos publicados por Çaksen, pelo menos 34 deles conseguiram amealhar ao menos 34 citações – cada um – em outros trabalhos, uma evidência da repercussão entre seus pares.

Procurados pelo site Retraction Watch, nem Çaksen nem os editores dos periódicos se pronunciaram sobre as retratações ou as falhas no processo de revisão das revistas que publicaram os artigos. Urartu Şeker encontrou uma coincidência que, segundo avalia, pode servir como uma pista para uma investigação sobre o caso: ele descobriu que o autor foi colega na residência médica na Universidade Necmettin Erbakan de um dos editores do Journal of Pediatric Neurology.

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