Convém abandonar a idéia de que os organismos são apenas um conjunto de sistemas, como o circulatório, o respiratório e o reprodutor, entre outros, cada um funcionando como uma linha de produção independente. Nada disso. Cada vez mais, prova-se que a integração é grande. Há substâncias que funcionam como maestros do organismo, pondo cada parte para tocar em harmonia. No Instituto de Biociências da Universidade de São Paulo (USP), um grupo de pesquisadores está ajudando a ciência a entender melhor uma delas, a melatonina, um hormônio produzido por uma pequena glândula, a pineal, situada na base do cérebro.
Produzida apenas à noite, a melatonina marca o escuro, com ações diferenciadas: controla o sono nos seres humanos e o estado de alerta nos ratos, animais de hábitos noturnos. Mais do que regulador do relógio biológico, esse hormônio pode desempenhar outras funções estratégicas. Após quase 10 anos de trabalho, a equipe coordenada pela biomédica e farmacologista Regina Pekelmann Markus, do IB, chegou a resultados animadores, considerados inéditos pela comunidade científica internacional, sobre o possível papel desse hormônio em processos inflamatórios. Há também implicações práticas: em alguns anos, esse trabalho pode levar a indicações mais precisas sobre a melhor hora e as dosagens mais eficazes para ministrar medicamentos.
Já se sabia que a melatonina interfere sobre os sistemas imunológico, hormonal e nervoso, assegurando a sincronização de diversas funções do organismo, muitas delas sem relação umas com as outras, mas não de modo assim tão decisivo. No IB, estudos realizados em camundongos e ratos mostraram que a melatonina, cuja produção ocorre apenas durante a noite, pode atenuar inflamações. A ciência já sabia também que a melatonina poderia atuar sobre a fase aguda das inflamações, nos dois primeiros dias do processo. Seu papel em lesões crônicas, mais longas, é que constitui um campo novo de estudos.
“Não podemos dizer que a melatonina é um anti-inflamatório, mas sim que tem importância modulatória no processo inflamatório”, explica Regina Markus, coordenadora do projeto temático Glândula Pineal e Melatonina – Estudo de Regulação Fisiológica e Fisiopatológica, com três subprojetos, que nos últimos três anos contou com um financiamento de R$ 68.386,60 da FAPESP. Trata-se de uma ação global, na qual não cabem mais visões compartimentadas do organismo. A melatonina, ao que tudo indica, impede que um tipo de células brancas do sangue, os neutrófilos, rolem ou se fixem nas paredes dos vasos sanguíneos, travando assim sua passagem para os tecidos adjacentes. A melatonina não impede inteiramente a evasão das células, apenas a reduz em cerca de 30%.
Na prática, o organismo sai ganhando. “Se vão menos neutrófilos para a região inflamada, a inflamação vai progredir mais lentamente”, diz a professora. Outra conseqüência: haverá menos pressão, menos inchaço e, talvez, menos dor na região inflamada. A melatonina, portanto, não breca a inflamação, mas a regula.A partir dessas evidências, como o ciclo de produção da melatonina é bem conhecido em mamíferos, incluindo os seres humanos, os médicos poderiam em tese potencializar o efeito das drogas anti-inflamatórias se as ministrassem justamente nos momentos de alta concentração desse hormônio no organismo, que ocorrem à noite. Para Regina Markus, que também coordena o curso de Ciências Moleculares da USP, esse cuidado extra poderia resultar em tratamentos mais eficazes contra inflamações crônicas, como a asma e a artrite reumatóide, além de permitir o uso de uma dosagem menor (portanto, menos agressiva) das drogas, cujos efeitos seriam potencializados pela presença da melatonina.
É lógico, lembra ela, que terão de ser feitos estudos detalhados em seres humanos sobre a ação da melatonina antes que esse tipo de procedimento se torne uma rotina terapêutica. Essa etapa também está sendo planejada pelos pesquisadores. “Pretendemos começar a pesquisar o papel da melatonina em processos inflamatórios em humanos em um ou dois anos”, afirma Regina.
Patas inchadas
Uma equipe do IB, composta pela doutora Cristiane Lopes e pelo professor Mario Mariano, realizou uma série de estudos enfocando o papel da melatonina na resposta inflamatória. Primeiro, injetaram as bactérias do tipo BCG (Bacillus Calmette-Guerin) e uma substância inerte chamada nistatina na pata traseira esquerda de camundongos. O objetivo era produzir uma inflamação crônica, que tomaria a forma de um caroço palpável que podia ser localizado no local da injeção, a chamada lesão granulomatosa. Além de receberem aplicações periódicas, os animais eram mantidos em um ambiente com iluminação controlada (12 horas com luz e 12 sem luz).
Trinta dias depois do início da experiência, os pesquisadores começaram a medir o inchaço das patas lesionadas – uma tarefa metódica, realizada a cada quatro horas, dia e noite, inclusive nos finais de semana e feriados. No final, perceberam que a grossura das patas, determinada pela inflamação induzida, variava de acordo com um ritmo que parecia guardar uma relação com o ciclo de produção da melatonina no organismo dos animais. Regina Markus conta que as patas nas quais se aplicou as substâncias apresentavam-se mais inchadas durante o dia, sobretudo entre as nove horas da manhã e a uma da tarde, justamente o período em que a glândula pineal não produz melatonina. Ao contrário, mostravam-se menos inchadas durante a noite, especialmente entre as nove da noite e a uma da manhã, um intervalo de tempo que coincide com o momento de pico de concentração do hormônio no organismo.
A partir desses dados, ficou claro para os pesquisadores que a inflamação crônica obedecia a um ritmo que variava uniformemente ao longo de 24 horas. O experimento era também um indício de que a presença ou ausência de melatonina tinha alguma influência sobre o inchaço nas patas dos camundongos. Segundo Regina Markus, havia nesse estudo outro dado interessante que reforçava a tese de que o ciclo de produção de melatonina estava ligado à intensidade da resposta inflamatória: era a saída de líquido e de proteína dos vasos para os tecidos vizinhos, a chamada permeabilidade vascular, devidamente medida pelos especialistas do IB. Como demonstraram, a permeabilidade das patas lesionadas era sempre maior ao meio-dia do que à meia-noite.
Como se sabe, quanto maior o grau de permeabilidade vascular numa área inflamada, maior será o seu inchaço. Em seguida, os pesquisadores precisaram verificar se os resultados obtidos decorriam apenas do ritmo de liberação da melatonina ou se havia outro fenômeno envolvido, uma etapa chamada de eliminação de variáveis. Então, retiraram a glândula pineal de alguns camudongos ou apenas o gânglio cervical superior, decisiva para seu funcionamento. Pronto: estava cessada ou drasticamente reduzida a produção natural desse hormônio, que só é sintetizada por essa glândula.
Como resultado, relata a professora Regina, o inchaço das patas lesionadas dos camundongos parou de seguir o ritmo circadiano, que determinava o inchaço mais intenso durante o período de luz e menos acentuado no período de escuro. Um forte indício, portanto, de que a ausência de melatonina no organismo estudado desregulava o ciclo normal da inflamação. Para que não houvesse mais dúvidas, aplicaram doses noturnas de melatonina nos animais que não mais produziam esse hormônio e – eis a prova final – a lesão nas patas voltou a obedecer o ciclo tradicional, de maior ou menor inchaço de acordo com a hora do dia.
Pioneirismo
Em outro trabalho sobre o papel antiinflamatório da melatonina, um grupo de estudos formado por Regina Markus, Sandra Farsky, do Instituto Butantan, Cristiane Lopes e Celina Lotufo, do IB, analisou a influência desse hormônio e de seu precursor, a N-acetilserotonina, na capacidade de um tipo de células sanguíneas, os leucócitos, rolarem e aderirem à parede de vênulas, as pequenas veias localizadas logo após os capilares. Segunda Regina Markus, esses são um dos primeiros passos que desencadeiam a resposta inflamatória.
Em ratos, os pesquisadores aplicaram diferentes doses desses dois hormônios, que atuavam em quantidades equivalentes à produzida normalmente pelo organismo. Ao final das análises, constataram que o precursor, uma molécula intermediária à melatonina, também apresenta uma ação definida no organismo. Tanto a melatonina quanto a N-acetilserotonina, ainda que em dosagens semelhantes às produzidas pela glândula pineal à noite, podem ter um papel fisiológico nos processos inflamatórios agudos, atuando na microcirculação, como são chamados os pequenos vasos onde se dá a saída de células da corrente sanguínea, provocando uma resposta inflamatória.
Segundo Regina Markus, os resultados desse trabalho representam uma contribuição original da ciência brasileira para a compreensão de uma das possíveis funções antiinflamatórias da melatonina. O estudo dos pesquisadores da USP, ela assegura, foi o primeiro no mundo a conseguir tais resultados em lesões agudas lançando mão de baixas doses desses hormônios. “Os trabalhos internacionais nessa linha sempre utilizaram dosagens muito elevadas dessas substâncias, de 10 mil ou até 100 mil vezes maior, criando uma situação totalmente artificial e diferente das condições de funcionamento do organismo”, comenta a pesquisadora.
Outra linha de atuação dogrupo volta-se à fisiologiada glândula pineal e uma outra família de receptores celulares, os purinoceptores do subtipo P2, estimulados pelas moléculas de adenosina trifosfato (ATP) liberadas pelo terminal nervoso. Esses receptores celulares têm uma importância específica: contribuem para induzir a síntese de melatonina. O ATP, lembra a professora Regina, é bastante conhecido como a molécula que é quebrada para fornecer energia para as células. Neste caso, o ATP não é quebrado, mas atua como um sinalizador de reações químicas entre duas células.
Tão notáveis quanto as descobertas foram as dificuldades vividas pelo grupo. A mais marcante diz respeito a um aparelho importado dos Estados Unidos, indispensável para o estudo das funções da glândula pineal e da atuação da melatonina nos organismos. Era um microfisiômetro, que mede a acidez ou a alcalinidade, o chamado pH, nas células e fornece a velocidade de acidificação do meio líquido em que se encontram. Quem o vê funcionando em um dos laboratórios do IB não imagina os bastidores. O aparelho, de uso conjunto por diversos grupos de pesquisa, custou cerca de US$ 100 mil, financiado pela FAPESP. Foi o primeiro microfisiômetro instalado no Brasil, segundo a coordenadora do projeto.
Sua chegada, em meados do ano passado, alegrou os pesquisadores da USP. Mas, como fazer ciência é uma luta quase diária contra as adversidades, o equipamento apresentava algum problema e, para decepção geral, não funcionou. Para complicar, não havia assistência técnica no Brasil. “Tivemos de consertá-lo com a ajuda on line do fabricante, com quem passamos a trocar e-mails na esperança de resolver o problema”, relembra Regina, com bom humor. O problema até que era simples, uma bombinha do aparelho estava danificada, mas consumiu três meses para ser localizado e sanado. Reunindo habilidades, os pesquisadores conseguiram resolver o contratempo por aqui mesmo. Mandar o aparelho de volta para ser consertado nos Estados e esperar o retorno seria muito mais demorado. Outro ponto a favor da ciência brasileira.
A melatonina é uma molécula de produção relativamente simples, derivada de um aminoácido essencial, o triptofano, e elaborada em apenas duas etapas intermediárias. Pode ser encontrada em quase todos os animais, desde os unicelulares, com a exceção de alguns ratos do deserto, desprovidos de olhos, que vivem sob a terra, e algumas variedades de peixes de águas profundas, que vivem no escuro absoluto.
A glândula pineal ou epífise, que a produz, está presente nos animais vertebrados (peixes, répteis, anfíbios, aves e mamíferos) – os invertebrados, embora sem a glândula, produzem a melatonina pelos mesmos caminhos bioquímicos. Descrita pela primeira vez há 2.000 anos por um anatomista da Universidade de Alexandria, Herófilo, a pineal era considerada na Antiguidade como uma espécie de esfíncter, um simples músculo, capaz de regular o fluxo do pensamento. No século II, o médico grego Galeno fez um grande avanço ao mostrar que essa glândula era constituída de um tecido diferente do tecido cerebral.
No século XVII, o pai do racionalismo francês, René Descartes, alimentou o conceito de que a pineal seria o centro da alma. No final do século passado, já com suas propriedades anatômicas, histológicas e embriológicas conhecidas, é apontada como algo semelhante ao terceiro olho das aves. Constitui, na verdade, o órgão epifiseal dos pássaros, onde a pineal é uma fotorreceptora, como a retina.
Hoje, está evidente, a pineal funciona como um tradutor: é capaz de informar às partes internas do organismo sobre as condições de iluminação ambiental. Em outras palavras: a pineal, liberando melatonina, informa ao organismo se está escuro. Permite desse modo que seja diferenciado o dia da noite – e, de acordo com a intensidade da luz, libera no organismo os hormônios que produz.
A ação da melatonina varia de acordo com a hora em que é liberada. Em animais com ciclo reprodutivo ditado pelas estações do ano, esse hormônio sinaliza as mudanças sazonais: pode, por exemplo, estimular ou inibir o desenvolvimento dos órgãos genitais. Os hamsters, por exemplo, se reproduzem na primavera, quando os dias são mais longos. Nas ovelhas, ao contrário, a fecundação ocorre no inverno.
Regina Pekelmann Markus, 50 anos, professora titular do Departamento de Fisiologia do Instituto de Biociências da Universidade de São Paulo (USP), graduou-se em Ciências Biomédicas na Escola Paulista de Medicina, atual Universidade Federal do Estado de São Paulo (Unifesp), onde fez o doutorado.
Projeto
Glândula Pineal e Melatonina – Estudo de Regulação Fisiológica e Fisiopatológica
Investimento
R$ 68.386,60