Nascida na cidade de Tumaco, situada em uma das regiões mais afetadas historicamente pela violência na Colômbia, a socióloga Yesenia Olaya Requene foi nomeada em abril ministra de Ciência, Tecnologia e Inovação daquele país. A medida aconteceu duas décadas depois de Requene deixar sua terra natal, aos 13 anos de idade. Por decisão dos pais, uma professora e um motorista de táxi, ela finalizou a educação básica em Pasto, capital do estado de Nariño, para ficar a salvo da ação de grupos armados vinculados ao narcotráfico que atuavam em Tumaco.
Formada em sociologia pela Universidade de Caldas, na Colômbia, Requene é mestre em pedagogia e doutora em antropologia pela Universidade Nacional Autônoma do México (Unam). Antes de assumir o comando do Ministério de Ciência, Tecnologia e Inovação (Minciencias) a convite do atual presidente colombiano, Gustavo Petro, ela trabalhou na pasta como vice-ministra de Talentos e Apropriação Social do Conhecimento, no mesmo governo. Além disso, entre 2018 e 2022, coordenou um curso de especialização oferecido pelo Instituto de Pesquisas Afro-latino-americanas (Alari) da Universidade Harvard, nos Estados Unidos, como desdobramento do estágio de pós-doutorado que realizou naquela instituição.
Ainda na condição de vice-ministra, Requene conversou com Pesquisa FAPESP durante a 12ª Conferência Mundial de Jornalistas de Ciência (WCSJ), realizada no final de março na cidade colombiana de Medellín. Na entrevista, abordou os desafios pessoais na transição entre o mundo acadêmico e a vida pública, a presença feminina na política colombiana e o papel que a ciência desempenha na busca por resoluções para a luta armada em seu país. Iniciado na década de 1960, o conflito terminou oficialmente em 2016, quando o governo assinou o Acordo de Paz com as Forças Armadas Revolucionárias da Colômbia – Exército do Povo (Farc-EP), cuja implementação ainda está em curso.
Quais são os projetos de seu ministério?
Destaco as ações que pretendemos criar para incentivar jovens colombianos a seguirem carreiras em ciência, tecnologia, engenharia e matemática [Stem]. O principal foco dessas medidas são estudantes de regiões vulneráveis, especialmente em territórios assolados pelo conflito armado no passado, que no momento estão em processo de reconstrução social e econômica. Queremos que a ciência seja o motor de desenvolvimento dessas regiões.
Como isso pode ser feito?
Uma das principais missões de nosso governo é incentivar vocações científicas, sobretudo em crianças e jovens, assim como possibilitar que esse conhecimento seja revertido à população colombiana de forma geral. Para isso, contamos com o trabalho do Sistema Nacional de Ciência, Tecnologia e Inovação, que existia antes do governo Petro e reúne universidades, centros de pesquisa, empresas e organizações da sociedade civil. Por meio da articulação desses atores, criamos algumas ações, entre elas a oferta de bolsas de doutorado e pós-doutorado em áreas estratégicas, como saúde e ciências agropecuárias. Outra iniciativa são os programas de transferência tecnológica para empresas localizadas em regiões vulneráveis do país. Uma de suas diretrizes é exatamente empregar moradores dessas áreas empobrecidas. Em suma, queremos aliar produção de conhecimento científico com desenvolvimento econômico e social. Essas ações estão alinhadas com a aposta do atual governo na construção de acordos de paz com grupos armados relacionados ao narcotráfico. Os territórios mais afetados pela violência na Colômbia são aqueles com os maiores índices de desigualdade social e racial. Precisamos reconhecer essas realidades para criar políticas públicas a partir delas.
E qual será o papel do ministério no processo de construção da paz?
O governo colocou a construção da paz no centro do debate e isso requer mudar a mentalidade e as formas de governança de órgãos públicos, bem como de seus funcionários e da sociedade. Precisamos criar um consenso social de que os direitos humanos devem prevalecer acima de tudo e de que as vítimas do conflito armado precisam ser reconhecidas como prioritárias em políticas públicas. E isso envolve olhar para pessoas que foram expulsas de seus territórios por causa do conflito armado, bem como para indivíduos que perderam familiares pelo mesmo motivo. Além disso, para que os acordos de paz sejam efetivos, é preciso gerar processos de transição de economias locais antes focadas no cultivo de produtos para o narcotráfico para outras atividades lucrativas, que garantam a subsistência dessas populações. Nesse contexto, a ciência desempenha papel central, tanto pela possibilidade de fomentar alternativas econômicas, como pela capacidade de engajar os jovens em novos tipos de trabalho. Queremos que todo projeto no campo da ciência, tecnologia e inovação seja direcionado para gerar justiça social, econômica e ambiental.
Quais são as conexões entre sua vida e seus interesses de pesquisa?
Como afrodescendente, estudo os deslocamentos e as migrações forçadas dessas comunidades provocadas pelo conflito armado em meu país. Entre 2009 e 2019, trabalhei na fronteira entre Colômbia e Equador para tentar compreender como se dá a organização desses fluxos migratórios. O assunto foi objeto de minha tese de doutorado, defendida em 2019 na Unam, no México. Na pesquisa, identifiquei, por exemplo, que a atuação do narcotráfico nessa região de fronteira acentuou o processo de concentração da terra nas mãos de poucos donos, dificultando o desenvolvimento de economias tradicionais. As principais vítimas dessa guerra são as populações negras e indígenas, as mesmas que têm sido excluídas da participação política e dos direitos sociais ao longo dos séculos na Colômbia. Minha tese ganhou o prêmio Fray Bernardino de Sahagún, concedido anualmente pelo governo mexicano à melhor pesquisa de doutorado desenvolvida na área de antropologia.
Como você chegou a Harvard?
Ingressei no Instituto de Pesquisas Afro-latino-americanas da Universidade Harvard em 2019 para fazer pós-doutorado e aprofundar os estudos que realizei no doutorado movimento social afro-colombiano, migrações forçadas e fronteiras. Um dos resultados de minha pesquisa foi propor a criação de um curso de especialização em estudos africanos e latino-americanos naquela instituição. A iniciativa, que aconteceu de forma virtual, tinha como objetivo compartilhar informações acadêmicas sobre desigualdade, justiça social e violência contra populações afrodescendentes da América Latina. Além disso, o curso abordou a história e o trabalho de movimentos sociais e comunidades afrodescendentes em nossa região. Procuramos analisar como esses atores estão construindo novas epistemologias e ver como essas iniciativas influenciam disciplinas como pedagogia e história. Também tentamos compreender de que forma lideranças negras conseguem transformar de maneira positiva ambientes violentos em seus países. Nos quatro anos em que o curso foi oferecido, capacitamos mais de 1,2 mil alunos, entre estudantes, líderes sociais e funcionários públicos da América Latina, especialmente do Brasil, da Colômbia e do México.
A bibliografia contava com autores brasileiros?
A história de movimentos afrodescendentes no Brasil foi um dos principais pilares temáticos do curso, bem como os estudos de gênero, relações raciais e sobre ações afirmativas elaborados pela socióloga Márcia Lima, da Faculdade de Filosofia Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo [USP]. Tratamos, ainda, das ações afirmativas existentes no Brasil, que são referência para a América Latina.
A Colômbia possui política de cotas?
Não há uma lei específica e as universidades têm autonomia para adotar cotas ou ações afirmativas. É uma decisão de cada uma delas.
Como buscaram alunos para o curso em Harvard?
Por meio da articulação com universidades regionais, conseguimos chegar a pessoas em lugares remotos da América Latina, sem oportunidade de obter formação acadêmica. O acesso à internet foi um grande desafio enfrentado pelos estudantes oriundos dessas comunidades vulneráveis. Para superar essa dificuldade, estabelecemos parcerias com escolas e centros de pesquisa, para que esses alunos pudessem assistir às aulas em suas instalações. Ao final, os melhores estudantes de cada turma eram premiados com uma viagem a Harvard. Nessa oportunidade, apresentavam trabalhos e projetos para outros alunos e professores da instituição. Foi a primeira vez que muitos deles deixaram seus países de origem e puderam compartilhar experiências e reflexões com um público internacional. Depois do trabalho que realizei em Harvard, fui convidada logo após eleição de Gustavo Petro, em agosto de 2022, para assumir como vice-ministra de Talentos e Apropriação Social do Conhecimento do ministério.
Por que você se interessou pela vida pública?
É a primeira vez que atuo na política e, obviamente, essa novidade representa uma grande mudança na minha trajetória profissional, que até então havia se desenvolvido no âmbito acadêmico. Como professora, trabalhei em universidades da América Latina e dos Estados Unidos. É interessante observar que na Colômbia há hoje um número significativo de pesquisadores que estão fazendo a mesma transição que fiz, muitos deles incentivados pela possibilidade de transformar por meio da ciência os problemas de violência e opressão que o país tem enfrentado por décadas. O presidente Petro, por exemplo, convidou vários pesquisadores para trabalhar em seu governo.
Há muitas mulheres no meio político colombiano?
Francia Márquez é a primeira vice-presidente negra do país. Ela foi mãe solo aos 16 anos e, desde muito jovem, teve de trabalhar com mineração. Márquez fez direito na Universidade Santiago de Cali, uma instituição particular, e pagou o curso trabalhando como empregada doméstica. A socióloga Aurora Vergara Figueroa, ministra da Educação, também é uma mulher negra. No meu caso, venho de uma região do país onde 90% da população é afrodescendente. Meu pai era taxista e minha mãe professora. Tive de sair de casa muito jovem para poder estudar. Na Colômbia, o Estado se estruturou com base em desigualdades raciais e sociais. Hoje, pela primeira vez, vemos mulheres de regiões empobrecidas atuarem com mais força em diferentes esferas da vida pública. Assim, mulheres afrodescendentes, que não fazem parte da elite colombiana, têm tido a oportunidade de chegar a cargos de poder, embora ainda precisem enfrentar uma estrutura patriarcal e marcada pelo racismo. Vivemos um momento histórico onde rostos que nunca haviam participado da política estão visíveis e isso já é um ganho em termos de construção de igualdade racial. Temos agora o desafio de ampliar essa presença e criar processos de formação para desconstruir opressões raciais e de gênero.